Além da retaliação: Por que a estabilidade dos direitos de PI é um pilar indispensável para a inserção do Brasil nas cadeias globais de inovação
O artigo defende que a PI deve ter segurança jurídica igual à dos bens tangíveis, apontando o licenciamento compulsório como medida inadequada.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Atualizado em 1 de setembro de 2025 14:49
Introdução: A propriedade intelectual no tabuleiro geopolítico global
O século XXI é definido pela crescente centralidade do conhecimento como fator de produção e pela fragmentação da manufatura em cadeias globais de valor. Nesse ambiente, a propriedade intelectual deixou de ser apenas um mecanismo jurídico de incentivo à inovação, tornando-se um ativo estratégico, tão relevante quanto capital físico ou reservas de recursos naturais. Para países em desenvolvimento que buscam ascender a patamares mais altos de sofisticação produtiva, como o Brasil, a forma como se estruturam as instituições de proteção da PI é interpretada internacionalmente como um termômetro de maturidade institucional. Um sistema previsível, estável e confiável de proteção de PI sinaliza compromisso com regras claras do jogo global, condição necessária para atrair investimento, tecnologia e para promover a participação de empresas brasileiras em ecossistemas internacionais de inovação colaborativa. Nesse contexto, ressurge ocasionalmente a proposta de utilizar o licenciamento compulsório como arma de retaliação comercial, configurando-o como "quebra de patentes" dirigida a empresas ou setores de países com os quais o Brasil esteja em litígio. Este artigo alerta para os riscos dessa estratégia, argumentando que equiparar a proteção da PI à dos investimentos físicos não é apenas uma analogia válida, mas uma exigência econômica e geopolítica. Defende-se, ainda, que medidas de retaliação, quando necessárias, devem ser impessoais, sistêmicas e sempre conformes ao direito multilateral.
TRIPs e a segurança jurídica para ativos intangíveis
Os acordos TRIPs e TRIMs, ambos da OMC, constituem pilares complementares da ordem econômica multilateral. Enquanto o TRIMs evita que governos imponham condições distorcivas a investimentos estrangeiros (como exigências excessivas de conteúdo local), o TRIPs garante padrões mínimos de proteção para ativos intangíveis, assegurando que inventores, criadores e empresas possam confiar na proteção de seus direitos além das fronteiras nacionais. A lógica subjacente é idêntica: reduzir a incerteza e criar um ambiente de confiança para a circulação de ativos valiosos. Um investidor que instala uma fábrica no Brasil e um laboratório que licencia uma tecnologia patenteada ao mercado brasileiro fazem escolhas baseadas na mesma expectativa: a de que seu investimento não será alvo de medidas arbitrárias ou discriminatórias. Quando o licenciamento compulsório é mobilizado como instrumento arbitrário de retaliação, a mensagem enviada à comunidade internacional é devastadora. Tal prática equivale, em termos jurídicos e econômicos, à desapropriação sem justa causa de um ativo físico estrangeiro. Ambos os casos quebram a confiança dos investidores, corroem a imagem institucional do país e criam um precedente de instabilidade que afasta investimentos futuros.
O problema da personalização: A lição do caso cubano
Um princípio basilar do sistema multilateral é a não-discriminação. Retaliações comerciais só são consideradas legítimas quando visam o Estado infrator de forma ampla, e não quando transformam empresas privadas em alvos diretos. O embargo dos EUA a Cuba, na década de 1960, ilustra esse ponto. Embora questionável sob outros aspectos, a medida foi aplicada de forma abrangente contra um Estado-nação, e não seletivamente contra empresas específicas. A legitimidade relativa daquela ação, do ponto de vista do Direito Internacional, residia justamente na sua impessoalidade.
Transportar esse raciocínio para um cenário hipotético brasileiro deixa clara a distorção da personalização: seria juridicamente arbitrário e economicamente suicida que o Brasil, em litígio com um país X, decidisse quebrar apenas as patentes da Empresa A e da Empresa B desse país. Essa seletividade criaria três problemas imediatos: 1. Violação de due process: empresas seriam punidas sem cometer infrações individuais. 2. Discriminação arbitrária: afronta ao princípio do Tratamento Nacional previsto no TRIPs. 3. Precedente desestabilizador: abriria a porta para que outros países adotassem medidas semelhantes contra empresas brasileiras, minando a previsibilidade global.
Os custos reais para a estratégia brasileira de inovação
Rejeitar o uso retaliatório do licenciamento compulsório não significa abdicar da soberania nacional nem das flexibilidades legítimas do TRIPs, especialmente em emergências de saúde pública. O problema está no motivo (retaliação) e na forma (personalização). As consequências dessa deturpação seriam múltiplas: - Erosão da segurança jurídica: decisões arbitrárias afastariam investimentos de longo prazo em P&D. - Isolamento em cadeias globais de valor: parceiros estrangeiros relutariam em compartilhar conhecimento técnico com empresas brasileiras, temendo insegurança regulatória. - Retaliação desproporcional: a medida poderia gerar respostas assimétricas de países afetados, punindo setores estratégicos da economia nacional. - Desalinhamento estratégico: em vez de aproximar o Brasil dos centros globais de inovação, tais práticas reforçariam a percepção de risco, afastando o país das alianças tecnológicas mais dinâmicas.
Conclusão e recomendações: Rumo a uma estratégia sofisticada e legítima
A integração soberana e competitiva do Brasil nas cadeias globais de inovação exige instituições robustas, previsíveis e alinhadas com os padrões internacionais. O licenciamento compulsório, quando utilizado em suas hipóteses legítimas - como emergências nacionais de saúde - permanece um instrumento válido. Mas sua instrumentalização como mecanismo de retaliação comercial personalizada compromete o prestígio do país, mina sua credibilidade e afasta investimentos estratégicos. Recomenda-se que o Brasil: 1. Reforce publicamente seu compromisso com altos padrões de proteção da PI, repudiando o uso de medidas personalizadas contra empresas estrangeiras. 2. Utilize os mecanismos multilaterais da OMC para solucionar disputas, garantindo legitimidade e proporcionalidade nas retaliações. 3. Invista em diplomacia econômica, privilegiando negociação e cooperação em detrimento do confronto arbitrário. 4. Fortaleça o INPI e o Judiciário, consolidando um ambiente institucional confiável para investidores e inovadores. A mensagem central é inequívoca: a proteção da propriedade intelectual não é uma concessão às empresas estrangeiras, mas um investimento estratégico no futuro da inovação brasileira. A história demonstra que retaliações eficazes são sempre de Estado contra Estado, nunca de Estado contra empresas. A verdadeira soberania reside na capacidade de exercer liderança responsável, ancorada no Direito Internacional e na previsibilidade institucional.
Jorge Ávila
Ex-Presidente do INPI e Membro de Honra Vitalício da ABPI.



