PEC da Blindagem: Quando a pressa é inimiga da Constituição e a garantia se torna privilégio
Análise crítica da PEC 3/21 revela afronta à Constituição ao transformar garantias institucionais em privilégios pessoais e enfraquecer a democracia.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Atualizado às 10:22
A complexidade e a dinâmica das relações de poder e dos interesses políticos fazem crer que até mesmo os melhores institutos jurídicos podem servir aos piores propósitos. A chamada PEC da Blindagem e os mecanismos de proteção que ela institui são um bom exemplo disso.
Sem adentrar nas importantes nuances regimentais já questionadas em mandados de segurança impetrados pelos deputados Kim Kataguiri e Lindbergh Farias, nos quais são alegadas violações tanto à CF/88 quanto ao regimento interno da Câmara dos Deputados, proponho uma reflexão sobre alguns aspectos constitucionais que considero serem os mais relevantes para as discussões públicas.
A pressa é inimiga da Constituição
O processo de deliberação foi realizado às pressas no mesmo dia em clara manobra política para restringir o diálogo e a fiscalização pública, o que fere a lógica constitucional do art. 60, §2°. O objetivo do dispositivo mencionado - que exige dois turnos de votação nas duas Casas e um quórum qualificado - nada mais é que atrasar o processo decisório da PEC e permitir, ao mesmo tempo, um maior controle cidadão sobre as deliberações parlamentares, bem como tempo de reflexão para os representantes confirmarem suas decisões. Basicamente, o dispositivo segue uma racionalidade de contenção das paixões e de potenciais interesses escusos dos legisladores, diferindo o processo político decisório, pois a mudança da constituição exige calma e reflexão. No caso, a pressa é inimiga da CF/88.
Corroborando esse entendimento, o próprio regimento interno da Câmara dos Deputados prevê o prazo de cinco sessões entre os turnos de votação que, ao que consta, não foi devidamente observado (RICD, art. 202, §6º). Sem contar outros prazos regimentais desrespeitados, conforme o alegado em MS impetrado pelo deputado Lindbergh Farias. Porém, para além da aparente violação regimental, há uma clara violação à lógica e à finalidade do art. 60, §2º, da CF/88, pois qual seria a razão de o constituinte originário ter estabelecido dois turnos de votação na mesma Casa Legislativa se fosse para haver a deliberação no mesmo dia? Não faz qualquer sentido lógico ou jurídico
Apesar de o STF entender que esse prazo entre as votações constitui matéria interna corporis, o que, a priori, concordo, o prazo não pode ser exíguo a ponto de esvaziar o conteúdo e as finalidades do dispositivo constitucional sob análise. Isso, porque, como ensina Jon Elster, as Constituições são estruturas de - e não instrumentos para a - ação política.1 Aqui, claramente os parlamentares que aprovaram a PEC subverteram a lógica constitucional operando o texto da CF/88 como um instrumento para uma ação política antirrepublicana e violadora de cláusulas pétreas.
Ao agir assim, o legislador incorreu em abuso do poder de legislar, com desvio de finalidade, ações que justificam o controle judicial de constitucionalidade dos atos do parlamento. Não obstante tal entendimento ter sido estabelecido pelo Supremo em relação às medidas provisórias,2 ele não deixa de ser, mutatis mutandis, aplicável à ação do legislador aqui sob análise.
Quando as garantias se tornam privilégios
Não bastasse a subversão escandalosa da lógica constitucional subjacente ao bicameralismo de dois turnos previsto para as PECs, a maioria qualificada da Câmara foi além. Ao retomar a exigência de autorização da Casa para a prisão de parlamentar presente na redação original da CF/88, a Casa violou as cláusulas pétreas ao colocar em risco predicados como o do devido processo legislativo, da isonomia, da inafastabilidade do controle jurisdicional e, consequentemente, da separação de poderes.
Ademais, seria possível questionar como o restabelecimento da redação original da CF/88 representaria uma inconstitucionalidade? Bom, a questão é que ela não é inconstitucional porque retoma a redação original, mas porque deturpa o projeto constituinte originário.3 E deturpa exatamente porque não busca proteger a função parlamentar contra abusos de outros poderes, mas impedir sua fiscalização, afetando a sistemática de freios e contrapesos no sentido de favorecer a impunidade, como já demonstrado nos 13 anos iniciais de vigência da atual constituição.
