Alimentos compensatórios e justiça pós-ruptura: Fim e recomeço
O artigo analisa a reforma do CC que introduz os alimentos compensatórios, diferenciando suas espécies, riscos de confusão conceitual e caminhos para uma justiça familiar mais equitativa.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Atualizado às 14:10
O divórcio, além de seu inegável custo emocional, frequentemente escancara uma dura realidade econômica: a desigualdade. Por décadas, o direito brasileiro tratou dessa questão sob a ótica da caridade, por meio da pensão alimentícia tradicional, um resquício do dever de mútua assistência que, embora essencial, já não responde à complexidade das relações modernas. Hoje, a jurisprudência a considera uma medida excepcional e temporária, um fôlego para a adaptação, mas não uma solução para o desequilíbrio estrutural que o casamento pode criar.
É nesse vácuo que surge a iminente reforma do CC, um divisor de águas que propõe inserir no nosso ordenamento jurídico os chamados "alimentos compensatórios". Inspirada em legislações estrangeiras, a mudança é mais do que bem-vinda; é necessária. Ela visa substituir a antiga lógica do sustento pela moderna noção de compensação, reconhecendo que, muitas vezes, o fim de um projeto de vida a dois deixa um dos parceiros (quase sempre a mulher) em manifesta desvantagem econômica, não por incapacidade, mas como resultado direto das escolhas e sacrifícios feitos em prol da família.
Contudo, a simples positivação de um nome não basta. O sucesso desta necessária evolução dependerá da capacidade de nossos juízes, e advogados de compreenderem as distinções cruciais entre os diferentes institutos que orbitam a compensação pós-divórcio. A experiência de nossos próprios tribunais, marcada por notórias confusões conceituais, e o aprendizado com as cortes estrangeiras nos mostram que o caminho é complexo. Corremos o risco de criar uma colcha de retalhos jurídica se não definirmos com clareza o que é cada verba, para que serve e como deve ser calculada.
Este é o desafio: transformar a letra da lei em justiça real, garantindo que o fim do casamento não seja sinônimo de um abismo financeiro para quem mais se dedicou ao projeto familiar. A reforma nos oferece as ferramentas; a nós, operadores do direito, cabe a responsabilidade de usá-las com precisão e equidade.
Desvendando o quebra-cabeça jurídico: Quem paga o quê no fim da relação?
Para aplicar a justiça no caso concreto, o primeiro passo é entender as ferramentas disponíveis. A "cesta" de verbas pós-divórcio está se diversificando, e cada uma possui natureza, finalidade e requisitos próprios. Confundi-las é o primeiro passo para uma decisão injusta.
Para subsistência (O legado do passado)
Esta é a clássica pensão alimentícia, prevista no art. 1.694 do CC. Sua finalidade é estritamente assistencial: garantir as necessidades vitais de quem não pode se manter por conta própria. A jurisprudência do STJ já consolidou seu caráter excepcional e transitório entre ex-cônjuges, buscando evitar o que se chamou de "incentivo ao ócio". Em uma decisão paradigmática (REsp 933.355/SP), a Corte estabeleceu que não basta a necessidade; é preciso demonstrar a incapacidade de prover o próprio sustento pelo trabalho. Hoje, essa modalidade é a exceção, não a regra.
Compensatórios humanitários (A correção da desigualdade)
Este é o coração da reforma. Proposto no futuro art. 1.709-A, sua natureza é indenizatória. O objetivo não é garantir a sobrevivência, mas sim corrigir ou atenuar a queda brusca do padrão de vida sofrida por um dos parceiros em razão da ruptura. O fato gerador é o desequilíbrio econômico causado pelo fim da relação, especialmente para aquele que sacrificou seu desenvolvimento profissional em prol da família e do lar. Por isso, pode ser concedido mesmo que o beneficiário tenha alguma renda, desde que esta seja insuficiente para evitar a drástica piora em sua condição social.
