Tema 1.389: O esvaziamento jurisdicional da Justiça do Trabalho
O artigo analisa a pejotização, sua relação com o Tema 1.389 do STF e apresenta julgados, unindo doutrina e jurisprudência para esclarecer o fenômeno jurídico.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Atualizado às 14:15
I - O esvaziamento jurisdicional da Justiça do Trabalho - Supressão constitucional - EC 45/04
Antes de iniciarmos a breve digressão sobre a tentativa de supressão jurisdicional da justiça do trabalho, mister salientar a importância da EC 45/04 no tocante a competência da justiça laboral para dirimir ações levadas à sua apreciação.
Destarte, embora seja muito prático nos dias atuais abrirmos a Carta Magna de 1988 e conferir a ampla competência da justiça do trabalho, atualmente delimitada no art. 114 da CRFB, é sobremodo importante reconhecer o papel histórico da referida emenda constitucional no que se refere a delimitação da competência jurisdicional da justiça obreira.
À guisa de reforço, a EC aumentou sensivelmente a competência da Justiça do Trabalho ao modificar a redação do art. 114 da CF/88, atribuindo-lhe, por exemplo, as ações de cobrança de contribuição sindical (antes da Justiça Comum), e as ações em face dos atos de fiscalização do trabalho (que eram da competência da Justiça Federal).
Outrossim, constata-se, na atualidade, a escassez de trabalhos acadêmicos e artigos jurídicos que abordem a relevância da referida EC, amplamente conhecida no meio jurídico como a "Reforma do Poder Judiciário". Todavia, não se pretende aqui tecer críticas a tal ausência, por se tratar de questão irrelevante para a digressão do tema proposto neste artigo.
Considerando a grande relevância da aludida emenda para a justiça do trabalho, faço aqui uma menção novamente ao art. 114 da CRFB, desta vez com enfoque no inciso "I", dos quais possuem a seguinte redação: Art. 114 - Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar; I) as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de Direito Público externo e da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Note, quando a redação do inciso se refere a "ações oriundas da relação de trabalho", abre-se margem a uma única interpretação, à luz da hermenêutica literal e teleológica, tal seja a de outorgar à justiça do trabalho a competência jurisdicional de dirimir ações oriundas da relação de trabalho. Recordando-se que "trabalho" explicitamente citado é gênero, ou seja, tal redação açambarca as diversas espécies de trabalho.
Nessa vereda, o sobrestamento das ações trabalhistas que versam sobre fraudes do contrato de prestações de serviços, sob determinação da Suprema Corte de Justiça, causa sobremodo insegurança na jurídica e levanta dúvidas quanto ao futuro da justiça obreira, visto que eventual deslocamento de competência para Justiça Comum para apreciação e julgamento de tais ações, pode trazer prejuízos irreparáveis na realidade laboral de milhares de trabalhadores ou "empregados" deste país.
É nesse cenário que se impõe a necessidade de uma análise crítica e aprofundada quanto às recentes movimentações interpretativas que visam restringir ou relativizar a competência constitucional da Justiça do Trabalho. A tentativa de supressão jurisdicional, manifestada por meio de decisões que remetem à Justiça Comum causas evidentemente laborais, especialmente aquelas envolvendo vínculos mascarados pela pejotização ou outras formas de precarização, evidencia uma preocupante tendência de esvaziamento da atuação especializada da Justiça do Trabalho.
Cumpre salientar que a EC 45/04, não apenas reafirmou, como ampliou expressivamente a competência da Justiça Laboral. O novo texto do art. 114 da CF/88 passou a contemplar todas as ações oriundas da relação de trabalho, e não apenas aquelas fundadas em contrato formal de emprego. Essa ampliação visou justamente reconhecer a multiplicidade de formas de prestação laboral existentes na sociedade contemporânea, reforçando a missão protetiva dessa esfera especializada do Judiciário.
A expressão "relação de trabalho", por sua amplitude, não se restringe ao vínculo empregatício tradicional. Abrange, por exemplo, os casos em que há indícios de subordinação estrutural, dependência econômica ou fraudes contratuais, ainda que disfarçadas de prestação autônoma ou empresarial. É nesse sentido que a Justiça do Trabalho se consolida como o foro adequado para apreciar e julgar situações que demandem a aplicação dos princípios protetivos do Direito do Trabalho.