Richard Albert ensina que "(.) a ideia de que uma mudança, para ser corretamente entendida como uma emenda, deve ser coerente com a constituição existente."4 Quando a CF/88 foi aprovada, o receio político em torno do regime de exceção que a antecedeu era grande e justificado pelo momento histórico. Apesar de eu não aderir em abstrato ao argumento da mens legislatoris, neste caso, salta aos olhos que os constituintes estabeleceram a autorização para processamento de parlamentar a partir de uma votação secreta como estratégia de ação política contra as perseguições vivenciadas pelos legisladores durante a Ditadura, que ainda era uma sombra ameaçadora sobre a recém-restabelecida e precária ordem democrática. O contexto, portanto, era outro, não havendo que se falar em coerência da PEC sob análise com o estabelecido pelo constituinte originário.
Atualmente, a retórica de pretensão de correção dos defensores da famigerada PEC é de autodefesa contra os excessos do STF. Bom, os meios de conter esses excessos já existem e podem ser ampliados sem que seja necessário retomar uma sistemática que os acontecimentos históricos já comprovaram ser extremamente favorável à impunidade e que cria estímulo para o crime organizado se instalar de vez nos diversos parlamentos brasileiros em todas as unidades federadas. Afinal, como muito sabiamente relatou um amigo policial: "blindar parlamentar alegando abuso do STF é como blindar ladrão alegando abuso da polícia". Garantias contra excessos não são a mesma coisa que empecilhos à fiscalização e punição de crimes. A conta não fecha e nem deve fechar.
Existem outras ferramentas constitucionais para o parlamento defender suas prerrogativas institucionais, mas, claro, elas não são tão atraentes como o estabelecimento de um aval dos pares para ser investigado e punido. Por exemplo. Ao contrário do "Pacote anti-STF", no qual o parlamento atuou no sentido de conter avanços objetivos de outro poder de Estado no campo de suas prerrogativas típicas, aqui, o legislador atuou no sentido de esvaziar a fiscalização judicial dos seus pares, o que fere de morte a inafastabilidade do controle jurisdicional de lesões ou ameaças a direitos (art. 5°, XXXV) e cria fator de discriminação inaceitável em um Estado de Direito, o que viola a isonomia (art. 5°, caput, I). Certamente, esse não parece ter sido o objetivo do constituinte originário de 1988, quando tentava proteger o legislador contra as investidas de governos autoritários.
O problema constitucional não para por aí. Ao estabelecer hipótese que condiciona o controle judicial dos seus atos em um contexto onde inúmeras denúncias de práticas ilegais na gestão de recursos públicos pairam sobre parlamentares em todo o Brasil - somados aos demais poderes constitucionais do parlamento e ao comando pouco transparente sobre relevante fatia do orçamento - o legislador cria uma barreira quase que intransponível ao controle judicial dos seus atos, fato que parece violar a separação de poderes. A experiência histórica mais uma vez corrobora tal entendimento.
Por fim, o estabelecimento de um privilégio de foro para presidente de partidos, que não são parlamentares e nem autoridades públicas, escancara a real intenção dos parlamentares que aprovaram a PEC 3/21. O foro, que é exceção à isonomia devido à dignidade do cargo ocupado, ou seja, prerrogativa funcional, pode ser estendido a caciques políticos que não necessariamente possuem a função pública que justificaria a prerrogativa institucional.
Em outras palavras: o foro passa a ser verdadeiramente privilegiado. Não mais como uma prerrogativa funcional, passaria a ser um privilégio de ordem puramente pessoal ou intuito personae, o que também subverte a isonomia constitucionalmente estabelecida, criando outra hipótese de discriminação irrazoável entre cidadãos e sem qualquer amparo constitucional, seja na acepção formal, seja na acepção material da ideia de igualdade.
Em resumo: A PEC da Blindagem não protege a separação de poderes, mas a enfraquece. Em vez de garantir prerrogativas institucionais, institui privilégios pessoais e favorece à impunidade. A CF/88 foi feita para resguardar instituições, não para blindar indivíduos. A democracia se sustenta em transparência e responsabilidade, jamais em blindagens.
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1 ESLTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Trad. Cláudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Unesp, 2009. p. 133
2 ADI 1055/DF, Info 851; ADIs 4627 e 4350/DF e ARE 704520/SP, Info 764
3 G1. PEC da Blindagem: entre 1988 e 2001, Congresso autorizou apenas um processo contra parlamentar e travou outros 253 pedidos. G1, 28 ago. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/08/28/pec-da-blindagem-entre-1988-e-2001-congresso-autorizou-apenas-um-processo-contra-parlamentar-e-travou-outros-253-pedidos.ghtml. Acesso em: 21 set. 2025.
4 ALBERT, Richard. Constitutional Amendments: Making, Breaking, and Changing Constitutions. Oxford University Press, 2019. p. 15.


