Justiça tardia no campo: Prescrição e paternidade em disputa
Entre o tempo da lei e o tempo da vida: a teoria actio nata no viés objetiva como obstáculo à justiça no meio rural
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Atualizado às 13:45
É pacífico que a investigação de paternidade é imprescritível, ou seja, o direito de conhecer a própria origem pode ser exercido a qualquer tempo. O problema surge quando esse reconhecimento vem acompanhado da petição de herança: nesse caso, a lei e a jurisprudência impõem limites temporal.
O STF, por meio da súmula 149, fixou que "é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança". Na prática, isso significa que o filho pode sempre buscar o reconhecimento do vínculo biológico, mas não poderá, após o prazo legal, reivindicar o seu quinhão hereditário.
Essa lógica tem amparo na teoria da actio nata, aplicada de forma objetiva: o prazo prescricional começa a correr com a abertura da sucessão, independentemente do momento em que o herdeiro descobre sua verdadeira filiação. O STJ, em 2024, reforçou esse entendimento ao fixar que o termo inicial da prescrição na ação de petição de herança é a abertura da sucessão, nos termos do princípio da saisine e do art. 1.784 do CC.
No entanto, mesmo que esse critério ofereça segurança jurídica às relações patrimoniais, ele também pode se tornar um verdadeiro entrave à justiça. Isso porque, ao ignorar o tempo da vida, marcado por silêncios, segredos e descobertas tardias e se prender apenas ao tempo da lei, corre-se o risco de transformar a prescrição em um instrumento de exclusão e desigualdade.
É justamente no meio rural que esse debate ganha contornos ainda mais sensíveis. O patrimônio herdado, muitas vezes terras, não representa apenas riqueza econômica, mas também trabalho, memória e continuidade da família. Nesse contexto, é comum que questões de paternidade fiquem guardadas durante anos, encobertas por dinâmicas familiares complexas e pela própria dificuldade de acesso à justiça. Quando a verdade finalmente vem à tona, o prazo prescricional já pode ter se esgotado, perpetuando a injustiça.
Na minha visão, a aplicação da teoria actio nata pelo viés objetivo mostra-se inadequada para lidar com essas situações delicadas, pois ignora o contexto humano e social das pessoas afetadas.
Essa interpretação faz com que o prazo prescricional comece a contar independentemente do momento em que o herdeiro toma conhecimento de sua condição, o que, na prática, pode impedir que indivíduos busquem aquilo que lhes é de direito. Em vez de promover justiça, essa abordagem muitas vezes favorece apenas um lado da relação sucessória, geralmente aquele que já detém conhecimento e controle do patrimônio, logo acaba inviabilizando o direito daqueles que, durante toda a vida, sequer sabiam que poderiam reivindicar sua parte.
Além disso, a realidade da maioria das comarcas do interior intensifica o problema: a ausência de juízes titulares e a limitação de estrutura judicial tornam ainda mais lento o andamento dessas ações, criando um verdadeiro obstáculo para o acesso à justiça em casos de paternidade e herança.
Defender a aplicação da teoria actio nata pelo viés subjetivo, isto é, a partir da efetiva ciência do direito pelo herdeiro, não significa abrir espaço para litígios intermináveis. Significa, sim, reconhecer que o tempo da vida não é o mesmo tempo da lei. A justiça, quando chega tarde, corre o risco de perder sua razão de ser.
Logo, o ideal seria que a prescrição tivesse início apenas a partir da violação do direito, em consonância com o art. 189 do CC. Isso porque pode ocorrer de o autor desconhecer completamente a sua qualidade de herdeiro, sendo ilegítimo para reivindicar o direito sucessório até o momento em que descobre a verdade. Ao contrário do que muitos defendem, essa interpretação não compromete a segurança jurídica, mas fortalece o verdadeiro sentido da justiça.
Mais do que números em um calendário, o que está em jogo são vidas, histórias e identidades. Negar o direito à herança apenas pelo decurso do tempo, em contextos nos quais o conhecimento da filiação não é imediato, é perpetuar desigualdades. É, em última análise, silenciar quem finalmente encontrou sua voz.
Por isso, defendo que a teoria actio nata, em disputas sucessórias, seja aplicada pelo viés subjetivo. Esse olhar sensível é o que mais se aproxima da realidade de milhares de famílias do meio rural, que ainda enfrentam barreiras sociais, culturais e estruturais para fazer valer seus direitos. Afinal, justiça que não alcança a vida real corre o risco de não ser justiça, principalmente no meio rural.


