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Planos de saúde empresariais e o falso coletivo: Uma fraude contra o consumidor

As operadoras abandonaram os planos individuais, mas mantêm contratos idênticos disfarçados de coletivos. O falso coletivo fragiliza o consumidor e já chega ao Judiciário e ao Senado.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Atualizado em 9 de outubro de 2025 12:49

No Brasil, a contratação de planos de saúde segue três caminhos possíveis. O primeiro é o plano individual ou familiar, contratado diretamente junto à operadora de saúde, com reajuste regulado anualmente pela ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. O segundo é o plano coletivo por adesão, intermediado por administradoras de benefícios ligados a sindicatos, associações ou conselhos de classe. O terceiro é o plano coletivo empresarial, firmado por empresas para seus funcionários.

Esse desenho jurídico não é trivial. Ele define direitos, deveres e garantias. Por isso, a legislação (lei 9.656/1998) e as resoluções da ANS estabelecem regras diferentes para cada modalidade. No plano individual e familiar, por exemplo, o reajuste é controlado pela ANS, exatamente para impedir aumentos abusivos e garantir alguma previsibilidade ao consumidor. Não por acaso, grandes operadoras de saúde como Bradesco Saúde e SulAmérica abandonaram esse mercado - não porque ele não fosse lucrativo, mas porque os freios regulatórios limitavam práticas que lhes eram vantajosas.

Se as operadoras deixaram de comercializar planos individuais, perderiam uma parcela considerável do mercado consumidor. A solução encontrada foi engenhosa: o mercado não perdeu os clientes individuais, eles foram apenas empurrados para outra gaveta. Ao tentar contratar um plano de saúde, não é incomum que o consumidor ouça a pergunta: "Você não tem um CNPJ?" Com três vidas já seria possível aderir a um plano coletivo empresarial. Em situações ainda mais graves, CNPJs são abertos apenas para viabilizar a contratação.

É aqui que nasce o falso coletivo: contratos que, na essência, são individuais ou familiares, mas disfarçados de empresariais. Os beneficiários pertencem ao mesmo núcleo familiar, sem qualquer atividade empresarial real que justifique a elegibilidade e, portanto, a adesão.

As operadoras, que deveriam se cercar de mecanismos para coibir essa prática, aceitam sem qualquer questionamento propostas de contratação de planos empresariais em que todos os beneficiários pertencem ao mesmo núcleo familiar. Não exigem prova da relação com a empresa estipulante na fase de adesão. Mas, quando a utilização do plano aumenta e a sinistralidade se eleva, começam a enviar cartas exigindo comprovação de vínculo empregatício ou societário, sob pena de cancelamento. Em outras palavras, fecham os olhos na entrada e, quando o contrato passa a gerar custos, recorrem ao argumento da elegibilidade para rescindir ou pressionar o consumidor, revelando o caráter abusivo da prática.

O falso coletivo não é apenas um arranjo irregular de forma, mas um mecanismo que desloca o equilíbrio contratual em benefício exclusivo da operadora. Enquanto o consumidor perde garantias próprias do plano individual, a operadora passa a colher vantagens expressivas, vantagens que se convertem, inevitavelmente, em riscos para o consumidor.

Para a operadora, o falso coletivo é um negócio redondo. Ela pode rescindir o contrato a qualquer tempo, amparada na justificativa genérica de aumento da sinistralidade; tem liberdade para aplicar reajustes muito acima dos índices autorizados pela ANS, sem qualquer controle externo; e ainda impõe aditivos restritivos que reduzem reembolso, limitam a rede credenciada e alteram unilateralmente as condições de cobertura. Em resumo, acumula prerrogativas que ampliam seu poder e fragilizam o consumidor, que fica desprotegido justamente no momento em que mais precisa de estabilidade contratual.

Na prática, o consumidor perde todas as garantias próprias do plano individual e familiar. Está sujeito a um regime contratual frágil, instável e arbitrário, sem sequer saber que foi colocado nessa posição.

Essa engrenagem só se mantém porque a fiscalização não acompanha, na mesma velocidade, a realidade do mercado. Esse espaço de indefinição permite que o falso coletivo prospere e, diante disso, o Judiciário tem sido chamado a intervir, assumindo um protagonismo essencial para equilibrar a relação entre operadoras de saúde e consumidores.

Embora a prática seja conhecida, as operadoras de saúde continuam a utilizá-la sem resistência efetiva. Deixaram de comercializar planos individuais, mas mantêm contratos que são, na essência, individuais e familiares, apenas rotulados como coletivos. É a clássica fraude à lei: utiliza-se a forma coletiva para escapar da regulação protetiva que deveria valer para esses consumidores.

Nos tribunais, tem se firmado a tese de que, em casos de falso coletivo, deve-se aplicar ao contrato as regras dos planos individuais, sobretudo no que se refere aos reajustes.

Recentemente, na Comarca da Capital do Estado de São Paulo, no processo 4002335-15.2025.8.26.0529/SP, foi reconhecido que um contrato dito empresarial, mas que reunia apenas membros da mesma família, era um falso coletivo. Foi concedida liminar determinando que os reajustes fossem limitados aos índices fixados pela ANS, afastando os aumentos abusivos que vinham sendo praticados.

O problema é tão grave que já chegou ao Parlamento. Tramita no Senado o PL 1174/24, de autoria do senador Romário, que propõe alterar a lei 9.656/1998 para obrigar as operadoras a comercializar planos individuais. A justificativa do projeto é clara: os consumidores estão sendo forçados a aderir a planos coletivos que não oferecem garantias mínimas, como o reajuste regulado pela ANS e a estabilidade contratual. Hoje o projeto aguarda relatoria na Comissão de Assuntos Econômicos, mas já sinaliza um movimento legislativo que reconhece a fraude do falso coletivo e busca recolocar o consumidor no centro da regulação.

O falso coletivo é mais do que uma irregularidade contratual: é um mecanismo de expulsão indireta de consumidores, atraídos por falsas promessas e depois sufocados por reajustes insustentáveis ou cancelamentos unilaterais. Se as operadoras de saúde não querem comercializar planos individuais, que o digam às claras. O que não podem é esconder contratos individuais sob o rótulo empresarial, apenas para escapar da regulação. Até que a ANS enfrente o problema com firmeza, caberá ao Judiciário desmascarar essa farsa. E cada decisão que reconhece o falso coletivo é mais do que uma vitória isolada: é a reafirmação de que a essência deve prevalecer sobre a forma, e de que a saúde não pode ser refém de truques contratuais.

Geovani Reginaldo Souza Ferreira Valério

VIP Geovani Reginaldo Souza Ferreira Valério

Especialista em direito da saúde, Dr. Geovani Valério lidera a GV Assessoria Jurídica, com atuação estratégica nacional e formação internacional pela University of Pennsylvania

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