Compensatórios patrimoniais (O adiantamento da meação)
Completamente distinto do anterior, este instituto, já previsto na lei de alimentos e proposto no art. 1.709-B da reforma, tem natureza puramente compensatória ou ressarcitória. Ele se aplica quando, após a separação e antes da partilha, um dos cônjuges fica na posse e administração exclusiva de bens comuns que geram renda (como aluguéis ou lucros de uma empresa). A finalidade é evitar o enriquecimento sem causa daquele que usufrui sozinho dos frutos que pertencem a ambos, funcionando como um adiantamento da renda da meação. A causa de pedir não é o desequilíbrio de vida, mas o direito do meeiro de receber sua parte nos rendimentos do patrimônio que já lhe pertence.
O perigo da confusão: Lições dos tribunais brasileiros
A teoria é clara, mas a prática forense revela uma perigosa e recorrente confusão conceitual, que a própria jurisprudência do STJ, em sua evolução, nos ajuda a entender. Analisar os erros e acertos de nossos tribunais é o melhor guia para a correta aplicação da futura lei.
Um exemplo emblemático dessa confusão é o julgamento do AgInt no REsp 1.922.307/RJ. Naquele caso, o STJ deferiu "alimentos compensatórios" citando a definição doutrinária correta, associada à correção de um "grave desequilíbrio econômico-financeiro (fundamento dos alimentos humanitários). No entanto, a razão de decidir foi o fato de que "a totalidade dos bens móveis e imóveis do casal está na posse do ex-marido". Ora, este é o fundamento clássico dos alimentos patrimoniais. O Tribunal usou a justificativa de um para conceder o outro, tratando como sinônimos dois institutos de natureza e finalidade completamente distintas.
Felizmente, a jurisprudência evolui. Em um julgamento mais recente, o REsp 1.954.452/SP, o mesmo STJ avançou ao distinguir expressamente a "prestação compensatória" (equivalente aos alimentos humanitários) dos "alimentos ressarcitórios", definindo estes últimos como o pagamento devido por quem fica na administração exclusiva do patrimônio comum, com fundamento na vedação ao enriquecimento sem causa. Esse passo é crucial e alinha-se exatamente à separação proposta na reforma do CC.
Outros casos demonstram a complexidade do tema. No REsp 1.290.313/AL, a Corte definiu os alimentos compensatórios e sua regra de transitoriedade, mas o fez de forma processualmente questionável, concedendo a verba sem um pedido expresso da parte, o que tangencia o ativismo judicial. Já no REsp 1.330.020/SP, o debate foi ainda mais sutil: o que parecia ser uma pensão compensatória foi, ao final, entendido pela maioria como uma "constituição onerosa de renda vitalícia", um substituto da partilha de bens, mostrando como os acordos privados podem criar figuras híbridas.
Esses precedentes são um alerta. A confusão entre os institutos não é mera filigrana acadêmica; ela gera insegurança jurídica e pode levar a decisões desproporcionais e injustas.
A prestação compensatória: O fim do casamento "grátis" na separação de bens
Além dos alimentos compensatórios, a reforma do CC propõe a importação de outro mecanismo fundamental, inspirado no direito espanhol e catalão: a prestação compensatória, aplicável exclusivamente ao regime da separação convencional de bens (art. 1.688, § 2º do projeto).
Seu objetivo é resolver uma iniquidade histórica: o que acontece quando, mesmo sem patrimônio comum, um dos cônjuges se dedica substancialmente ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos, liberando o outro para construir um vasto patrimônio individual? A prestação compensatória vem para responder a essa pergunta. Tem natureza indenizatória e visa compensar o cônjuge que, por meio de sua contribuição não financeira, permitiu que o outro obtivesse um incremento patrimonial superior. Em outras palavras, ela reconhece o valor econômico do trabalho doméstico, garantindo que ele não seja ignorado na dissolução do vínculo.
Como calcular o valor justo? Critérios e possibilidade de cumulação
A grande questão prática é: como quantificar essas verbas?
A apuração não é uma ciência exata e exige uma análise criteriosa do caso concreto.
