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"Duplo chapéu": Problema ou vantagem da arbitragem?

A arbitragem permite escolher árbitros experientes. O "duplo chapéu" não compromete a imparcialidade e é essencial para a qualidade das decisões.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Atualizado às 13:55

A arbitragem é método privado de resolução de controvérsias envolvendo direitos patrimoniais disponíveis e está consolidada há mais de 20 anos como o principal método para solução de disputas empresariais complexas no país. Uma de suas vantagens consagradas é a possibilidade de as partes escolherem como árbitro qualquer pessoa que goze de sua confiança, desde que ela seja imparcial e independente.

Em pesquisa da universidade Queen Mary do Reino Unido e White and Case em 2025, 47% dos entrevistados responderam que a principal vantagem da arbitragem é poder selecionar árbitros com experiência e conhecimento relevantes.

Ocorre que, em recentes processos de anulação de sentenças arbitrais no TJ/SP, suscitou-se que haveria na arbitragem brasileira um suposto "problema" "por serem sempre os mesmos seus partícipes, ora como advogados, ora como árbitros... em situação causadora de perplexidade aos jurisdicionados que, depreciativamente, se convencionou chamar de 'chapéu duplo'" (apelação cível 1031861-80.2020.8.26.0100, j. 30/6/21).

O "duplo chapéu" é mesmo um problema na arbitragem brasileira? 

O termo foi cunhado pelo professor Philippe Sands da University College London, ao tratar da arbitragem de investimentos, que não existe no Brasil. A arbitragem de investimentos é baseada em tratados bilaterais ou multilaterais de investimentos e envolve investidores estrangeiros e Estados, trata de rol restrito de pedidos e posições jurídicas, envolve interesses públicos e resulta em sentenças públicas que geram impactos de grande escala. Neste contexto, Sands conceituou "duplo chapéu" como "advogados que atuam simultaneamente como representantes de partes e como árbitros em casos distintos, mas que tratam de temas iguais ou semelhantes".

O tema ganhou notoriedade após pesquisa do professor Malcom Langford da Universidade de Oslo identificá-lo em 58% das 1.039 arbitragens de investimentos ocorridas até 2017. Para Langford, uma vez que a arbitragem de investimento envolve interesses públicos e há um padrão de decisões em tais arbitragens (ou "pró" Estado ou "pró" investidor), "o julgador precisa se esforçar muito mais para demonstrar sua neutralidade".

Em resposta a Langford, especialistas apontaram que a experiência e renome na advocacia são essenciais para alguém ser escolhido como árbitro; e a atuação como árbitro só é financeiramente viável caso conjugada com outras fontes de renda, como a advocacia, já que não há garantia de novas indicações. Já em casos concretos, foram indeferidas impugnações baseadas no "duplo chapéu", reforçando-se que a mera atuação como advogado não é suficiente para afastar a imparcialidade do árbitro (ICSID ARB/12/13 e ARB/15/25).

Em 2018, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional criou Grupo de Trabalho sobre o tema, que concluiu que vedar o "duplo chapéu" prejudicaria a qualidade das decisões, diminuiria o pool de árbitros e não seria necessário, pois já existem regras suficientes sobre conflitos de interesse. Em 2023, publicou-se Código de Conduta para Árbitros, que autoriza o "duplo chapéu", salvo em casos que tenham os mesmos pedidos, as mesmas partes ou sejam baseados na mesma cláusula do mesmo tratado de investimento (art. 4).

Se na arbitragem de investimentos estudos sérios concluíram que o "duplo chapéu" não gera conflitos de interesses per se, muito menos na arbitragem comercial brasileira. A arbitragem comercial jamais foi o alvo da crítica de Langford, que entendia o "duplo chapéu" como potencialmente benéfico neste sistema, diante da figura central da confiança das partes no árbitro e do fato de se tratarem de disputas únicas.

Para que o árbitro goze de confiança das partes, é essencial que este tenha experiência em sua profissão. Qual parte escolheria como árbitro um profissional sem experiência alguma e que apenas se autointitulou "árbitro"? A atuação prévia e contínua em determinados setores é, precisamente, o que o torna preparado aos olhos das partes para ser árbitro.

Os casos levados à arbitragem comercial são diferentes uns dos outros. Salvo raríssimas exceções, cada caso possui fatos particulares, como o contexto do negócio, a redação da cláusula e a forma como as partes agiram na execução contratual. Tanto assim, que as Diretrizes sobre Conflito de Interesses da Associação Internacional dos Advogados preveem que a emissão de opinião jurídica sobre matéria sob debate na arbitragem não é hipótese de conflito de interesses e não demanda revelação.

Logo, o "duplo chapéu" não comporta vedação na arbitragem comercial. Casos excepcionalíssimos em que a sobreposição de papeis possa prejudicar a independência e imparcialidade do árbitro devem ser endereçados pelas regras e soft laws sobre conflitos de interesse e dever de revelação dos árbitros.

A possibilidade de escolher o árbitro conforme seu renome, experiência e visão jurídica é um dos principais atrativos da arbitragem. Essa escolha apenas pode ser invalidada caso se demonstre, em análise concreta, que a imparcialidade e a independência do árbitro estão comprometidas. 

O "duplo chapéu" é essencial para que haja árbitros(as) experientes, o que é da essência da própria arbitragem.

Eleonora Coelho

Eleonora Coelho

Pós-Graduada em Arbitragem, Contencioso e Modos Alternativos de Solução de Conflitos pela Universidade Paris II - Panthéon-Assas. Vice-Presidente da Associação Latinoamericana de Arbitragem.

Louise Maia de Oliveira

Louise Maia de Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Especializada em Arbitragem pelo CEU-IICS Law School.

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