MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. É urgente reconectar a tecnologia à vida

É urgente reconectar a tecnologia à vida

A era digital prometeu liberdade e bem-estar, mas entregou vícios, alienação e desigualdade. É hora de repensar o futuro e reconectar a tecnologia ao propósito humano.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Atualizado às 14:58

Vivemos na chamada "era da hiperconexão", em que dispositivos digitais acompanham cada instante do cotidiano: o trabalho, o lazer, as relações sociais e até mesmo a saúde. Smartphones, aplicativos e plataformas digitais moldam comportamentos e decisões, muitas vezes de forma invisível. 

Mas a provocação da futurista lituana Monika Bielskyte lança luz sobre um dilema que não pode mais ser ignorado: "é urgente reconectar a tecnologia à vida".

Essa afirmação, aparentemente simples, carrega uma crítica profunda ao modelo atual de desenvolvimento tecnológico, marcado pela lógica da extração de dados, da manipulação de comportamentos e da maximização do lucro em detrimento da diversidade cultural, da inclusão social e da sustentabilidade. O problema não é a tecnologia em si, mas o modelo de negócios que a governa.

O que significa um "futuro tóxico"?

Bielskyte alerta para a construção de um "futuro tóxico", ou seja, um cenário em que a inovação deixa de servir ao bem-estar coletivo e passa a reforçar vícios digitais, alienação social e desigualdades.

O dado mais emblemático vem da pesquisa da DataReportal (2023): o tempo médio diário de uso de internet no Brasil é de 9 horas e 32 minutos, enquanto a média global é de 6 horas e 37 minutos. Isso significa que o brasileiro passa quase 40% do seu dia acordado conectado a algum dispositivo digital.

Esse excesso de exposição não é neutro. Estudos da OMS - Organização Mundial da Saúde apontam que 6% da população mundial já sofre de dependência digital, com impactos graves em saúde mental, ansiedade, depressão e isolamento social. Em países como o Japão, termos como hikikomori (reclusão social extrema ligada ao uso da tecnologia) tornaram-se fenômenos socioculturais.

A promessa não cumprida da tecnologia

Durante a transição para a chamada 4ª Revolução Industrial, acreditava-se que a digitalização traria mais liberdade, tempo livre e aumento da qualidade de vida. O que se observa, porém, é o contrário: profissionais constantemente conectados, jornadas invisíveis de trabalho remoto e dificuldade de desconexão.

De acordo com pesquisa da Microsoft Work Trend Index (2022), 48% dos trabalhadores globais afirmam sentir-se esgotados pelo excesso de reuniões online e mensagens digitais. No Brasil, o índice é ainda mais preocupante: 57% dos entrevistados relataram fadiga digital.

O que deveria ser uma ferramenta de apoio à produtividade transformou-se em uma armadilha de sobrecarga. Essa é a essência da crítica de Bielskyte: a tecnologia, em vez de regenerativa, está se tornando degenerativa.

Tecnologia regenerativa: o que significa?

Ao propor o conceito de tecnologia regenerativa, Bielskyte se refere ao desenho de sistemas digitais que se alinham às necessidades humanas, ao meio ambiente e à diversidade cultural. Não basta "não prejudicar", é necessário que a inovação contribua positivamente para a qualidade de vida coletiva.

Isso envolve três dimensões:

1. Diversidade e inclusão

Saúde e autonomia

A tecnologia deve ampliar a autonomia das pessoas, não reduzi-las a dependentes de plataformas. Um relatório da UNICEF (2021) mostrou que 71% dos adolescentes latino-americanos afirmam sentir-se pressionados a estar sempre online, sob pena de exclusão social. Isso gera efeitos psíquicos profundos, principalmente em fases de formação da identidade.

2. Sustentabilidade

A digitalização também tem impacto ambiental. O setor de tecnologia da informação já responde por 3,7% das emissões globais de gases de efeito estufa, de acordo com relatório da Shift Project (2020). Ou seja, a busca por "nuvem ilimitada" tem consequências muito concretas para o planeta.

O setor jurídico diante da urgência digital

Se há um setor em que a pressão por digitalização se intensificou nos últimos anos, este é o jurídico. Processos eletrônicos, tribunais digitais e escritórios de advocacia orientados por softwares de gestão transformaram radicalmente a rotina da advocacia.

Relatório Justiça em Números (CNJ, 2022) mostra que 96% dos processos no Brasil já tramitam em formato eletrônico. Isso coloca o país entre os líderes mundiais em digitalização judicial. Contudo, também gera novos desafios: sobrecarga de informações, vigilância sobre prazos e métricas que, em vez de humanizar, podem intensificar pressões.

Um levantamento da OAB (2021) revelou que 68% dos advogados afirmam que a digitalização aumentou o volume de trabalho, em vez de reduzi-lo. Ou seja, a tecnologia está sendo aplicada mais como mecanismo de cobrança e controle do que de apoio e simplificação.

Proposta de reconexão

É nesse cenário que surge a relevância de modelos alternativos, que buscam reconectar a tecnologia à vida profissional. 

Diferentemente de soluções que reforçam a lógica da alienação digital, a proposta é utilizar a automação para libertar o advogado do excesso de tarefas repetitivas e permitir foco em atividades de maior valor humano: análise crítica, estratégia jurídica, empatia no atendimento e inovação na solução de conflitos.

Filosofia crítica e o papel do Direito

O debate proposto por Bielskyte dialoga com reflexões já presentes em pensadores como Adorno, Horkheimer e Habermas. Se no século XX a crítica era à indústria cultural que padronizava subjetividades, hoje precisamos denunciar a indústria digital que captura atenção e manipula desejos.

O Direito, nesse contexto, não pode se limitar a acompanhar a digitalização, mas deve assumir um papel ativo na proteção contra abusos. Questões como proteção de dados (LGPD), regulação da inteligência artificial e direitos digitais já estão no centro da agenda jurídica contemporânea.

Assim como no passado o Direito regulou as condições de trabalho durante a Revolução Industrial, hoje é chamado a regular os impactos da Revolução Digital.

Quando Monika Bielskyte afirma que "é urgente reconectar a tecnologia à vida", ela não faz apenas um alerta, trata-se de um imperativo civilizatório. A tecnologia pode ser emancipatória ou alienante, regenerativa ou tóxica. 

O rumo que se tomará depende das escolhas que fazemos hoje.

No setor jurídico e empresarial, adotar tecnologia não pode ser apenas uma decisão de eficiência operacional, mas sobretudo ética. Cada software contratado, cada sistema implementado, cada política digital adotada molda o modo como nos relacionamos, trabalhamos e construímos o futuro.

Reconectar a tecnologia à vida é, portanto, uma tarefa que exige coragem para questionar, ética para escolher e visão para inovar com propósito humano. Esse é o verdadeiro desafio de nossa geração.

Eduardo Koetz

VIP Eduardo Koetz

Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca