Dívidas de jogos e o ônus da prova
A matéria analisa as implicações legais das dívidas de jogos de azar nas relações patrimoniais, destacando o ônus da prova para o cônjuge que busca afastar responsabilidade.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
Atualizado às 13:36
1 Introdução
Com o avanço da tecnologia e a expansão das plataformas digitais, as apostas online tornaram-se acessíveis a um número crescente de pessoas. Em muitos casos, o uso dessas plataformas ultrapassa o mero entretenimento e acarreta compromissos financeiros que podem comprometer o patrimônio dos cônjuges. No âmbito jurídico, impõe-se o questionamento: quando um cônjuge contrai dívidas em apostas, pode o outro ser responsabilizado solidariamente com base no art. 1.664 do CC? E, mais especificamente, qual é o ônus da prova para afastar tal responsabilidade?
Este artigo tem por objetivos: (1) examinar o alcance do art. 1.664 do CC em relação a dívidas decorrentes de apostas; (2) identificar os limites da responsabilidade solidária entre os cônjuges nesse contexto; (3) investigar o ônus probatório que recai sobre o cônjuge que pretende excluir sua obrigação; e (4) apresentar e discutir jurisprudência real correlata, mesmo que não estritamente igual ao caso de bets.
A pesquisa apoia-se em método qualitativo, com levantamento bibliográfico e análise de jurisprudência acessível em bases públicas. O limite temporal abrange decisões até 2025.
2 Fundamentos legais e doutrinários
2.1 O disposto no art. 1.664 do CC
O CC prevê em seu art. 1.664 que:
"Os bens da comunhão respondem pelas obrigações contraídas pelo marido ou pela mulher para atender aos encargos da família, às despesas de administração e às decorrentes de imposição legal." 1
Esse dispositivo insere uma presunção de que obrigações contraídas durante o casamento (em regime de comunhão) se destinam, em regra, ao benefício familiar. A doutrina majoritária afirma que, uma vez demonstrado que a dívida foi contraída durante a vigência do casamento, há presunção de que ela beneficia a família, cabendo ao cônjuge atingido demonstrar o contrário (Tartuce, Gonçalves, Silvio Rodrigues, entre outros).
No entanto, se a obrigação tiver sido contrária aos interesses do lar, ou exclusivamente individual, ou não tiver revertido em proveito da entidade familiar, o cônjuge poderá afastar a sua responsabilidade, mediante comprovação.
2.2 A natureza jurídica das dívidas de aposta ou de jogo
O CC, no art. 814, trata das dívidas de jogo:
"Art. 814. São anuláveis as dívidas de jogo e as de apostas."
Além disso, o parágrafo 2º do mesmo artigo dispõe que é permitida a cobrança se os jogos e apostas forem legalmente autorizados. Esse mecanismo revela que, em geral, a obrigação resultante de apostas possui característica de obrigação natural (isto é, não pode ser executada compulsoriamente), salvo nas hipóteses em que a lei expressa autoriza sua cobrança.
No REsp 1.628.974, o STJ tratou da cobrança de dívida de aposta quando originada no exterior, reconhecendo que se aplica o parágrafo 2º do art. 814, mas com limites impostos pela ordem pública brasileira.2
Assim, há tensão teórica: as apostas podem gerar obrigações naturais, de modo que não são exigíveis por meio de execução forçada; e ao mesmo tempo, se autorizadas por lei, pode haver legitimidade para cobrança.
2.3 Ônus da prova em matéria de obrigações perante o CPC
O CPC dispõe, no art. 373, que:
- Incumbe ao autor provar os fatos constitutivos do seu direito.
- Incumbe ao réu provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.
Nesse contexto, se o cônjuge demandante pretende excluir sua responsabilidade pela dívida (argumentando que não beneficiou a família), caberá a ele demonstrar os fatos impeditivos ou modificativos - ou seja: provar que a dívida não trouxe proveito comum ou que foi exclusivamente individual.
Em síntese, admite-se uma presunção relativa de que dívidas feitas durante o casamento beneficiam a família, que pode ser elidida por prova em contrário.
3 Jurisprudência correlata
Embora não se tenha encontrado até o momento casos idênticos envolvendo bets/apostas virtuais e art. 1.664 com ênfase no ônus da prova, há precedentes que tocam pontos próximos e que podem servir de orientação.
3.1 STJ: REsp 1.628.974
Esse precedente já citado trata da possibilidade de cobrança de dívida originada de aposta externa, analisando a questão sob o prisma do art. 814 do CC. O relator apontou que, embora a lei brasileira proíba em regra a cobrança das dívidas de jogo, o parágrafo 2º do art. 814 admite exceção para jogos legalmente autorizados - e, portanto, admitiu a cobrança nos casos em que a aposta se deu em local legal no exterior, desde que observados os limites da ordem pública brasileira.3
Esse entendimento é relevante porque demonstra que o tema apostas não é inteiramente incognoscível ao direito brasileiro, mas que sua exigibilidade está condicionada à observância de limites legais e de ordem pública.
