O dilema da prova digital e a teoria da integridade de Ronald Dworkin
O artigo analisa a prova digital no Direito Penal, defendendo que sua admissão deve equilibrar eficácia e proteção de direitos, segundo a integridade jurídica de Dworkin.
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Atualizado às 14:29
A crescente dependência do sistema de justiça criminal em relação à prova digital tem lançado um desafio profundo sobre os alicerces do Direito Processual Penal. O dilema é evidente: de um lado, a prova digital, como dados extraídos de dispositivos eletrônicos e redes sociais, é muitas vezes fundamental para desvendar crimes complexos. Do outro, sua obtenção e utilização podem colidir diretamente com direitos fundamentais, como a privacidade e a inviolabilidade de dados. É nesse campo de batalha que a teoria do Direito como integridade de Ronald Dworkin oferece uma bússola filosófica e prática para guiar a decisão judicial.
O juiz, nesse cenário, não pode ser um mero aplicador de leis ou um tecnólogo. Ele atua como um "Juiz Hércules", na figura idealizada por Dworkin, que tem a árdua tarefa de encontrar a melhor justificação moral e política para o sistema legal. A integridade exige que a decisão judicial seja coerente com o histórico e os princípios do Direito, mas também que os aprimore, tornando-os a melhor versão de si mesmos. Isso significa que, ao lidar com a prova digital, a decisão não pode ser um atalho utilitário que sacrifica direitos em nome da eficiência da persecução penal.
A resolução do dilema entre a busca pela verdade e a proteção de direitos fundamentais, à luz de Dworkin, passa por uma análise de princípios. O juiz deve questionar: a forma como a prova digital foi obtida e apresentada é consistente com os princípios que dão sentido ao nosso sistema de justiça criminal, como o devido processo legal e o contraditório? A decisão de admitir essa prova honra a história de lutas e conquistas por direitos individuais? Ou, ao contrário, ela cria um precedente que enfraquece a proteção da privacidade para as futuras gerações?
Um exemplo prático dessa tensão é a quebra de sigilo telemático sem uma justificação clara. A lei pode permitir em abstrato, mas o juiz, sob a perspectiva da integridade, deve exigir que a decisão de intrusão à vida digital de um indivíduo seja a mais justificável possível. Isso implica uma ponderação cuidadosa, assegurando que o interesse público em desvendar o crime não anule, de forma desproporcional, o direito à privacidade, que é um dos pilares de uma sociedade livre.
Nesse contexto, surge a pergunta-problema que orienta a análise: como a teoria do Direito como integridade pode justificar a adoção de critérios mais rigorosos de admissibilidade da prova penal digital, de modo a conciliar a eficácia da persecução penal com a proteção de direitos fundamentais, como a privacidade e a inviolabilidade de dados, em um cenário de inovações tecnológicas que o legislador não previu?
Um caso concreto que ilustra esse dilema é a questão do acesso a dados armazenados em nuvem. Suponha que, em uma investigação de crimes financeiros, o Ministério Público solicite acesso a e-mails e arquivos de um suspeito que estão em um servidor fora do país, sem a devida cooperação jurídica internacional.
O CPP brasileiro pode não ter uma regra explícita para essa situação, criando um vácuo normativo. Sob a perspectiva do Direito como integridade, o juiz não pode simplesmente autorizar o acesso, baseando-se na urgência da investigação. Ele precisa perguntar: essa decisão, de obter dados de forma unilateral e sem o crivo de outro ordenamento jurídico, é a melhor continuação da história do nosso sistema de garantias? A resposta, à luz de Dworkin, provavelmente seria não.
Outro exemplo é a discussão sobre a admissibilidade de prova obtida de forma ilícita. Imagine que em uma investigação, a polícia consiga acesso ao conteúdo de um smartphone de um suspeito por meio de uma extração de dados realizada sem autorização judicial. O acesso, em si, pode fornecer informações fundamentais sobre um crime grave, como um homicídio. A tentação de usar essa prova é grande. Nesse caso, a teoria de Dworkin oferece um contraponto. O juiz deve analisar se a admissão dessa prova, embora relevante para a busca da verdade material, é consistente com a "história" do nosso ordenamento jurídico. A jurisprudência brasileira e a própria CF/88 já estabeleceram que a prova ilícita, por afrontar direitos fundamentais, deve ser desentranhada do processo. A decisão de admiti-la criaria uma ruptura de integridade, violando os princípios de um processo justo.
Conclusão
A análise demonstra que a prova digital, embora essencial para o enfrentamento da criminalidade contemporânea, só poderá ser admitida em consonância com os princípios que sustentam o processo penal democrático.
A teoria do Direito como integridade de Ronald Dworkin revela-se, nesse ponto, uma ferramenta indispensável para orientar a decisão judicial em um cenário de lacunas legislativas e avanços tecnológicos inesperados. Ao exigir coerência com a história jurídica e a melhor justificação moral possível, a integridade obriga o juiz a rejeitar soluções utilitaristas que comprometam direitos fundamentais em nome da eficiência. Assim, a adoção de critérios mais rigorosos de admissibilidade da prova penal digital não é apenas uma questão de técnica processual, mas de fidelidade aos valores constitucionais que legitimam o sistema de justiça. Nesse sentido, a integridade do direito garante que a inovação tecnológica não se torne uma ameaça às liberdades individuais, mas um novo capítulo de fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
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1 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 257-314.
2 LEARTE, Bruno. Cadeia de custódia da prova penal digital: boas práticas no Ministério Público. In: CONGRESSO INTEGRIDADE: QUESTÕES RELATIVAS À INVESTIGAÇÃO CÍVEL E CRIMINAL. 1. ed. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2025. p. 151-152. Disponível em: www2.cnmp.mp.br. Acesso em: 19 set. 2025.
3 CONJUR. Diário da classe: Ronald Dworkin e o império do direito. Consultor Jurídico, 9 jan. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-09/diario-classe-ronald-dworkin-imperio-direito/. Acesso em: 19 set. 2025.