O sobrestamento de ações trabalhistas sob a justificativa de que envolvem contratos firmados entre pessoas jurídicas, como no caso da repercussão geral do Tema 1.389 do STF, representa não apenas um retrocesso na concretização dos direitos sociais, mas também um risco concreto de desmonte institucional. Transferir tais litígios à Justiça Comum ignora a especialização técnica da Justiça do Trabalho, bem como a sua sensibilidade histórica para com as desigualdades presentes na relação capital-trabalho.
Portanto, qualquer tentativa de deslocamento de competência deve ser vista com cautela e contestada nos âmbitos jurídico e acadêmico. A Justiça do Trabalho não pode ser esvaziada de sua função precípua, sob pena de fragilização das garantias fundamentais dos trabalhadores e de comprometimento da ordem jurídica trabalhista. Em tempos de intensificação das formas de precarização do trabalho, fortalecer a Justiça do Trabalho é, mais do que nunca, uma medida de resguardo ao Estado Democrático de Direito e à dignidade do trabalho humano.
II - Uma breve análise das razões de decidir de magistrados trabalhistas - Reconhecimento da relação de emprego - Fraude ao contrato de trabalho
Ab initio, sobremodo importante analisarmos o comando sentencial proferido pelo IL. magistrado do Trabalho do TRT-8 - Pedro De Meirelles, nos autos do processo 0000906-74.2018.5.08.0110. A decisão proferida nos autos supra expendido demonstra com clareza a aplicação prática de princípios e dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, notadamente os arts. 2º, 3º e 9º, bem como do princípio da primazia da realidade.
O magistrado, diante da narrativa inicial e da defesa apresentada, delimitou o cerne da controvérsia: a existência ou não de vínculo empregatício entre o reclamante e a primeira reclamada, apesar da constituição de pessoa jurídica em nome do trabalhador. Outrossim, a análise probatória foi conduzida sob a perspectiva de que, para a configuração do vínculo de emprego, devem estar presentes os requisitos da relação empregatícia, trabalho por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação.
Observou-se que a prestação de serviços pelo reclamante não foi impugnada, sendo incontroverso o exercício da função de roçador em atividade-fim da empresa. Esse ponto, aliado ao depoimento pessoal, ao testemunho e às declarações do preposto, revelou não apenas a presença de pessoalidade e onerosidade, mas também uma subordinação estrutural, com pagamento mensal e descontos por faltas.
Nesta senda, O magistrado daquele regional destacou ainda que a contratação por meio de pessoa jurídica, fenômeno conhecido como "pejotização", teve por objetivo mascarar uma relação de emprego e afastar a aplicação da CLT, configurando fraude à legislação trabalhista. Ademais, havia cerca de 70 prestadores de serviços atuando exclusivamente na atividade-fim da empresa, sem empregados formais, foi interpretada como indicativo inequívoco de burla ao ordenamento jurídico, atraindo a incidência do art. 9º da CLT e a nulidade do contrato civil celebrado.
À guisa de elucidação, outro ponto relevante na fundamentação da referida sentença foi a inversão do ônus probatório: a reclamada, ao alegar a inexistência de vínculo, assumiu o encargo de provar a ausência dos requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT, mas não produziu elementos suficientes para afastar a tese autoral. Assim, prevaleceu a máxima de que a forma não se sobrepõe à realidade, levando ao reconhecimento do vínculo empregatício e à determinação de anotação da CTPS do reclamante.
Destarte, o raciocínio adotado pelo magistrado reflete uma postura protetiva e garantista, coerente com a natureza tutelar do Direito do Trabalho. A decisão demonstra como a Justiça do Trabalho atua para desconsiderar estruturas contratuais artificiais que visam esvaziar direitos sociais, reafirmando que a utilização de pessoas jurídicas para prestação de serviços pessoais e subordinados configura fraude e deve ser neutralizada pelo Poder Judiciário.
Nessa esteira, em caso semelhante, a excelentíssima Ginna Isabel Rodrigues Veras, juíza trabalhista da vara do trabalho de Floriano, TRT-22, proferira nos autos do processo 0000455-66.2021.5.22.0106, o comando sentencial reconhecendo a fraude a contrato de emprego revestido de fantasiosa característica civil de prestação de serviços.
