Lei de alienação parental: Análise crítica
A lei 12.318/10, criada para proteger crianças da alienação parental, revela falhas e riscos de uso indevido, exigindo revisão urgente.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Atualizado às 07:39
A lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a tipificação dos chamados atos de alienação parental, prevendo medidas sancionatórias e protetivas voltadas à preservação do convívio familiar. À época de sua edição, o diploma foi saudado como avanço na tutela dos direitos da criança e do adolescente. Contudo, a experiência acumulada em mais de uma década de vigência revela falhas estruturais profundas.
À luz da Constituição de 1988, especialmente do art. 227, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, é dever do Estado assegurar proteção integral à infância e à adolescência, com absoluta prioridade. Assim, é imperativo revisitar a lei 12.318/10, confrontando-a com os princípios constitucionais e com o conhecimento científico acumulado, a fim de verificar se sua manutenção atende ao verdadeiro interesse da criança.
A lei inspirou-se diretamente na teoria da SAP - "Síndrome da Alienação Parental", proposta pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner nos anos 1980. Tal conceito, contudo, não possui validação científica, não foi reconhecido como síndrome pela American Medical Association, pela American Psychological Association e não consta no DSM - Manual de Diagnóstico e Estatística da American Psychiatric Association como um transtorno psiquiátrico1. Assim, a adoção acrítica de uma síndrome inexistente compromete o alicerce normativo da lei.
Levantamentos demonstram que a alienação parental ainda é um fenômeno pouco investigado empiricamente, embora seja uma temática em evidência no meio Jurídico e psicológico. Em estudo realizado por FERMANN e HABIGZANG2, os principais resultados apontaram que "nos processos analisados com suspeita de alienação parental, as mães foram identificadas como supostas alienadoras, enquanto os pais foram considerados como supostos alienados em grande parte dos processos. Os processos não iniciaram com a queixa de alienação parental, com exceção de três. As crianças envolvidas foram predominantemente meninas, filhas únicas, em idade escolar. Dentre os processos analisados e sentenciados, apenas dois foram considerados como AP pelo Juiz."
Outra questão que é trazida é a utilização da lei de alienação parental como nova ferramente de violência de gênero3, uma vez que parcela significativa da guarda ou da moradia de referência é da mulher mãe4. Mais, em parcela significativa dos casos, alegações de alienação parental foram levantadas justamente em contextos de denúncia de abuso sexual e a alegação de alienação parental tem funcionado como estratégia de defesa preferencial de perpetradores de violência sexual contra crianças e adolescentes, invertendo a lógica protetiva que deveria nortear o sistema jurídico.
Essa inversão de papéis revela como a lei, em vez de proteger, pode ser instrumentalizada para silenciar denúncias de violência e constranger a genitora cuidadora. A consequência é o enfraquecimento da confiança no sistema de justiça, a revitimização e o fortalecimento de ofensores.
Esta dinâmica é particularmente perversa porque utiliza o próprio sistema de proteção como instrumento de perpetuação da violência. Quem deveria ser protegido passa a ser forçado à convivência com seu agressor, sob o respaldo de uma decisão judicial fundamentada em teoria científica desacreditada. Os dados analisados permitem afirmar que a lei 12.318/10 fracassou em seu intento protetivo. Mais do que ineficaz, tem servido como mecanismo de perpetuação de violências e silenciamento.
A análise crítica da lei de alienação parental revela uma norma que, embora concebida com propósitos protetivos, tem produzido efeitos sistematicamente contrários aos direitos fundamentais de crianças, adolescentes e mulheres. Seus fundamentos científicos desacreditados, sua aplicação discriminatória e seus impactos deletérios sobre o sistema de proteção à infância tornam imperiosa sua revogação5.
Ademais, o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de instrumentos suficientes para proteger o direito à convivência familiar sem os riscos sistêmicos da lei de alienação parental. A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o CC e a lei Maria da Penha fornecem arcabouço normativo adequado para enfrentar conflitos familiares e proteger crianças e adolescentes de violência.
Revogar a lei de alienação parental é reafirmar a centralidade da criança e adolescente como sujeitos de direitos, recolocando o ordenamento jurídico brasileiro em sintonia com parâmetros constitucionais e científicos. Somente assim poderemos cumprir, com integridade e coragem, o mandamento do art. 227 da Constituição: assegurar à criança e adolescente, com absoluta prioridade, uma vida livre de violência e opressão.
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1 Recomendação 003, de 11 de fevereiro de 2022, do Conselho Nacional de Saúde.
2 https://www.redalyc.org/journal/4595/459551383006/html/, consultado em 15.09.2025.
3 https://ibdfam.org.br/artigos/1469/A+lei+de+aliena%C3%A7%C3%A3o+parental%3A+da+promessa+de+prote%C3%A7%C3%A3o+%C3%A0+banaliza%C3%A7%C3%A3o+de+sua+aplica%C3%A7%C3%A3o, consultado em 15.09.2025.
4 Os pais são os requerentes das ações de família alegando a incidência da alienação parental em 72% dos casos, sendo que a mãe aparece como suposta alienadora em 71,4% dos casos, podendo concluir que alvo é a mãe, já que ela é guardiã em quase todos os casos (BARBOSA, Luciana de Paula Gonçalves. CASTRO, Beatriz Chaves Ros de. Alienação Parental: Um retrato dos processos e das famílias em situação de litígio. Brasília: Liber Livro, 2013).
5 Tramitam no Congresso Nacional o PL 2812/2022 (Câmara dos Deputados) e PL 1372/2023 (Senado Federal).
Juliana Coelho de Lavigne
Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul.


