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Operadoras de saúde: O pacote que empobrece a cobertura

Artigo denuncia a criação de códigos paralelos por operadoras, prática que reduz cobertura e afronta a regulação da ANS e a proteção contratual.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Atualizado às 14:50

As operadoras de saúde encontraram um truque engenhoso para reduzir custos: criaram códigos próprios que transformam tratamentos complexos em um único item, reunindo sob a mesma rubrica diversos procedimentos, materiais, medicamentos, exames e até órteses e próteses. O que antes era uma cobertura detalhada e transparente, assegurada por dezenas de códigos oficiais, virou um "pacote" arbitrado pela operadora. Essa simplificação artificial não é mero detalhe administrativo; trata-se de uma estratégia que reduz a proteção contratual do ANS e subverte a lógica regulatória estabelecida pela ANS.

Pacotes são legítimos quando negociados entre operadora e prestador, porque fazem parte do contrato de remuneração entre duas empresas. O hospital ou a clínica sabem quanto irão receber, e o paciente não é afetado. Mas quando o pacote é criado para ser imposto contra o beneficiário, a história muda de figura. Nesse caso, o que antes era uma cobertura ampla, com múltiplos itens assegurados, é convertido em um código único, com valor arbitrado pela própria operadora. A lógica é clara: a empresa paga menos, e o beneficiário perde cobertura.

Acompanhada pela Sul América, Notredame, a Bradesco Saúde levou essa lógica ao extremo. Criou o código para o que resolveu chamar "Terapia Renal Substitutiva" e, dentro dele, englobou todas as modalidades de diálise - hemodiálise, diálise peritoneal e hemodiafiltração (HDF Online). Para a operadora, não importa se o paciente precisa de dessa ou daquela técnica, de medicamentos específicos, de exames complementares ou até de OPME vinculados ao tratamento da doença renal. Tudo estaria artificialmente incluído nesse pacote. O detalhe é que nenhum exame complexo é feito durante a sessão de diálise, nem procedimentos cirúrgicos ocorrem no mesmo ato. O pacote é uma construção administrativa criada para reduzir custos e amputar direitos.

Para entender a gravidade, basta olhar a diálise como exemplo. O sistema TUSS, instituído pela ANS, padroniza códigos para cada procedimento e insumo, assegurando transparência. Assim, existe um código TUSS específico para Hemodiálise (30.90.903-1), outro para Diálise Peritoneal Automatizada (30.90.902-3), e outro para Hemodiafiltração Online - HDF-OL (90.30.901-9). Além disso, há códigos próprios para os materiais e medicamentos utilizados: o dialisador, as soluções estéreis, os cateteres e agulhas, os anticoagulantes como a heparina, todos com TUSS distintos. Até exames de acompanhamento, como dosagem de ureia, creatinina e eletrólitos, têm códigos próprios na TUSS, porque fazem parte do tratamento, mas não se confundem com a sessão em si.

Essa estrutura garante que o paciente receba a cobertura integral: procedimento + insumos + medicamentos + exames de controle. É assim que o contrato deve funcionar e é assim que a TUSS foi criada para funcionar.

O que fez a Bradesco Saúde? Violou a lógica da TUSS e criou um código artificial, chamado "Terapia Renal Substitutiva", que unifica tudo. De um lado, os diferentes tipos de diálise, com complexidade e custos próprios, viraram uma só coisa. De outro, materiais, medicamentos e até exames e OPME que nunca ocorrem dentro da sessão foram indevidamente incluídos nesse "pacote". A consequência é evidente: onde antes havia dezenas de códigos que garantiam cobertura, passou a haver apenas um. O valor pago ou reembolsado não corresponde ao tratamento real, mas sim ao preço que a operadora decidiu fixar.

A cobertura, que antes correspondia ao somatório de cada item coberto, passa a ser limitado ao valor global do pacote. O que sobra é uma redução unilateral de cobertura, disfarçada de critério técnico. Os beneficiários percebem o prejuízo, recorrem ao Judiciário e, felizmente, têm conseguido demonstrar a irregularidade dessa prática. A Justiça, em inúmeras decisões, já reconheceu que esses códigos paralelos não têm respaldo contratual nem legal.

Na sentença proferida pela 6ª vara cível de Osasco, o juiz deixou claro que a prática de excluir materiais e medicamentos do tratamento de diálise é abusiva e ilegal, justamente porque esses itens já possuem códigos TUSS próprios e fazem parte da cobertura obrigatória. A decisão citou expressamente a RN 465 da ANS, que assegura a cobertura de todos os insumos necessários ao procedimento, e foi categórica: não cabe à operadora criar códigos paralelos nem alterar unilateralmente as condições de cobertura, sob pena de colocar o consumidor em desvantagem excessiva e afrontar a dignidade da pessoa humana. O magistrado ressaltou que o paciente não buscava vantagens indevidas, tampouco reembolso integral fora da apólice, mas apenas o cumprimento daquilo que estava previsto em contrato e em lei. A Bradesco Saúde, portanto, foi condenada a custear integralmente o tratamento conforme a prescrição médica, sem aplicar o código próprio.

E não se trata apenas de bom senso judicial. A própria ANS já havia blindado esse terreno. A RN 465 garante a cobertura de materiais e medicamentos vinculados aos procedimentos. A RN 501 vai além: veda expressamente a criação de códigos próprios e obriga o uso da TUSS, a Terminologia Unificada da Saúde Suplementar, que padroniza procedimentos para evitar justamente esse tipo de manipulação. Ao criar seus pacotes internos, as operadoras não apenas violam a boa-fé contratual, mas também desobedecem frontalmente às normas do setor.

É hora de chamar as coisas pelo nome. Os pacotes, quando usados contra o beneficiário, não são instrumentos de eficiência, mas de exclusão. São uma forma sofisticada de descumprir contratos, transferir custos e aumentar lucros. O caso da Bradesco Saúde, da Sul América e da Notredame são um alerta eloquente: por trás do verniz da gestão, esconde-se uma política de redução de direitos.

A saúde suplementar não pode ser governada por tabelas secretas criadas em gabinetes corporativos. O contrato deve ser respeitado, a lei deve ser cumprida e a vida do paciente não pode ser reduzida a um código inventado. Se há algo que o Judiciário, a ANS e a sociedade precisam reafirmar, é que o pacote não pode ser usado como máscara para a exclusão.

Geovani Reginaldo Souza Ferreira Valério

VIP Geovani Reginaldo Souza Ferreira Valério

Especialista em direito da saúde, Dr. Geovani Valério lidera a GV Assessoria Jurídica, com atuação estratégica nacional e formação internacional pela University of Pennsylvania

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