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Onde tratar a saúde mental de pessoas no âmbito do processo penal?

A resolução CNJ 487/23 estabelece diretrizes para o tratamento da saúde mental no processo penal, garantindo direitos e priorizando cuidados terapêuticos em ambiente não asilar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Atualizado às 15:06

A resolução 487 do CNJ1 entrou em vigor no dia 28/5/23.

Ela institui a política antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a lei 10.216, de 6/4/012, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.

Figura 14: Resolução CNJ 487/23.

Diagrama, Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborada pela Equipe da Vida Mental Perícias, baseados na resolução CNJ 487/233.

Somando-se com a resolução 487 do CNJ, a Constituição da República Federativa do Brasil de 19884, em seu art. 5º, § 3º, registra o texto:

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

[.]

Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[.]

§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela EC 45, de 2004) (Vide ADIN 3392) (Vide Atos decorrentes do disposto no § 3º do art. 5º da Constituição) (Grifos nossos)

Nesse sentido, considerando que a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi promulgada pelo decreto 6.949, de 25/8/095, e aprovada por meio do decreto legislativo 186, de 9/7/086, conforme o procedimento do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, a referida resolução do CNJ tem, portanto, condição para ser acatada com validade equivalente à emenda constitucional.

Considerando também o § 2º do mesmo dispositivo:

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

[.]

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (Grifos nossos)

Melhor dizendo, na medida em que o texto constitucional não exclui os direitos provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, é porque ele inclui esses direitos, conferindo-lhes hierarquia de norma constitucional7.

Para além disso, impende ressaltar a hierarquia das leis proposta por Hans Kelsen8, em que o Direito Internacional tem prevalência, e o Estado submete-se ao ordenamento jurídico internacional, incluindo os tratados e as convenções internacionais, especialmente as que tratam de Direitos Humanos, como é o caso da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

À vista disso, cabe salientar o princípio pro homine ou pro persona, alicerce fundamental do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Segundo os ensinamentos do professor Cançado Trindad9, notável figura do Direito Internacional, o referido princípio reside na necessidade de estabelecer a primazia da norma mais favorável aos indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade, a partir das circunstâncias específicas de cada caso.

Com efeito, apesar de a atual Constituição Federal ser considerada rígida, ao tratar de direitos fundamentais, o texto constitucional estabelece parâmetros mínimos de segurança para o indivíduo em relação ao Estado e aos demais agentes sociais, estruturando um sistema aberto, flexível e capaz de absorver novos conteúdos, como meio de concretizar a dignidade da pessoa humana10.

Assim, depreende-se que a ênfase na estrita observância da hierarquia normativa, sobretudo no tocante às disposições concernentes aos direitos humanos, como é o caso da resolução CNJ 487/23, perde relevância, uma vez que os tratados internacionais de direitos humanos compelem os Estados a ampliar a proteção de indivíduos e grupos em condições de vulnerabilidade, como por exemplo as doenças clínicas e as psicopatologias.

A supracitada resolução CNJ 487/23 institui os procedimentos para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial, incluindo indivíduos em sofrimento ou com transtorno mental relacionado ao uso abusivo de álcool e outras drogas, que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, conferindo diretrizes para assegurar o direito dessa população.

Em seu art. 2º postula que:

Resolução CNJ 487/23

[.]

Art. 2°: Para fins desta resolução, considera-se:

I - pessoa com transtorno mental ou com qualquer forma de deficiência psicossocial: aquela com algum comprometimento, impedimento ou dificuldade psíquica, intelectual ou mental que, confrontada por barreiras atitudinais ou institucionais, tenha inviabilizada a plena manutenção da organização da vida ou lhe cause sofrimento psíquico e que apresente necessidade de cuidado em saúde mental em qualquer fase do ciclo penal, independentemente de exame médico-legal ou medida de segurança em curso.

Parágrafo único. Estão abrangidas por esta resolução, nos termos do caput deste art., as pessoas em sofrimento ou com transtorno mental relacionado ao uso abusivo de álcool e outras drogas, que serão encaminhadas para a rede de saúde, nos termos do art. 23- A da lei 11.343/2006, garantidos os direitos previstos na lei 10.216/2001. (Grifos nossos)

A normativa ainda garante:

Resolução CNJ 487/23

[.]

Art. 3º: São princípios e diretrizes que regem o tratamento das pessoas com transtorno mental no âmbito da jurisdição penal:

[.]

VI - o interesse exclusivo do tratamento em benefício à saúde, com vistas ao suporte e reabilitação psicossocial por meio da inclusão social, a partir da reconstrução de laços e de referências familiares e comunitárias, da valorização e do fortalecimento das habilidades da pessoa e do acesso à proteção social, à renda, ao trabalho e ao tratamento de saúde. (Grifos nossos)

VII - o direito à saúde integral, privilegiando-se o cuidado em ambiente terapêutico em estabelecimentos de saúde de caráter não asilar, pelos meios menos invasivos possíveis, com vedação de métodos de contenção física, mecânica ou farmacológica desproporcional ou prolongada, excessiva medicalização, impedimento de acesso a tratamento ou medicação, isolamento compulsório, alojamento em ambiente impróprio e eletroconvulsoterapia em desacordo com os protocolos médicos e as normativas de direitos humanos.

VIII - a indicação da internação fundada exclusivamente em razões clínicas de saúde, privilegiando-se a avaliação multiprofissional de cada caso, pelo período estritamente necessário à estabilização do quadro de saúde e apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, vedada a internação em instituição de caráter asilar, como os HCTPs - Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e estabelecimentos congêneres, como hospitais psiquiátricos.

[.]

