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A IA está te observando, mas você está observando a IA?

A inteligência artificial já não é apenas uma ferramenta de apoio, mas um observador ativo que coleta, interpreta e influencia comportamentos no ambiente jurídico e corporativo.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado às 14:51

Nos últimos anos, o avanço da inteligência artificial deixou de ser apenas tema de conferências acadêmicas e artigos de inovação tecnológica para se tornar parte concreta do dia a dia das empresas e dos escritórios de advocacia.

O que antes parecia um recurso futurista hoje é um mecanismo silencioso, integrado às rotinas mais banais da gestão corporativa, softwares que monitoram produtividade, sistemas de análise preditiva de desempenho, algoritmos que avaliam riscos jurídicos e até ferramentas que acompanham o humor dos times por meio de padrões de comunicação digital.

Estamos, em resumo, vivendo uma inversão curiosa. Se antes a sociedade se dedicava a observar as máquinas e medir seus limites, hoje são as máquinas que nos observam. Elas coletam dados, interpretam comportamentos e muitas vezes sugerem ações mais rápidas e certeiras do que qualquer gestor humano poderia fazer. Mas, diante dessa realidade, fica a pergunta que guia esta reflexão: estamos também observando a IA, com a mesma atenção e criticidade com que ela nos observa

A ilusão da neutralidade tecnológica

A primeira armadilha em que muitos gestores caem é acreditar que a IA é apenas uma ferramenta neutra, uma extensão do raciocínio humano, livre de vieses ou interesses. Essa visão, contudo, já foi amplamente desconstruída por pesquisadores como Cathy O'Neil, que no livro Weapons of Math Destruction demonstra como algoritmos podem reproduzir, e até potencializar, preconceitos e desigualdades sociais.

No ambiente jurídico, essa questão é ainda mais delicada. Se um sistema de análise de produtividade começa a classificar advogados com base apenas em metas quantitativas, o risco de desconsiderar aspectos qualitativos do trabalho, como criatividade, argumentação ou inovação jurídica, é enorme. Ao invés de promover eficiência, pode-se instalar uma lógica mecanicista que reduz o profissional a métricas superficiais.

Aqui entra a importância da governança tecnológica. Assim como empresas criam manuais de conduta ética para colaboradores, também deveriam adotar políticas claras para o uso de sistemas inteligentes, definindo limites e critérios para que a IA não ultrapasse fronteiras éticas ou jurídicas.

A IA como observadora ativa

A diferença entre as tecnologias anteriores e a atual geração de IA é que agora não falamos apenas de registros passivos, como câmeras de vigilância ou planilhas de horas. A IA atua como observadora ativa, coleta, cruza e interpreta dados em tempo real, oferecendo diagnósticos que moldam decisões organizacionais.

Pesquisas reforçam esse ponto. Segundo estudo da Microsoft, 82% dos líderes acreditam que seus funcionários precisarão de novas habilidades para acompanhar a IA. Esse dado revela não só a consciência de que a tecnologia transformará profissões, mas também a pressão para adaptar pessoas a um modelo de trabalho mais observado e mediado por sistemas inteligentes.

Por outro lado, a Pew Research Center mostra que 60% dos trabalhadores temem que a IA aumente a vigilância no ambiente de trabalho. Ou seja, a mesma tecnologia que promete eficiência desperta insegurança e ansiedade, justamente porque atua em um espaço sensível, o comportamento humano.

O paradoxo da produtividade

No campo jurídico, um dos maiores atrativos da IA é o ganho de produtividade. Softwares já são capazes de redigir minutas, revisar contratos e até simular probabilidades de êxito em ações judiciais. Escritórios que antes precisavam de grandes equipes para tarefas repetitivas agora conseguem fazer mais com menos.

No entanto, esse ganho vem acompanhado de um paradoxo. Quanto mais a IA monitora e automatiza, maior é a pressão para que o humano se diferencie, seja pela criatividade, pela negociação ou pelo raciocínio estratégico. A produtividade, antes medida apenas pelo volume de horas faturadas, passa a incluir elementos subjetivos que o algoritmo não capta com precisão.

Aqui reside um risco cultural.

Se os escritórios adotarem métricas cegamente baseadas em relatórios da IA, podem criar ambientes de trabalho sufocantes, onde os profissionais sentem-se constantemente avaliados e com pouca margem para a experimentação. A longo prazo, isso pode corroer o clima organizacional e até mesmo afastar talentos.