3.2 Jurisprudência estadual sobre responsabilidade entre cônjuges e dívidas
Diversos acórdãos estaduais aplicam o art. 1.664 para legitimar a penhora de bens pertencentes ao cônjuge não devedor, presumindo que a dívida foi feita em benefício familiar, salvo prova em contrário. Alguns exemplos:
- TJ/SP, agravo de instrumento 2138665-93.2022 - foi admitida penhora de meação do cônjuge para satisfazer obrigação contraída na constância do casamento, sendo pressuposta a presunção de benefício familiar e incumbindo ao cônjuge resistir comprovar o contrário.4
- TJ/DF, AI 07284.36-24.2021 - menciona que o cônjuge atingido deve comprovar que a dívida não beneficiou o núcleo familiar, caso pretenda resguardar sua meação.5
- TJ/DF, APC 07129.71-69.2021 - admite a possibilidade de penhora de crédito em nome do cônjuge, dentro dos limites da meação, caso se comprove que a dívida reverteu em benefício familiar.6
Esses precedentes evidenciam a prática jurisprudencial de aplicar o art. 1.664 como mecanismo de coerção patrimonial sobre bens comuns, com presunção relativa de benefício à família, exigindo prova em contrário do cônjuge que busca se eximir.
3.3 Limitações e distinções relevantes
Importa destacar que os precedentes mencionados tratam, em geral, de dívidas contratuais comuns (empréstimos, financiamentos, obrigações civis) e não especificamente de apostas ou bets. Em muitos casos, o julgador exige que seja demonstrado que a obrigação foi efetivamente utilizada para fins do lar ou da administração dos bens. Se não houver prova nesse sentido, a solidariedade é mantida.
Outro ponto é que muitos dos decisões cautelares ou de execução pressupõem a aplicação imediata do art. 1.664, sem aprofundar prova exaustiva do proveito familiar - o que indica uma tendência de favorecer a hipótese de solidariedade quando não contestada adequadamente.
4 Análise: aplicação ao caso das bets e implicações do ônus da prova
4.1 As apostas como obrigação natural e exceção legal
Partindo da premissa de que muitas apostas online são proibidas ou não regulamentadas no Brasil, a obrigação decorrente pode ser considerada, em regra, como obrigação natural, não sujeita a execução forçada. Isso significa que, embora o devedor possa voluntariamente pagar, não se admite ação de execução compulsória.
Contudo, caso haja legislação autorizadora de determinadas apostas (ou se a aposta ocorreu em ambiente estrangeiro legal, conforme REsp 1.628.974), pode haver legitimidade para cobrança. Nesse cenário, se a dívida for considerada exigível, restaria decidir se ela afeta ou não a responsabilidade conjugal solidária.
4.2 Presunção de benefício familiar e inversão do ônus da prova
Se o cônjuge credor (ou credor externo) pretender alcançar o patrimônio comum com base no art. 1.664, terá respaldo na presunção (relativa) de que a dívida efetuada durante o casamento beneficiou a família. Essa presunção opera como ponto de partida, não absolutíssimo. Cabe ao cônjuge lesado demonstrar que:
- A dívida foi contraída fora do escopo do interesse familiar;
- Não se reverteu em proveito do lar ou da administração dos bens comuns;
- Trata-se de despesa estritamente pessoal, desvinculada do patrimônio comum.
Se esse ônus probatório não for sustentado, será mantida a solidariedade e poderá responder com bens da comunhão, inclusive a meação do cônjuge.
4.3 Dificuldades práticas
- Prova: demonstrar que determinada aposta não beneficiou a família pode ser desafiador - exigirá documentos, extratos, demonstrativos financeiros, testemunhas etc.
- Contestação de legitimidade: se a aposta for em local ilegal ou sem regulamentação, pode haver argumentos de nulidade ou impossibilidade de execução.
- Limitações legais: mesmo que a dívida seja considerada válida, pode haver resistência judicial à responsabilização plena do cônjuge não participante, se demonstrada sua ausência de relação com o ato.
- Risco de precedentes negativos: a falta de jurisprudência consolidada pode gerar decisões contraditórias em instâncias inferiores, fortalecendo a insegurança jurídica.
5 Considerações finais
A análise revela que o ordenamento jurídico brasileiro oferece algum arcabouço para tratar dívidas de apostas no contexto conjugal, mas não há até o momento decisões específicas consolidadas sobre bets online vinculadas ao art. 1.664. O precedente REsp 1.628.974 é o mais próximo, pois aborda a cobrança de dívida de jogo autorizada, aplicando o art. 814 e examinando limites de ordem pública.
Para que o cônjuge lesado exclua sua responsabilidade, é imprescindível que consiga comprovar que a dívida não beneficiou a família nem se integrou à lógica de administração ou encargos familiares. Em outras palavras, recai sobre ele o ônus da prova dos fatos impeditivos ou modificativos.
Recomenda-se a realização de pesquisas empíricas específicas que investiguem casos concretos de apostas online em tribunais estaduais e federais, de modo a mapear decisões judiciais reais. Ademais, seria pertinente considerar proposições legislativas que disciplinem expressamente a repercussão patrimonial das bets nas relações de família, trazendo segurança jurídica ao tema.
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1 https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10617263/art-1664-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002?utm_source=chatgpt.com
2 https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201628974.pdf?utm_source=chatgpt.com
3 https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201628974.pdf?utm_source=chatgpt.com
4 https://www.peticoesonline.com.br/art-1664-cc?utm_source=chatgpt.com
5 https://www.peticoesonline.com.br/art-1664-cc?utm_source=chatgpt.com
6 https://www.peticoesonline.com.br/art-1664-cc?utm_source=chatgpt.com


