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Responsabilidade pré-contratual no rompimento injustificado de negociações

Rompimento injustificado nas negociações pré-contratuais pode gerar reparação, com base na boa-fé e dever de lealdade entre as partes.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Atualizado em 5 de novembro de 2025 11:02

Uma questão recorrente na prática forense em relação à contratos é: até que ponto a fase pré-contratual pode ser considerada para fins de reparação quando ocorre um rompimento injustificado das negociações por uma das partes?

Antes da assinatura do contrato, há o período de tratativas, no qual ocorrem as negociações comerciais. Nesse momento, as partes trocam informações, consultam interesses e, muitas vezes, criam uma confiança legítima de que o negócio se concretizará.

Quando essa confiança é frustrada sem uma justificativa razoável, pode surgir a chamada responsabilidade pré-contratual.

Ainda que não conste de forma expressa no Código Civil em vigor, esse instituto é citado de forma recorrente na doutrina (tradicionalmente1 nomeada de culpa in contrahendo) e nos precedentes judiciais, em decorrência da aplicação direta do princípio da boa-fé objetiva.

O ponto fundamental para essa aplicação é a previsão dos arts. 1132 e 4223 do Código Civil, que impõem a observância da probidade (honestidade) e da boa-fé não só na execução dos contratos, mas também na fase pré-contratual.

O enunciado 254 do CJF/STJ afirma que o art. 422 não inviabiliza a aplicação da boa-fé nas fases pré e pós-contratual. Já o enunciado 1705 reforça que a boa-fé deve ser observada nas negociações preliminares quando a natureza do contrato assim exigir.

Essa leitura é refletida em julgamentos recentes, como se vê em decisão do STJ:

"Na experiência negocial, é possível a ocorrência de comportamentos oportunistas abusivos e de exploração indevida de vantagem situacional, e a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, em todas as fases da contratação, tem importante função social de estimular a conduta leal e cooperativa entre as partes negociantes, coibindo exercício abusivo de direitos pelas partes e protegendo as naturais expectativas criadas no desenvolvimento da relação contratual e confiança depositada no comportamento do outro."6

Além disso, importante destacar que a ruptura injustificada pode configurar abuso de direito (Art. 1877 do Código Civil) ou ato ilícito (Art. 1868 do Código Civil), gerando o respectivo dever de indenizar (Art. 927 do Código Civil).

Vale esclarecer que o que se busca proteger não é um dever de contratar, mas sim o dever de lealdade na negociação. Se uma parte cria a confiança e depois a rompe sem um justo motivo, viola os valores associados à boa-fé esperada, como a lealdade e a cooperação, dando ensejo, portanto, ao direito de reparação.

A doutrina9 consolidou alguns pressupostos para que se configure a responsabilização pelo rompimento injustificado das negociações, além das tradicionais (culpa, dano e nexo causal):

  1. negociações efetivas (reuniões, minutas, propostas);
  2. confiança legítima na conclusão (a conduta de uma parte faz nascer na outra a expectativa razoável de que o contrato será celebrado, por exemplo, mediante anúncios públicos, pedidos de investimentos preparatórios, cronogramas próximos);
  3. ruptura sem um justo motivo (desistência inesperada e incoerente com a negociação, ocultação de informação essencial, preferência oportunista por proposta de terceiro, entre outros).

Se configurada a responsabilidade, para elaborar o pedido indenizatório é preciso analisar as peculiaridades de cada caso concreto. É possível requerer a reparação por danos materiais decorrentes de gastos desnecessários (ex.: viagens, assessorias jurídicas e contábeis), custos de investimentos e, até mesmo, pela "perda de uma chance" (se configurada), que não deve ser confundida com uma exigência de cumprimento do contrato10.

Assim, são cabíveis pedidos de: danos emergentes (despesas efetivas com deslocamentos, assessorias, preparações e outros); lucros cessantes (valores que se deixou de auferir, se devidamente comprovado).

É indispensável, contudo, sempre ter equilíbrio e boa-fé na interpretação dessas situações, principalmente porque não é proibida a desistência devidamente motivada.

Em negócios complexos, diversas mudanças podem ocorrer, principalmente em tratativas mais longas. Por isso, é essencial que as partes ajam com transparência e demonstrem que os fatores que possam ter causado a interferência não decorrem de uma conduta dolosa ou voltada à obter vantagens indevidas.

Uma forma de prevenir conflitos é ter atenção ao elaborar a proposta comercial, pois ela pode estabelecer limites e mitigar riscos, evitando contradições posteriores ou atitudes desleais.

Outras atitudes que ajudam a reduzir os riscos incluem: documentar os estágios das tratativas; comunicar, no tempo adequado, os fatos essenciais (riscos jurídicos, impedimentos, questões regulatórias); estabelecer cláusulas de confidencialidade na proposta comercial; e manter coerência de conduta durante as negociações (por ex.: evitar dar publicidade ou fazer promessas antes do tempo adequado).

Portanto, é essencial frisar que o rompimento injustificado das negociações não busca punir o direito de desistir, mas responsabilizar a forma inadequada dessa desistência. Se a conduta cria confiança e, injustificadamente, frustra expectativas razoáveis após induzir custos e investimentos, a boa-fé objetiva serve como uma limitação para evitar prejuízos. Ao mesmo tempo, deve ser preservada a liberdade de contratar11, admitindo as desistências justificadas, desde que se aja com lealdade e transparência.

________________

1 "A culpa in contrahendo pela celebração de contrato nulo é considerada atualmente apenas uma das hipóteses da ampla figura da responsabilidade pré-contratual, assim como o rompimento injustificado das tratativas. De fato, a responsabilidade pré-contratual é figura bem mais ampla e não se limita a esses dois casos, mas surge sempre que durante a fase de preparação do negócio jurídico uma das partes causa dano à outra em função da violação de um dever decorrente da boa-fé objetiva (...)." (FRITZ. Karina Nunes. "A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações". 2012. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/download/41/27/67. Acesso em 26.08.2025)

2 "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração."

3 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

4 Enunciado n. 25, CJF/STJ: "O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual"

5 Enunciado n. 170, CJF/STJ: "A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato".

6 STJ - REsp: 2078517 RJ 2022/0239925-5, Relator.: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 14/05/2024, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/05/2024

7 "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."

8 "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."

9 VASCONCELOS. Carlos Henrique de. "O DEVER DE INDENIZAR DECORRENTE DA RUPTURA INJUSTIFICADA DAS TRATATIVAS: UMA ANÁLISE SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉCONTRATUAL". P. 16. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/download/168/141/1478. Acesso em 26.08.2025.

10 "Não tem direito (parte lesada) à soma equivalente ao interesse positivo (isto é, aos exatos proveitos que conseguiria se o contrato em questão se tivesse formado validamente e tivesse sido regularmente cumprido). Tem direito sim, à indenização do interesse contratual negativo, correspondente às vantagens que teria obtido somadas aos danos e despesas que teria evitado, se não tivesse iniciado as negociações, depois injustificadamente interrompidas pela contraparte, ou celebrado um contrato inválido (...)."

(ROPPO. Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009 Citado em: MENEZES, Mário Sérgio. "Responsabilidade civil pré-contratual". Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/rc4.pdf?d=636680468024086265. Acesso em 26/08/2025.)

11 FRITZ. Karina Nunes. "A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações". 2012. P. 22. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/download/41/27/67. Acesso em 26.08.2025.

Natália Clarissa Salles Martins

Natália Clarissa Salles Martins

Advogada Cível do Grupo Employer, com Especialização em Direito Civil e Direito Processual Civil.

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