A cultura da observação

Para compreender a dimensão dessa mudança, é útil resgatar conceitos da sociologia. Michel Foucault, ao analisar o panoptismo nas prisões modernas, já alertava para a transformação da vigilância em instrumento de disciplina social. No panóptico, a sensação de estar sempre observado modifica o comportamento do indivíduo, mesmo que não haja vigilância constante.

Hoje, a IA desempenha papel semelhante no ambiente de trabalho. A simples consciência de que um software acompanha mensagens, horários de login, pausas e prazos gera comportamentos de autocensura e conformidade. Essa cultura da observação, se não for equilibrada por políticas de confiança e autonomia, pode reduzir a motivação intrínseca dos profissionais e estimular uma mentalidade defensiva.

Para o Direito, a reflexão é ainda mais profunda. Até que ponto é legítimo coletar e analisar dados de colaboradores sem o devido consentimento ou sem clareza sobre os critérios de avaliação? Questões como privacidade, dignidade e autonomia ganham centralidade, e o papel do advogado é justamente garantir que a inovação não ultrapasse direitos fundamentais.

A ausência de governança

Apesar de todos esses dilemas, a maior parte das organizações ainda não possui estratégias consolidadas de governança ética para lidar com a IA. Empresas compram softwares sofisticados, integram sistemas de monitoramento e celebram os ganhos de eficiência, mas raramente criam comitês de ética ou estabelecem protocolos de transparência.

Esse cenário lembra o início da internet comercial nos anos 1990, quando corporações se lançaram na rede sem considerar a proteção de dados ou os riscos de segurança digital. Hoje, com a IA, o desafio é ainda maior, porque não falamos apenas de informações, mas da própria mediação de decisões organizacionais.

Governança tecnológica não é luxo, é uma exigência estratégica. Estabelecer regras claras sobre quais dados podem ser coletados, como serão armazenados e para quais finalidades serão usados é fundamental para evitar abusos e garantir a confiança de colaboradores e clientes.

A posição estratégica da advocacia

Nesse contexto, os escritórios de advocacia ocupam posição privilegiada. Primeiro, porque lidam diretamente com direitos fundamentais e podem atuar como guardiões da ética no uso da IA. Segundo, porque são usuários intensivos dessas tecnologias, especialmente em áreas como gestão de produtividade e automação de processos. 

A advocacia, ao assumir esse debate, reforça seu papel de liderança social. Não se trata apenas de defender clientes em tribunais, mas de contribuir para que a sociedade use a tecnologia de forma responsável, respeitando direitos e promovendo bem-estar coletivo.

Caminhos para uma observação responsável da IA

A transformação dessa reflexão em prática passa por diferentes dimensões que precisam caminhar juntas. Em primeiro lugar, é essencial que advogados, gestores e líderes compreendam como funcionam os algoritmos que utilizam, questionando seus pressupostos e limitações. Sem essa alfabetização tecnológica crítica, qualquer tentativa de governança se torna superficial.

Em segundo lugar, a transparência deve ser regra. Colaboradores precisam saber claramente quais dados estão sendo coletados, como são usados e para que finalidades servem. O segredo e a opacidade só alimentam desconfiança e resistência.

Em terceiro lugar, é necessário adotar mecanismos de governança participativa. A criação de comitês multidisciplinares, com a presença de profissionais da tecnologia, do Direito, da gestão de pessoas e de representantes dos colaboradores, pode equilibrar diferentes perspectivas e prevenir abusos.

Por fim, é fundamental que haja regulação jurídica mais robusta. O setor público tem papel crucial em definir limites e padrões para o uso ético da IA, especialmente em ambientes sensíveis como o trabalho. Sem esse arcabouço, cada empresa define suas próprias regras, o que aumenta o risco de arbitrariedades.

Quem observa quem?

A frase que dá título a este artigo sintetiza o dilema atual. A IA está nos observando, mas será que estamos realmente observando a IA? Ao mesmo tempo em que celebramos sua capacidade de aumentar a produtividade e reduzir custos, não podemos ignorar os riscos de vigilância excessiva, perda de autonomia e impacto sobre a cultura organizacional.

O futuro da gestão, tanto corporativa quanto jurídica, dependerá de nossa capacidade de equilibrar eficiência com dignidade, tecnologia com ética e inovação com responsabilidade social. A observação da IA não deve ser apenas técnica, mas filosófica e cultural, porque diz respeito ao modo como queremos organizar nossas relações de trabalho e nossa própria sociedade.

Se a IA é um espelho que devolve à humanidade seus próprios padrões de comportamento, a questão é simples e, ao mesmo tempo, inquietante: o que vemos refletido nesse espelho, e o que estamos dispostos a mudar?

Eduardo Koetz

VIP Eduardo Koetz

Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

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