Visão monocular reconhecida como deficiência: A decisão do Tema 378 da TNU e seus impactos no benefício de prestação continuada
A TNU define que pessoas com visão monocular só têm direito ao BPC mediante avaliação biopsicossocial, destacando desigualdades e barreiras sociais.
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Atualizado em 26 de setembro de 2025 13:25
A visão monocular, condição em que uma pessoa enxerga funcionalmente com apenas um olho devido à perda total ou parcial da visão no outro, tem sido tema de intensos debates jurídicos e sociais no Brasil. Desde a sanção da lei 14.126/21, que classifica essa condição como deficiência sensorial do tipo visual, milhares de brasileiros buscam reconhecimento de direitos, incluindo benefícios assistenciais como o BPC - Benefício de Prestação Continuada.
No entanto, uma recente decisão da TNU - Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, no Tema 378, trouxe clareza - e controvérsias - ao exigir uma avaliação biopsicossocial para comprovar a deficiência, em vez de depender apenas do diagnóstico médico. Essa matéria explora o contexto legal, a controvérsia judicial, os detalhes da decisão e as implicações para as pessoas afetadas, com base em fontes oficiais e análises especializadas.
O que é visão monocular e por que ela é considerada deficiência?
A visão monocular ocorre quando há cegueira ou visão severamente comprometida em um olho, enquanto o outro mantém funcionalidade normal ou próxima do normal. Isso pode resultar de acidentes, doenças como glaucoma ou catarata, ou condições congênitas. Diferentemente da cegueira bilateral, a pessoa com visão monocular pode realizar muitas atividades cotidianas, mas enfrenta desafios como perda de percepção de profundidade, campo visual reduzido e maior risco de fadiga ocular, o que impacta profissões que exigem precisão visual, como motoristas ou operadores de máquinas.
Em março de 2021, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 14.126/21, que estabelece: "Fica a visão monocular classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, para todos os efeitos legais." O parágrafo único da lei aplica a ela as disposições do Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), garantindo direitos como prioridade em atendimentos, cotas em concursos públicos e isenções fiscais para compra de veículos adaptados. Antes dessa lei, muitos juízes e o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social negavam o reconhecimento da visão monocular como deficiência, alegando que não se enquadrava nos critérios tradicionais de incapacidade.
A lei reflete avanços na compreensão da deficiência, alinhados à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (Convenção de Nova York), incorporada ao ordenamento brasileiro com status de emenda constitucional via art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. Essa convenção define deficiência não como mera limitação física, mas como um impedimento de longo prazo que, interagindo com barreiras sociais e ambientais, impede a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições.
O BPC - Benefício de Prestação Continuada: Um direito assistencial em foco
O BPC, previsto na LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social (lei 8.742/1993), é um benefício de um salário mínimo mensal pago pelo INSS a idosos acima de 65 anos ou pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade socioeconômica (renda per capita familiar inferior a 1/4 do salário mínimo, com possibilidade de extensão judicial para até 1/2). Para pessoas com deficiência, é essencial comprovar tanto a condição de deficiência quanto a miserabilidade.
Com a lei 14.126/21, muitos com visão monocular buscaram o BPC, argumentando que o diagnóstico médico bastava para caracterizar a deficiência. No entanto, o INSS e parte da jurisprudência exigiam prova de que a condição gerava desigualdade de oportunidades, não apenas incapacidade laboral. Isso gerou uma enxurrada de ações judiciais, com divergências entre turmas recursais: algumas concediam o benefício com base apenas no laudo oftalmológico, enquanto outras demandavam análise mais ampla.
A controvérsia judicial e a afetação do Tema 378
A controvérsia escalou para a TNU, que afetou o Tema 378 como representativo em junho de 2025, para uniformizar a jurisprudência nos Juizados Especiais Federais. O debate central: o diagnóstico de visão monocular é suficiente para presumir deficiência, ou é necessária uma avaliação biopsicossocial?
Consultado no processo, o CFM - Conselho Federal de Medicina destacou que a visão monocular varia amplamente entre indivíduos - de casos leves a graves impactos na qualidade de vida -, reforçando a necessidade de avaliação individualizada. A AGU - Advocacia-Geral da União defendeu que o mero impedimento visual não garante o BPC, pois a deficiência deve ser avaliada considerando barreiras sociais, econômicas e ambientais.
A decisão da TNU: Tese fixada e razões
Em julgamento realizado em 25 de junho de 2025, sob relatoria do juiz federal Fábio Souza, a TNU fixou a seguinte tese para o Tema 378: "Na análise do direito ao benefício de prestação continuada, a caracterização da deficiência da pessoa com visão monocular exige avaliação biopsicossocial, sendo insuficientes o diagnóstico do impedimento visual ou a perícia exclusivamente médica."
A decisão enfatiza que deficiência não é sinônimo de incapacidade para o trabalho, mas de desigualdade de oportunidades. Inspirada na Convenção de Nova York, a TNU argumentou que o impedimento sensorial (visão monocular) deve ser associado a barreiras (como acessibilidade no transporte, preconceito no emprego ou falta de tecnologias assistivas) para configurar deficiência. A avaliação biopsicossocial, realizada por equipe multidisciplinar (médico e assistente social), analisa o impacto bio (físico), psico (mental/emocional) e social da condição.
Não é obrigatório usar o instrumento específico do INSS, mas a análise deve ir além da perícia médica tradicional. Isso evita presunções automáticas: mesmo cegueira bilateral exige tal avaliação, e a visão monocular não pode ser exceção.
Impactos sociais, críticas e direitos associados
A decisão foi elogiada por trazer segurança jurídica, mas criticada como retrocesso por alguns especialistas. Para a AMPID - Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos, o Tema 378 desrespeita a lei 14.126/21 ao impor barreiras adicionais, potencialmente excluindo vulneráveis. Críticos argumentam que a lei pretendia simplificar o reconhecimento, não o complicar.
Para os beneficiários, a visão monocular agora garante acesso a:
- BPC/LOAS: Com avaliação positiva e comprovação de vulnerabilidade.
- Aposentadoria por invalidez: Se houver incapacidade laboral comprovada.
- Isenções fiscais: Como IPI, IOF e IPVA para veículos.
- Cotas em Concursos e Empregos: 5% das vagas reservadas.
- Prioridade em atendimentos: Em serviços públicos e privados.
Estima-se que cerca de 150 mil brasileiros tenham visão monocular, muitos em situação de pobreza, e a decisão pode afetar milhares de processos judiciais pendentes.
Conclusão: Um passo para inclusão, mas com desafios
O Tema 378 reforça uma visão mais holística da deficiência, alinhada a padrões internacionais, mas destaca a necessidade de melhorias no sistema de avaliações do INSS, que frequentemente enfrenta atrasos. Para quem busca o BPC, o conselho é reunir laudos médicos detalhados, relatórios sociais e provas de barreiras enfrentadas, consultando advogados especializados em direito previdenciário.
Essa evolução legal representa um avanço na inclusão, mas exige vigilância para que não se torne obstáculo burocrático. Se você ou alguém próximo tem visão monocular, verifique seus direitos junto ao INSS ou via judicial.
Andréa Arruda Vaz
Advogada, pesquisadora e escritora, Doutora e Mestre em Direito Constitucional.