Com efeito, a decisão proferida no caso supra citado evidenciou a aplicação direta dos arts. 2º, 3º e 9º da CLT, além do princípio da primazia da realidade, para o reconhecimento da relação de emprego e a descaracterização da "pejotização" praticada pelo empregador. A IL. magistrada verificou, a partir da prova oral, documental e confessional, que a constituição de pessoa jurídica pela trabalhadora serviu apenas para mascarar a relação empregatícia, sendo a prestação de serviços realizada de forma pessoal, contínua, remunerada e subordinada.
Ademais, merece destaque as premissas sentenciais da magistrada, no tocante a fraude do contrato de emprego, com uma maculosa formalização de um contrato de prestação de serviços a fim de se esquivar das obrigações trabalhistas elencados na CLT, senão vejamos:
[...] "O fato de a prestação de serviços ocorrer por intermédio de pessoa jurídica não obsta o reconhecimento da relação de emprego. A situação corresponde ao fenômeno da "pejotização", em que o tomador de serviços fomenta a criação de pessoa jurídica para formalização da prestação de serviços. A conduta assumida pelo tomador visa esquivá-lo das obrigações trabalhistas, transmitindo ao trabalhador os riscos pela atividade especializada prestada o que importa na precarização da relação de trabalho. Ora, o estabelecimento formal de contrato da prestação de serviços entre pessoas jurídicas não constitui óbice à pretensão tendo em vista o privilégio à primazia da realidade sobre a forma. Assim, a prática adotada é nula ao teor do art. 9º da CLT." [...]
Vale dizer, a prova produzida foi decisiva para a formação do convencimento judicial. O depoimento da preposta da reclamada revelou que não houve contrato formal entre as empresas, apesar de a reclamada formalizar contratos escritos com outras fornecedoras de refeições. Tal circunstância, somada ao fato de que a reclamante executava suas atividades nas dependências da reclamada, utilizando-se integralmente de seus equipamentos, insumos e estrutura, evidenciou a subordinação e a inserção da atividade da autora no ciclo produtivo da empresa.
Nesse toar, outro aspecto relevante foi a análise da pessoalidade. Apesar da defesa sustentar que a reclamante poderia ser substituída, ficou demonstrado que tais substituições eram raras e condicionadas à autorização do gestor administrativo da reclamada, não havendo prova de que a suposta funcionária mencionada no curso da instrução efetivamente tenha assumido as funções da reclamante. Ao contrário, a prova testemunhal reforçou que a prestação de serviços era realizada, de forma ordinária, pela própria autora.
Ao final, a decisão declarou nulo o contrato formalizado por meio da pessoa jurídica, com fulcro no art. 9º da CLT, reconheceu o vínculo empregatício desde 31/5/17 até 26/7/21 e determinou a anotação da CTPS, além de condenar ao pagamento das verbas decorrentes, horas extras e domingos laborados em dobro. O raciocínio adotado reafirma a função protetiva do Direito do Trabalho e o papel da Justiça do Trabalho na repressão a fraudes contratuais que buscam afastar direitos sociais por meio de formalidades artificiais.
Lado outro, importante trazer à colação, o entendimento consolidado pela egrégia Corte Trabalhista ora TST. O IL. ministro Mauricio Godinho Delgado, sob relatoria do processo 1001557-43.2021.5.02.0016, reafirmou o entendimento no sentido de que a chamada "pejotização" configura fraude à legislação trabalhista quando, sob a aparência de uma contratação entre pessoas jurídicas, se encontram presentes os requisitos previstos nos arts. 2º e 3º da CLT. O acórdão aplicou de forma expressiva o princípio da primazia da realidade, ressaltando que a formalidade contratual não se sobrepõe à verificação da prestação pessoal, contínua, subordinada e onerosa do trabalho.
Nesse sentido, mister mencionar o referido acórdão, prolatado monocraticamente pelo IL. ministro, in verbis:
[...] "Nesse cenário, considerando que os elementos de prova colhidos no curso da instrução processual confirmam o preenchimento simultâneo dos elementos caracterizadores da relação de emprego, pois o autor prestava serviços regular e habitualmente, com subordinação, mostrando-se imperiosa, portanto, a manutenção da sentença que reconheceu o liame empregatício, e seus consectários legais, não havendo que se falar na reforma pretendida. Mantenho, inclusive nos demais aspectos e parâmetros quanto ao decidido em relação às verbas rescisórias. Somente não se enquadrará como empregado o efetivo trabalhador autônomo ou eventual. Essa, contudo, não é a hipótese dos autos, em que o contexto fático delineado pela Corte de origem - insuscetível de revisão, a teor da Súmula 126/TST - permite concluir que o enquadramento do Reclamante como pessoa jurídica, ao invés de empregado, se revelou como evidente fraude trabalhista. Desse modo, não se vislumbra qualquer equívoco no enquadramento jurídico dos fatos realizado pelo TRT, que se apoiou em análise detida e pormenorizada dos documentos e depoimentos testemunhais (art. 131 do CPC/1973 - art. 371 do CPC/2015)." [...]
