A Convenção de Haia e o princípio do melhor interesse da criança
Convenção de Haia - Sequestro internacional de crianças - Retorno e repatriação do menor - Mitigação - Risco grave - Violência doméstica - Melhor interesse da criança - Perspectiva de gênero.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Atualizado às 13:23
O sequestro internacional de crianças representa um desafio crescente no cenário globalizado. A Convenção de Haia de 1980 busca prevenir transferências ilícitas transnacionais e assegurar a restituição imediata de crianças ao seu país de residência habitual, garantindo ainda o respeito aos direitos de guarda e visita internacional.
Todavia, a aplicação automática dessa regra pode ser mitigada em caso de confronto com princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e o do melhor interesse da criança (art. 227, CF/88).
O presente trabalho propõe uma análise crítica sobre a aplicação da Convenção de Haia no Brasil com ênfase à necessidade de interpretação conforme a CF/88 e à observância às exceções previstas no próprio tratado.
A Convenção de Haia é fruto de um esforço internacional de cooperação jurídica, cujos marcos históricos incluem: (i) as Conferências da Paz de Haia (1899 e 1907); (ii) a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado (1911); (iii) a criação da Corte Internacional de Justiça (1946); (iv) a adoção da Convenção da Apostila (1961), e; (v) a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças em 1980.
No Brasil, a Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças foi incorporada ao ordenamento jurídico através do decreto 3.413/00. O STF, no RE 349.703, reconheceu o caráter supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, situando-os abaixo apenas da CF/88.
A respeito do procedimento de restituição da criança, o art. 7º da Convenção estabelece que, uma vez comprovada a transferência ou retenção ilícita, o retorno da criança deve ser imediato, com cooperação entre as autoridades centrais. Contudo, os arts. 12, 13 e 20 preveem hipóteses de exceção, senão vejamos:
- Art. 12, § 2º - dispõe que o retorno não será obrigatório se o pedido for ajuizado após mais de um ano da subtração e a criança já estiver integrada ao novo meio;
- Art. 13 - permite a recusa de restituição quando houver grave risco de perigo físico ou psíquico ou situação intolerável;
- Art. 20 - permite a negativa de restituição se o retorno violar princípios fundamentais de direitos humanos do Estado requerido.
As exceções elencadas na própria Convenção de Haia demonstram que o primado teleológico do tratado é, em essência, a proteção da criança. Portanto, apesar de o processo fundado na Convenção de Haia ter caráter cautelar com a possibilidade de adoção de medidas de urgência com vistas ao retorno da criança, não pode haver a supressão das hipóteses ínsitas na própria convenção e/ou a inobservância aos princípios previstos na CF/88.
A jurisprudência do STJ tem reafirmado que o retorno da criança é a regra, mas que as exceções devem ser aplicadas quando houver comprovação de risco grave. No REsp 1.842.083/BA1, a Corte Cidadã reconheceu que laudo psicológico minucioso é apto a justificar a permanência da criança no Brasil, ao tempo que negou a repatriação do menor por entender que episódios de violência presenciados pelo próprio infante representam risco de grave perigo de ordem psíquica nos termos do art. 13, "b", da referida convenção.
Por sua vez, o STF, nas ADIns 4.245 e 7.6862, declarou a compatibilidade da Convenção de Haia com a CF/88 e conferiu interpretação conforme ao art. 13(b), estendendo sua aplicação aos casos de violência doméstica ainda que a criança não seja vítima direta, isto é, desde que existam indícios objetivos e concretos da situação de violência invocada.
A orientação jurisprudencial de nossos pretórios merece aplausos, mormente quando a literatura especializada demonstra que crianças que convivem em ambientes onde existe violência também são vitimizadas, direta ou indiretamente.
O fato é que a violência de gênero é fator corriqueiro em casos de sequestro internacional de crianças, uma vez que inúmeras mulheres deixam o exterior na tentativa de fugir da violência doméstica praticada pelos seus companheiros. Estudo divulgado pelo Instituto Alana afirma que 88% das mulheres envolvidas em processos relativos à Convenção de Haia são vítimas de violência doméstica.
Já estudos compilados por Shetty e Edleson3 demonstram que crianças expostas à violência interparental sofrem impactos psicológicos significativos, podendo inclusive se tornar vítimas diretas de agressões. As pesquisas apontam ainda para a ocorrência simultânea da violência interparental e da violência ou maus tratos contra a criança4.
A jurisprudência brasileira tem caminhado no sentido de reconhecer que a presença da criança no contexto de violência doméstica justifica o afastamento da regra de restituição imediata, em consonância com o princípio do melhor interesse (art. 227, CF/88) e à perspectiva de gênero (art. 226, § 8º, CF/88).
A Convenção de Haia de 1980 desempenha papel fundamental na cooperação internacional e na proteção de crianças vítimas de subtração ilícita. Entretanto, sua aplicação no Brasil deve ser compatibilizada com a CF/88, a fim que seja garantido que o retorno não exponha o infante a risco grave.
A consolidação da jurisprudência do STF e do STJ representa avanço significativo ao reafirmar que os princípios do melhor interesse da criança e/ou da proteção integral são de índole constitucional e se sobrepõem à mera lógica de repatriação automática.
Futuras pesquisas podem aprofundar a análise empírica sobre os efeitos das decisões judiciais nesses casos, bem como aperfeiçoar a intervenção de equipe multidisciplinar para avaliar o risco de perigo físico ou psíquico de criança de forma célere e efetiva, especialmente em contexto de violência doméstica.
______________
1 (...) 5. Todavia, a fundamentação adotada pelo Tribunal de origem para manter o menor no Brasil está lastreada em minucioso laudo psicológico, que atestou categoricamente que o retorno da criança ao país de origem não trará meras inconveniências ou dificuldades a ela, mas sim grave risco ao seu desenvolvimento psicoemocional, ante todo o complexo contexto fático detalhado nos autos, associados à situação pessoal do genitor, à conturbada dinâmica familiar (existente desde os EUA) e a intensidade dos conflitos interparentais, com episódios de violência presenciados pelo próprio infante. (STJ, REsp 1.842.083/BA, Min. Rel. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julg. 18/10/22, DJe 27/10/22)
2 (...) 3. A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta. (STF, ADIs 4.245 e 7.686, Min. Rel. Luiz Roberto Barroso, 1ª Turma, julg. 27/08/25, DJe 05/09/25).
3 SHETTY, Sudha; EDLESON, Jeffrey L. Adult domestic violence in cases of international parental child abduction. Violence Against Women, n. 11 (2005), p. 115-138. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/7701220_Adult_Domestic_Violence_in_Cases_of_International_Parental_Child_Abduction.
4 MAZUOLLI, Valerio de Oliveira. Sequestro Internacional De Criança Fundado Em Violência Doméstica Perpetrada No País De Residência: A Importância Da Perícia Psicológica Como Garantia Do Melhor Interesse Da Criança. R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1-356 jan/dez. 2015, p. 65. Disponível em: https://revistadadpu.dpu.def.br/article/view/100.


