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Recordes na Justiça do Trabalho: Como lidar com a cultura do litígio no país

Litigar virou rotina: o Brasil já registra recordes recentes em ações trabalhistas. O artigo mostra como o fenômeno reflete nosso modelo de negócios e traz estratégias para empresas reagirem.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Atualizado às 13:34

Introdução

Em 2017, a reforma trabalhista foi apresentada como um divisor de águas: simplificar relações, reduzir a litigiosidade e melhorar a previsibilidade do ambiente de negócios. No curto prazo, a queda do volume de ações pareceu validar a tese. Mas o pêndulo da história brasileira voltou a oscilar: a partir de 2024, e com mais força em 2025, assistimos a uma recomposição robusta do contencioso, inclusive com previsão de novo recorde pós-reforma.

Por que voltamos ao topo? A resposta não é simples, mas multifatorial. Há fatores jurídicos, econômicos e culturais. Este texto propõe um olhar sistêmico: se a judicialização aumentou, é porque os incentivos e as práticas empurram os conflitos para o Judiciário. Para enfrentar o fenômeno, precisamos reposicionar papéis, redesenhar rotinas e atualizar as relações de trabalho no Brasil.

Panorama atual

Após o pico anterior à reforma de 2017, o número de ações caiu, mas logo iniciou retomada. Em 2024, o volume já se aproximava de marcas históricas e, para 2025, as projeções indicam um novo recorde.

Pela primeira vez, o setor de serviços superou a indústria na origem dos processos, respondendo por mais de um quarto do total. Não por acaso: é uma área marcada por alta densidade de relações humanas, jornadas flexíveis, metas agressivas e grande rotatividade, um terreno fértil para conflitos.

O TST atribui parte dessa alta à recomposição pós-pandemia, quando fatores conjunturais reduziram a judicialização. Ainda assim, a tendência estrutural permanece: incentivos jurídicos mais favoráveis ao ajuizamento e a dinâmica do setor de serviços sustentam o patamar elevado. Especialistas destacam a mudança de incentivos após 2021, enquanto o TST fala em normalização estatística.

Ambas as visões se complementam: regras importam, mas ciclos econômicos também. O planejamento empresarial deve se preparar para os dois.

Causas jurídicas e institucionais

A reforma trabalhista de 2017 buscou reduzir litigiosidade e fortalecer a negociação, introduzindo custas e honorários ao reclamante, maior valorização do negociado e flexibilização de jornadas. O efeito imediato foi a queda nas ações, já que o risco financeiro afastou demandas frágeis.

Em 2021, porém, o STF limitou esses dispositivos para beneficiários da justiça gratuita, entendendo que restringiam o acesso a direitos. O impacto foi imediato: trabalhadores de baixa renda voltaram a litigar sem grande risco, e a advocacia especializada ajustou seus modelos. O sistema, que permite autodeclaração de pobreza, passou a enfrentar denúncias de abusos, mas a essência da decisão deve ser preservada.

Analisando o direito sob uma perspectiva econômica, percebemos que existe uma lógica geral: litígios caem quando são caros e aumentam quando são acessíveis. O desafio está em equilibrar inclusão e eficiência, garantindo proteção a quem precisa sem transformar o Judiciário em instância automática de diálogo nas relações de trabalho.

Impactos econômicos e empresariais

Quando falamos em ações trabalhistas, é comum pensar apenas nas cifras que aparecem nas condenações ou nos acordos firmados em audiência. Mas o impacto vai muito além da planilha. Cada processo arrasta consigo verbas rescisórias, horas extras contestadas, adicionais não pagos, pedidos de equiparação ou indenizações por danos morais.

É dinheiro que sai do caixa, muitas vezes de forma inesperada, e que obriga empresas a manter provisões contábeis robustas, o que reduz a capacidade de geração de caixa, investimentos e  previsibilidade financeira.

O custo, porém, não é apenas monetário. Há um desgaste invisível, mais difícil de mensurar, mas igualmente corrosivo. Gestores e equipes de RH desviam tempo e energia para organizar documentos, preparar testemunhas, reunir-se com advogados e acompanhar prazos processuais. O clima interno sofre, pois colaboradores percebem a empresa como um espaço de instabilidade ou injustiça, e a imagem externa também se fragiliza em tempos de redes sociais, onde uma denúncia isolada pode ganhar proporções devastadoras.

Além disso, cresce a sensação de insegurança jurídica: em vez de planejar expansão e inovação, líderes passam a adotar uma postura defensiva, retraindo investimentos e limitando a ousadia estratégica.

No setor de serviços, esse cenário se mostra ainda mais agudo. Empresas que operam com margens estreitas e alta intensidade de mão de obra convivem diariamente com pontos de atrito: escalas instáveis, jornadas irregulares, metas agressivas, remuneração variável pouco transparente, contratos híbridos que mesclam presencial e remoto, além de terceirizações e arranjos atípicos, como a pejotização.

Cada um desses elementos funciona como gatilho em potencial para disputas, e a elevada rotatividade típica do setor multiplica as chances de que tais conflitos se convertam em ações judiciais.

Os reflexos não se restringem à esfera empresarial. Em nível macroeconômico, a alta litigiosidade sobrecarrega o orçamento público com os custos da máquina judiciária, reduz a competitividade nacional e alimenta estratégias de contenção que, muitas vezes, sacrificam empregos. A resposta defensiva mais comum é a automação precoce ou a terceirização em larga escala, medidas que reduzem a litigiosidade no curto prazo, mas podem gerar um mercado de trabalho mais precário e desigual no futuro.

Assim, a explosão de processos trabalhistas não é apenas uma dor de cabeça para empresários: é um sintoma que compromete a economia, a qualidade das relações de trabalho e a própria capacidade do país de crescer de forma sustentável.

O litígio como reflexo da (des)confiança

A judicialização não começa na petição inicial, mas no cotidiano. Ela nasce quando uma meta é mal explicada, quando a comunicação entre gestor e equipe se perde em ruídos, quando uma promessa feita não é cumprida, quando um registro é mal feito ou simplesmente não existe. O processo judicial, nesse sentido, é muitas vezes a formalização tardia de uma conversa que nunca aconteceu, a tentativa de obter em juízo aquilo que não foi possível resolver na mesa com o patrão ou gestor da área no dia a dia.

Expandir o acesso à Justiça, como o Brasil fez a partir de decisões recentes, é um avanço democrático inegável. Mas esse progresso revela um paradoxo: quando não existem rituais eficazes de prevenção dentro das organizações, o Judiciário acaba sendo transformado em balcão de resolução para questões que poderiam, e deveriam, ser tratadas por canais internos de governança. É o tribunal ocupando o lugar da conversa franca, o processo substituindo a escuta, a sentença tornando-se o espaço onde se define o que poderia ter sido ajustado por meio de acordos cotidianos.

Esse movimento cria uma espiral de desconfiança. À medida que os processos aumentam, gestores passam a ver seus colaboradores como potenciais litigantes; trabalhadores passam a enxergar o ajuizamento de uma ação não como exceção, mas como extensão natural de sua remuneração; e o setor de Recursos Humanos deixa de atuar como mediador para se tornar uma espécie de linha de defesa permanente.

O resultado é corrosivo: a energia que deveria ser canalizada para inovação, crescimento e construção de um ambiente saudável é consumida pela lógica da suspeita mútua.

A organização desaprende a dialogar, e o conflito se naturaliza como única forma de comunicação eficaz.

Não é um destino inevitável. Outras jurisdições, com índices menores de litigiosidade, mostram que a chave está no equilíbrio entre lei e governança relacional. Países que conseguem manter o Judiciário menos sobrecarregado não abriram mão da proteção legal, mas consolidaram práticas fortes de negociação coletiva, instituíram etapas de mediação obrigatória antes do processo e construíram culturas de transparência operacional que reduzem as zonas de ambiguidade.

A lição é clara: lei sem governança gera contencioso; governança sem lei degenera em arbítrio. O desafio brasileiro é encontrar o ponto de equilíbrio entre esses dois polos, reconstruindo a confiança como ativo essencial das relações de trabalho.

Caminhos possíveis

Se os números revelam um cenário de alta litigiosidade e as análises jurídicas e sociais demonstram que o problema vai além das leis, a questão inevitável é: o que pode ser feito?

A boa notícia é que existem caminhos, e eles não dependem de grandes reformas legislativas, mas de mudanças culturais e institucionais que estão ao alcance de qualquer empresa ou organização.

O primeiro passo é compreender que compliance trabalhista não é papel para ficar em gaveta, mas prática viva, cotidiana, que se traduz em rotinas claras, em registros confiáveis e em uma cultura que valoriza coerência entre o que se diz e o que se faz.

Empresas que levam a sério esse compromisso conseguem reduzir significativamente os riscos porque criam previsibilidade, dão segurança jurídica às decisões e oferecem ao trabalhador um ambiente de maior transparência.

Outra dimensão essencial é a prevenção de conflitos. Muitas disputas chegam ao Judiciário porque não encontram espaço para serem discutidas internamente. Canais de ouvidoria que funcionam de verdade, mediações internas conduzidas com técnica e boa-fé, e a disposição da alta gestão para enfrentar problemas antes que eles se transformem em petições são recursos poderosos.

Não se trata de substituir a Justiça, mas de criar instâncias de diálogo que antecipem soluções. Quanto mais cedo o conflito for tratado, menores os custos financeiros e emocionais para todos os envolvidos.

A governança da jornada de trabalho e da remuneração variável também é um ponto nevrálgico. Grande parte das ações trabalhistas nasce justamente das ambiguidades nesses temas. Se a jornada é controlada de forma frágil, se as metas mudam sem clareza ou se o pagamento de bônus não é transparente, o litígio se torna quase inevitável. Investir em processos claros, regras objetivas e sistemas confiáveis de registro é investir em confiança.