Como visto, o TST destacou que a criação de pessoa jurídica pelo trabalhador, especialmente quando estimulada ou imposta pelo tomador de serviços, não afasta a caracterização do vínculo empregatício. No caso sub judice, restou evidenciado que o autor desempenhava atividades diretamente relacionadas à atividade-fim da empresa, inserindo-se na sua estrutura produtiva e seguindo rotinas, horários e diretrizes determinadas pela reclamada. Tais elementos configuraram subordinação objetiva e estrutural, fundamentos cada vez mais utilizados pela Corte para reconhecer a fraude.
Nesse ínterim, outro aspecto relevante apontado pelo acórdão foi o ônus da prova. Ao sustentar a autonomia do trabalhador, a reclamada atraiu para si a incumbência de demonstrar a ausência dos requisitos do vínculo, conforme art. 818 da CLT e art. 373, II, do CPC. A ausência de elementos concretos que demonstrassem efetiva liberdade na execução das tarefas, bem como a inexistência de prova de substituições livres e de clientela própria, reforçaram a tese de que a prestação de serviços era típica de um contrato de trabalho.
Destarte, o julgamento também enfatizou que a utilização da "pejotização" acarreta precarização das condições laborais, por afastar obrigações como o pagamento de verbas rescisórias, recolhimento do FGTS e contribuições previdenciárias. Ao declarar a nulidade do contrato de prestação de serviços, com fulcro no art. 9º da CLT, e reconhecer o vínculo empregatício, o TST reafirmou sua função de tutela contra práticas empresariais que, sob roupagem formal lícita, buscam subtrair direitos trabalhistas indisponíveis.
Por derradeiro, impende salientar que as decisões acima analisadas refletem o papel central da Justiça do Trabalho como instrumento de efetivação de direitos sociais e de combate a práticas fraudulentas que visam esvaziar a proteção conferida pela CLT. A jurisprudência consolidada, tanto nos Tribunais Regionais quanto no âmbito do TST, demonstra que o fenômeno da "pejotização" não pode servir de escudo para suprimir garantias mínimas asseguradas constitucional e legalmente aos trabalhadores, impõe-se ao magistrado a tarefa de aplicar o princípio da primazia da realidade e desconsiderar formalidades artificiais criadas para mascarar a verdadeira natureza da relação jurídica.
Outrossim, a atuação jurisdicional, nesse cenário, transcende a mera interpretação literal da lei, alcançando o seu sentido teleológico e a sua função social, de forma a coibir condutas empresariais que transferem indevidamente ao trabalhador os riscos da atividade econômica. Ao reconhecer e declarar a nulidade de contratos civis fraudulentos, determinando a anotação da CTPS e o pagamento das verbas devidas, a Justiça do Trabalho reafirma sua vocação protetiva e garante a preservação do patamar civilizatório mínimo estabelecido pela legislação laboral.
Assim, o enfrentamento da "pejotização" e de outras formas de precarização das relações laborais não se limita a reparar danos individuais, mas cumpre relevante função pedagógica e preventiva, desestimulando práticas lesivas que, sob aparente legalidade, subvertem a ordem jurídica trabalhista. Dessa forma, as decisões ora examinadas evidenciam que a atuação firme e criteriosa da Justiça do Trabalho é indispensável para a manutenção do equilíbrio nas relações de trabalho, a promoção da justiça social e a defesa dos direitos fundamentais do trabalhador.
III - Retrocesso jurídico na legislação trabalhista - Iminente extinção legislativa do decreto-lei 5452/43 (CLT)
Como relatado alhures, as constantes mudanças sociais geram reflexos diretamente na seara laboral, visto que no cenário atual o corpo de normas celetistas já não é mais visto como uma conquista social-laboral e sim como uma regressão, haja vista a busca incessante pelo enriquecimento rápido e sem esforços por parte de muitos.