Art. 9º: No caso de a pessoa necessitar de tratamento em saúde mental no curso de prisão processual ou outra medida cautelar, a autoridade judicial:

I - no caso de pessoa presa, reavaliará a necessidade e adequação da prisão processual em vigor ante a necessidade de atenção à saúde, para início ou continuidade de tratamento em serviços da Raps, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa.

II - no caso de pessoa solta, reavaliará a necessidade e adequação da medida cautelar em vigor, observando-se as disposições do artigo anterior. (Grifos nossos)

A resolução do CNJ, de forma moderna e contemporânea, preenche a lacuna da lei 10.216/2001, considerando para os devidos fins, inclusive as pessoas com qualquer forma de deficiência psicossocial como população abrangida, para garantia de direitos.

Figura 15: lei 10.216/2001.

Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborada pela Equipe da Vida Mental Perícias, baseados na lei 10.216/200111.

A lei 10.216/2001 versa, em seu art. 2º:

Lei 10.216/2001

[.]

Art. 2°: Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades.

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

[.]

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. (Grifos nossos)

Desse modo, conforme consta no art. 7º da resolução CNJ 487/23:

Resolução CNJ 487/23

[.]

Art. 7°: Nos casos dos art. 4º ou 5º, não sendo hipótese de relaxamento da prisão, a autoridade judicial avaliará a necessidade e adequação de eventual medida cautelar, consideradas as condições de saúde da pessoa apresentada e evitando a imposição de:

I - medida que dificulte o acesso ou a continuidade do melhor tratamento disponível, ou que apresente exigências incompatíveis ou de difícil cumprimento diante do quadro de saúde apresentado; e

II - medidas concomitantes que se revelem incompatíveis com a rotina de acompanhamento na rede de saúde.

[.]

§ 2º - A autoridade judicial levará em consideração as condições que ampliem a vulnerabilidade social, bem como os aspectos interseccionais, no caso de pessoas em situação de rua, população negra, mulheres, população LGBTQIA+, mães, pais ou cuidadores de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas convalescentes, migrantes, povos indígenas e outras populações tradicionais, para que a aplicação de eventual medida seja condizente com a realidade social e o referenciamento aos serviços especializados da rede de proteção social. (Grifos nossos)

Ademais, para este pedido, que está assegurado pelo Código Penal e além da atuação pericial, fundamenta-se legalmente a solicitação dos atendimentos médicos, pois segundo a lei 11.343, de 23/8/200612

Lei 11.343/2006

[.]

Art. 23-A: O tratamento do usuário ou dependente de drogas deverá ser ordenado em uma rede de atenção à saúde, com prioridade para as modalidades de tratamento ambulatorial, incluindo excepcionalmente formas de internação em unidades de saúde e hospitais gerais.

[...]

Art. 26: O usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de segurança, têm garantidos os serviços de atenção à sua saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário.

[.]

Art. 45: É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.

Art. 46: As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Grifos nossos)

Além da abordada resolução CNJ 487/23, lei 10.216/2001 e lei 11.343/2006, o tratamento condizente às necessidades do Sr. XXX é assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 196º:

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

[.]

Art. 196°: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (Grifos nossos)

Desse modo, conclui-se que o Avaliado que necessite iniciar tratamentos especializados em saúde mental, com indicação técnica médica em interface com a jurídica em ambiente ambulatorial ou de internação, a depender da gravidade dos quadros clínicos que forem aferidos em perícia, deve "ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades".

Em casos graves, o acompanhamento rigoroso e próximo por parte dos especialistas em saúde mental, com acesso aos tratamentos promovidos por equipe multidisciplinar especializada é a terapêutica ideal, adequada e protetiva, mais segura para a preservação da saúde, integridade física e psíquica e os melhores prognósticos do Avaliado.

A efetividade do tratamento do Avaliado com transtorno mental grave estará relacionada com a assistência multidisciplinar intensiva, incluindo atendimento contínuo aos familiares, para a consolidação saudável de vínculos, como mais um meio de suporte ao bom resultado dos tratamentos.

__________

1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 487. Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. Brasília: CNJ, 2023.

2 BRASIL. Lei n° 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe Sobre a Proteção e os Direitos das Pessoas Portadoras De Transtornos Mentais e Redireciona o Modelo Assistencial em Saúde Mental. Diário Oficial da União, Brasília, 2001.

3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 487. Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. Brasília: CNJ, 2023.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República, Brasília, 1988.

5 BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Presidência da República, Brasília, 2009.

6 BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, 2008.

7 MAZZUOLI, V. O. O novo § 3º do artigo 5º da Constituição e sua eficácia. Revista de Informação Legislativa: Brasília, v. 42, n. 167, p. 93-114, jul./set. 2005.

8 KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

9 TRINDADE, A. A. C. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Limiar do Novo Século: Recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: GOMES, L. F.; PIOVESAN, F. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

10 SARLET, I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

11 BRASIL. Lei n° 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe Sobre a Proteção e os Direitos das Pessoas Portadoras De Transtornos Mentais e Redireciona o Modelo Assistencial em Saúde Mental. Diário Oficial da União, Brasília, 2001.

12 BRASIL. Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Presidência da República, Brasília, 2006.

Hewdy Lobo Ribeiro

VIP Hewdy Lobo Ribeiro

Psiquiatra Forense (CREMESP 114681, RQE 300311), Membro da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria. Atuação como Assistente Técnico em avaliação da Sanidade Mental.

Ana Carolina Schmidt de Oliveira

Ana Carolina Schmidt de Oliveira

Psicóloga (PUC Campinas e UNIR Espanha), especialista em dependência química (UNIFESP), máster em psicologia lega e forense (UNED Espanha).

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