Nada disso, contudo, se sustenta sem educação corporativa. Gestores, profissionais de RH e contadores são protagonistas silenciosos na prevenção de conflitos. Muitas vezes, não é a má-fé que gera o problema, mas o desconhecimento, a falta de preparo para lidar com situações delicadas ou a ausência de protocolos claros. Treinar, sensibilizar e dar ferramentas a esses profissionais é fortalecer a primeira linha de defesa da empresa.

E, nesse ecossistema, o papel do advogado de negócios precisa ser repensado. Ele não pode ser apenas o bombeiro chamado quando o incêndio já começou. Precisa atuar como arquiteto de confiança, ajudando a mapear riscos, a desenhar contratos vivos que acompanham a realidade dinâmica do trabalho e a treinar lideranças para comunicar-se de forma segura, humana e juridicamente consistente. É nesse ponto que o Direito deixa de ser apenas custo reativo e passa a ser ativo estratégico.

Por fim, é preciso reconhecer que o futuro do contencioso trabalhista não depende apenas das empresas. O STF ainda discute a validade da autodeclaração de pobreza e pode, a qualquer momento, endurecer critérios de acesso à gratuidade. Mas apostar apenas em soluções vindas de cima é um erro. Mesmo que haja uma queda momentânea no número de ações por conta de ajustes jurisprudenciais, sem transformação cultural o ciclo de recomposição se repetirá. A saída real está em construir, coletivamente, uma nova ética contratual baseada em clareza, diálogo e confiança.

O que esperar da justiça e do ambiente regulatório

O que a experiência nos mostra é que ajustes legais e jurisprudenciais influenciam o fluxo imediato de processos, mas não conseguem alterar sozinhos a cultura que empurra empresas e trabalhadores para o litígio.

O ambiente regulatório tende a seguir tensionado entre dois polos: de um lado, a necessidade de garantir amplo acesso à Justiça; de outro, a pressão para conter custos e reduzir a sobrecarga do Judiciário. Entre essas forças, caberá às empresas e à sociedade civil preencher o espaço que o direito, por si só, não alcança: o espaço da confiança, da governança relacional e da prevenção efetiva de conflitos.

Em outras palavras, ainda que o STF e os Tribunais façam ajustes na régua, a chave verdadeira para um futuro menos litigioso não estará apenas no judiciário, mas dentro das próprias empresas, na forma como decidem gerir pessoas, contratos e expectativas.

Do país que processa ao país que dialoga

A volta das disputas trabalhistas ao topo das estatísticas não é apenas um dado curioso ou um desafio para advogados. É um espelho que revela a fragilidade das nossas relações de trabalho e o quanto ainda precisamos evoluir em confiança e transparência.

A reforma de 2017, ao reduzir drasticamente o número de ações, mostrou que regras mais duras funcionam como freio temporário; a decisão do STF em 2021, ao ampliar o acesso, mostrou que inclusão democrática tem efeito imediato sobre a curva de processos. Mas nenhuma dessas soluções atacou o cerne do problema: a ausência de diálogo estruturado e de governança preventiva no cotidiano das empresas.

Se quisermos sair desse ciclo de altos e baixos, precisamos assumir que o litígio não é destino, é escolha, e mais do que isso, é reflexo das escolhas que deixamos de fazer.

Construir uma cultura em que conflitos sejam tratados de forma madura antes de se transformarem em ações não é apenas uma questão de reduzir custos, mas de redesenhar a qualidade das relações sociais e produtivas no país.

O Brasil tem diante de si uma encruzilhada. Podemos continuar sendo o país que judicializa para sobreviver, ou podemos nos tornar o país que dialoga para crescer. A resposta não virá apenas do Judiciário, nem apenas do legislador. Virá de cada empresa que decide investir em práticas preventivas, de cada gestor que aprende a se comunicar com clareza, de cada advogado que atua como arquiteto de confiança, e de cada trabalhador que enxerga valor no diálogo antes do processo.

No fim, a lição é simples: a confiança custa menos que o contencioso. E quanto antes entendermos isso, mais cedo deixaremos de contabilizar bilhões com processos para, enfim, começar a construir bilhões com oportunidades.

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Referências

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, entre outras. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 14 jul. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5766. Julgamento em 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 25 ago. 2025.

BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - CAGED. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego. Acesso em: 25 ago. 2025.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (TST). Justiça do Trabalho julgou mais de 4 milhões de processos em 2024. Brasília, DF: TST, 8 ago. 2025. Disponível em: https://www.tst.jus.br/. Acesso em: 25 ago. 2025.

BRITO, Lara. Número de ações trabalhistas bate recorde em 15 anos. Poder360, 25 maio 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br/. Acesso em: 25 ago. 2025.

Setor de serviços bate recorde de ações trabalhistas em 2024. Estadão, [s. l.], [s. d.]. Disponível em: https://www.estadao.com.br/. Acesso em: 25 ago. 2025.

Pedro Neiva de Faria

VIP Pedro Neiva de Faria

Advogado de Negócios, Empreendedor, Presidente da Comissão de Direito Empresarial da 29ª Subseção da OAB/RJ Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia Sócio do Neiva Advogados

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