Outrossim, o decreto-lei 5452/43 ora CLT, representa uma conquista jurídico-social, sendo sua aplicação nas relações de trabalho de caráter imperativo, sob pena de total aviltamento de direitos fundamentais dos trabalhadores. A sua aplicação nas relações laborais assume caráter imperativo, funcionando como um verdadeiro alicerce protetivo dos direitos dos trabalhadores. A imperatividade da CLT significa que suas normas não podem ser livremente dispostas ou suprimidas pela vontade das partes, sob pena de permitir o retorno a práticas laborais abusivas e a um retrocesso social inadmissível.
Destarte, caso o referido texto normativo venha a ser substancialmente alterado ou esvaziado, estar-se-á diante de um processo de fragilização das garantias laborais, o que pode acarretar impactos severos não apenas para os trabalhadores individualmente considerados, mas para a coesão e estabilidade social como um todo. Assim, preservar os princípios e fundamentos da CLT é resguardar conquistas históricas e assegurar que o desenvolvimento econômico ocorra em harmonia com a valorização do trabalho humano.
Nesse ínterim, o reconhecimento da repercussão geral do Tema 1.389 pela Suprema Corte, tal decisão considerou a possível incompetência da justiça do trabalho para dirimir eventuais ilicitudes incontidas no contrato de trabalho pactuado por PJs.
À guisa de reforço, diante da crescente insegurança jurídica que permeia as relações de trabalho, suscita-se a seguinte indagação: seria possível conferir ao trabalhador a faculdade de optar entre ser contratado sob o regime previsto na Consolidação das Leis do Trabalho ou mediante a formalização de vínculo por intermédio de pessoa jurídica? Tal questionamento, por si só, revela sua inconsistência quando nos recordamos da chamada "escolha" entre a extinta estabilidade decenal e a adesão ao regime do FGTS, uma opção que, na prática, mostrou-se amplamente condicionada pelas circunstâncias econômicas e estruturais impostas ao trabalhador. Assim, a alegada liberdade de escolha, nesse contexto, tende a se configurar mais como uma imposição velada do que como uma verdadeira manifestação de autonomia da vontade.
Como bem pontuado pelos ilustres procuradores do trabalho Renan Bernardi Kalil e Priscila Dibi Schvarcz, "Esta possível legalização de contratações fraudulentas, travestidas de empreendedorismo, representa um grave retrocesso nos direitos fundamentais conquistados ao longo de décadas de lutas sociais." - "Aqui reside o foco da questão: transformar o Direito do Trabalho em uma opção para as empresas é o mesmo que aniquilá-lo."
Dessa forma, ao se admitir a flexibilização exacerbada da legislação trabalhista, especialmente por meio da chancela judicial à formalização de vínculos por intermédio de pessoas jurídicas, corre-se o risco de institucionalizar práticas precarizantes, mascaradas sob o manto da "modernização" ou do "empreendedorismo". Trata-se de uma inversão de valores, na qual os direitos sociais, longe de representarem entraves ao progresso, são erroneamente vistos como obstáculos ao desenvolvimento econômico.
A legitimação de contratos travestidos de legalidade, mas que ocultam verdadeiras relações de emprego, compromete a própria essência do Direito do Trabalho, cujo propósito maior é o de proteger a parte hipossuficiente da relação jurídica. Permitir a relativização desses direitos não apenas enfraquece o vínculo contratual em sua substância, mas também compromete a função social do trabalho, valor consagrado pela Constituição da República.
Em suma, o cenário atual exige vigilância redobrada por parte das instituições, dos operadores do Direito e da sociedade civil. É imprescindível que se promova um resgate do valor intrínseco do trabalho humano, com a reafirmação da CLT como instrumento de justiça social e equilíbrio nas relações laborais. Somente assim será possível garantir que o progresso caminhe lado a lado com a dignidade do trabalhador, e não às suas custas.
IV - Considerações finais
O estudo desenvolvido ao longo deste artigo evidencia que o fenômeno da pejotização, quando utilizado como meio de dissimular vínculos empregatícios, configura prática fraudulenta incompatível com os princípios e garantias fundamentais do Direito do Trabalho. As decisões analisadas, oriundas tanto de Tribunais Regionais quanto do TST, reafirmam que a forma jurídica não pode prevalecer sobre a realidade fática, sendo imperiosa a aplicação do princípio da primazia da realidade sempre que presentes os elementos caracterizadores da relação de emprego previstos nos arts. 2º e 3º da CLT.