Para os alimentos compensatórios humanitários, o juiz deve considerar múltiplos fatores, como a duração do casamento, a idade e qualificação profissional do credor, a dedicação passada à família e as chances reais de reinserção no mercado de trabalho. O objetivo não é igualar os patrimônios, mas mitigar a disparidade e a queda do padrão de vida.
Nos alimentos compensatórios patrimoniais, o cálculo é mais objetivo: corresponde à parte da renda líquida gerada pelos bens comuns sob administração exclusiva. Apura-se o rendimento (aluguéis, lucros) e deduzem-se os custos.
Para a prestação compensatória (regime de separação), a experiência estrangeira oferece parâmetros objetivos. A jurisprudência espanhola, por exemplo, utiliza como referência o valor do salário mínimo interprofissional ou o custo que o outro cônjuge teria para contratar um terceiro para realizar as mesmas tarefas domésticas, quantificando assim a economia gerada pelo trabalho do parceiro.
A cumulação de pedidos é perfeitamente possível. Uma ex-cônjuge pode, por exemplo, pleitear simultaneamente:
- Alimentos compensatórios patrimoniais: Porque o ex-marido está na posse exclusiva de uma empresa do casal.
- Alimentos compensatórios humanitários: Porque, mesmo recebendo parte dos lucros, sua dedicação exclusiva à família por 20 anos a deixou sem carreira, gerando uma queda abrupta em seu padrão de vida.
- Alimentos para subsistência: Se, além de tudo, ela não tiver o mínimo para se manter ou se reinserir no mercado de trabalho à curto prazo.
As causas de pedir são distintas e autônomas. No entanto, é crucial notar que o deferimento de uma verba impactará na análise da outra. O recebimento de alimentos patrimoniais, por exemplo, deve ser considerado ao se quantificar a necessidade dos alimentos humanitários, pois a existência dessa renda diminui a extensão do desequilíbrio econômico.
Para uma justiça familiar mais equitativa: O caminho a seguir
A reforma do CC representa um avanço civilizatório. Ao positivar os alimentos compensatórios e a prestação compensatória, o Brasil se alinha às legislações mais modernas e reconhece que a dissolução de um vínculo afetivo não pode ser uma sentença de empobrecimento para quem se dedicou ao lar e à família. Contudo, como nos adverte a experiência estrangeira, a lei, por si só, não opera milagres.
A Espanha nos ensina que, mesmo com uma legislação clara e uma jurisprudência consolidada em sua corte superior, a confusão conceitual ainda persiste nas instâncias inferiores, gerando decisões incoerentes. O México, por sua vez, nos inspira com sua forte ênfase na perspectiva de gênero, determinando que os juízes atuem de forma proativa para corrigir as assimetrias e a invisibilidade histórica do trabalho doméstico.
Para o Brasil, a lição é clara: precisamos unir a coerência conceitual do modelo espanhol com a sensibilidade de gênero do mexicano. A aprovação da reforma é apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio será a sua implementação. Será preciso investir em capacitação para que a magistratura e os demais operadores do direito dominem as nuances de cada instituto, evitando os erros de sobreposição vistos em julgados como o AgInt no REsp 1.922.307/RJ.
A finalidade última desses novos mecanismos não é criar uma dependência eterna, mas sim promover a autonomia de forma justa. É dar a cada parte, como disse a Baronesa Hale da Suprema Corte inglesa, "um começo igual no caminho para uma vida independente". O objetivo é reequilibrar a balança, compensar a perda de oportunidades e garantir que os custos da dedicação à família sejam divididos com equidade no final da jornada. Apenas assim a dissolução do casamento deixará de ser um fator de perpetuação da desigualdade para se tornar, de fato, o início de dois futuros independentes e dignos.
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Fonte bibliográfica
ROCHA, Beatrice Merten. A construção dos alimentos compensatórios no Brasil à luz do direito estrangeiro. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 11, n. 9, p. 1693-1724, set. 2025. DOI: https://doi.org/10.51891/rease.v11i9.21025.