A análise crítica do Tema 1.389, em trâmite no STF, revela o grave risco de esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho, especialmente se prevalecer o entendimento de que contratos formalizados entre pessoas jurídicas, ainda que fraudulentos, escapariam à sua apreciação. Tal interpretação desconsidera o comando expresso do art. 114 da CF/88, que atribui a este ramo especializado do Judiciário a competência para processar e julgar ações oriundas da relação de trabalho, independentemente da roupagem contratual adotada pelas partes.
Nessa linha intelectiva, a eventual transferência de tais litígios à Justiça Comum compromete não apenas a especialização técnica e a celeridade processual, mas também enfraquece a proteção do trabalhador frente ao poder econômico do empregador. Mais do que uma questão processual, trata-se de preservar a própria razão de ser da Justiça do Trabalho como guardiã dos direitos sociais e instrumento de concretização da dignidade humana no âmbito laboral.
Destarte, é inegável que a ordem jurídica brasileira vive um momento de tensionamento entre, de um lado, a busca por flexibilidade e redução de custos nas relações produtivas e, de outro, a necessidade de assegurar um patamar mínimo civilizatório aos trabalhadores. A história demonstra que retrocessos nesta seara têm repercussões profundas não apenas na vida individual de milhões de pessoas, mas na própria estabilidade social e econômica do país.
Diante disso, impõe-se reafirmar que a competência da Justiça do Trabalho para apreciar casos de pejotização fraudulenta não é uma mera opção interpretativa, mas uma exigência constitucional e um imperativo de justiça social. Qualquer tentativa de restringi-la deve ser vista com extrema cautela, sob pena de se institucionalizar a precarização das relações de trabalho.
Por todo o exposto, este trabalho encerra-se com um apelo ao STF para que, ao julgar definitivamente o Tema 1.389, preserve a integridade do sistema protetivo trabalhista e reafirme a competência constitucional da Justiça do Trabalho. Tal decisão não apenas garantirá segurança jurídica, mas também assegurará que a modernização das relações de trabalho ocorra em harmonia com a preservação da dignidade humana e dos direitos fundamentais historicamente conquistados pela classe trabalhadora.
___________________
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 2018. Disponível em http://www.ltr.com.br/loja/folheie/6184.pdf
Pejotização E Relações De Trabalho. Disponível em file:///C:/Users/mvict/Downloads/artigo-02%20(1).pdf
A PEJOTIZAÇÃO SEPULTA O DEBATE SOBRE O FIM DA ESCALA 6 X 1. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/juris/a-pejotizacao-sepulta-odebate-sobre-o-fim-da-escala-6-x-1
EMENDA 45/04 - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-set-29/izidoro-paniago-emendaconstitucional-suprimiu-competencia-justica-trabalho/
Tribunal Regional do Trabalho da 8ª região RO n.º 0000906-74.2018.5.08.0110 Disponível em: https://pje.trt8.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0000906- 74.2018.5.08.0110/1#b5e8871
Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região n.º 0000455-66.2021.5.22.0106 Disponível em: https://pje.trt22.jus.br/consultaprocessual/detalheprocesso/0000455-66.2021.5.22.0106/1#c00bcb6
Tribunal Superior do Trabalho Processo nº TST-AG-AIRR-1001557- 43.2021.5.02.0016:https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consulta TstNumUnica.do;jsessionid=dpcw56Ql0qsUawr_ZWpU3RKAgmxeFzHErbSlmNw.consultaprocessual-39- xddnp?conscsjt=&numeroTst=1001557&digitoTst=43&anoTst=2021&orgaoTst=5 &tribunalTst=02&varaTst=0016&consulta=Consultar
Pejotização' Do Trabalho: O Que Está Em Jogo No Supremo https://www.conjur.com.br/2025-mai-01/pejotizacao-do-trabalho-o-que-esta-emjogo-no-supremo/?utm_source=chatgpt.com
BRASIL. [Consolidação das Leis do Trabalho]. Decreto-Lei Nº 5.452, DE 1º DE MAIO DE 1943. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del5452.htm
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /constituição/constituição.h


