MAC e MAE: A engenharia do risco entre signing e closing
O artigo explica as cláusulas MAC e MAE como mecanismos contratuais que regulam riscos e incertezas entre signing e closing.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado às 11:07
Atribui-se a Pedro Malan, um dos pais do Plano Real, a autoria da observação segundo a qual: "No Brasil, até o passado é incerto". Com o tempo e o uso disseminado na linguagem corrente, a sentença teve sua autoria diluída, mas a ideia por trás dela permanece atual. Trata-se de uma provocação que sintetiza alguns traços recorrentes da vida institucional brasileira: a insegurança jurídica, a fragilidade da memória institucional e a volatilidade político-institucional.
Embora anedótica, em um plano geral essa sentença revela um traço mais profundo: sendo mediado pela memória, o passado é, por definição, uma construção humana.
Nesse contexto de incerteza sobre o passado, como falar em certeza do futuro? E aqui não se trata do futuro em sentido filosófico - o que certamente daria espaço para um tratado de filosofia, o que, mesmo sendo uma das minhas paixões, não é o propósito desta newsletter -, mas daquele lapso entre a assinatura e o fechamento de contratos de execução diferida, especialmente em operações de M&A.
Quando comprador e vendedor firmam um contrato de compra e venda de participações societárias (um SPA - Stock Purchase Agreement, para usarmos o vernáculo anglicista das mesas de negociação), partem de um estado de coisas vigente na data da assinatura. A partir daí, eventos podem ou não intervir nesse quadro, e sua relevância não guarda relação necessária com o tempo decorrido até o fechamento, na medida em que transformações substanciais podem ocorrer de forma repentina, alterando os pressupostos da transação em questão de dias, ou mesmo de horas.
E então cabe perguntar: qual o nível de mudanças que as partes estão dispostas a suportar no equilíbrio inicial do negócio para que este siga em frente e seja enfim fechado (closed)?
É para responder a essa tensão que surgem as chamadas cláusulas MAC - Material Adverse Change e MAE - Material Adverse Effect. Elas têm como função regular hipóteses de alteração substancial nas condições pactuadas, oferecendo às partes um parâmetro para lidar com eventos que possam comprometer a lógica econômica do contrato entre o signing e o closing.
Na origem, as cláusulas MAC e MAE nasceram na prática norte-americana como uma via contratual destinada a substituir, no plano negocial, a aplicação rígida da doutrina da frustração do contrato (frustration of purpose). Esta doutrina, no direito anglo-saxão, autoriza a extinção do contrato diante de eventos supervenientes, externos às partes, que tornem inútil o cumprimento da obrigação, mesmo quando juridicamente possível. É necessário que a finalidade objetiva do contrato (ou seja, o interesse comum perseguido) torne-se inalcançável. Não se trata de mera decepção de expectativas, mas da inviabilidade essencial do negócio. As cláusulas MAC e MAE ampliam esse espectro ao permitir a desvinculação do contrato sempre que ocorra uma alteração material adversa, ainda que não configure perda total de objeto.
Esse movimento encontrou no caso Akorn v. Fresenius (2018), julgado pela Chancelaria de Delaware, seu precedente mais paradigmático. Ali, reconheceu-se pela primeira vez a ocorrência válida de um MAC que justificava a desistência da transação: a empresa-alvo sofreu deterioração grave e duradoura em seus resultados financeiros, somada a falhas regulatórias relevantes. Não se tratava de uma oscilação conjuntural, mas de um impacto estrutural capaz de frustrar a essência do negócio. Recomendo muito a leitura para ter contato com o racional completo do caso: Court of Chancery of the State of Delaware, Akorn, Inc. v. Fresenius Kabi AG, C.A. No. 2018-0300-JTL (2018).
No Brasil, as cláusulas MAC e MAE são atípicas, mas amplamente admitidas com fundamento na autonomia privada (art. 425 do CC). Na prática, cumprem função próxima à de um instrumento de alocação de riscos: permitem que comprador e vendedor antecipem, já no contrato, quem suporta os efeitos de eventos relevantes que possam alterar a lógica do negócio.
Em vez de se submeterem à revisão judicial por onerosidade excessiva - que depende da ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis, da criação de desequilíbrio relevante entre as partes e, ainda, da intervenção do juiz (art. 478 do CC) -, com as cláusulas MAC e MAE as partes optam por instituir uma válvula de escape contratual e de aplicação imediata, moldada às especificidades da transação. Esse mecanismo lhes assegura maior controle sobre o fator "futuro" no âmbito do que foi pactuado.
Por isso, mais do que discutir se as cláusulas equivalem à resilição convencional, o ponto central é entender seu funcionamento como ferramentas de governança do risco intercalar. De forma prática, as cláusulas MAC e MAE permitem que as partes definam previamente o que pode ser considerado uma alteração material e qual delas deve arcar com as consequências (em linha com a lógica dos arts. 421 e 421-A do CC, que reforçam a autonomia privada).
As cláusulas MAC e MAE não se confundem com condições suspensivas ou resolutivas. Diferentemente das condições suspensivas, que têm por efeito adiar a eficácia de um contrato até a ocorrência de um evento futuro e incerto (art. 125 do CC), as cláusulas MAC e MAE não deslocam no tempo a produção dos efeitos do negócio: elas apenas regulam a alocação de riscos no intervalo entre assinatura e fechamento, tratando de eventos que podem comprometer a lógica da transação antes de sua consolidação.
Também não equivalem às condições resolutivas (art. 127 do CC). Enquanto estas têm a função de desfazer a eficácia de um contrato que já se encontra em execução, as cláusulas MAC e MAE operam em momento anterior, permitindo que a parte beneficiária se desvincule em razão de alteração material adversa ocorrida no período intercalar.
Em termos práticos, enquanto as condições atuam como "gatilhos temporais" da eficácia contratual, as MAC/MAE funcionam como ferramentas de governança do risco, permitindo que as partes definam "ex ante" quais mudanças são aceitáveis e quais autorizam a saída do negócio.
A eficácia prática, contudo, depende da redação. Cláusulas excessivamente abertas podem até auxiliar uma negociação mais expedita, na medida em que afastam a necessidade de discussões mais refinadas sobre seu texto, mas essa economia tende a se reverter em custos elevados no enforcement, pois conceitos indeterminados aumentam o ônus argumentativo e probatório da parte favorecida, abrindo espaço para potenciais litígios longos, arbitragens dispendiosas e incerteza elevada. Cláusulas específicas demandam mais esforço de negociação - mais discussões, mais rodadas de minutas, mais exclusões cuidadosamente delimitadas -, mas oferecem, em contrapartida, maior segurança jurídica e menor custo de execução. É aqui que se revela a natureza do contrato como uma verdadeira ata da negociação: cada palavra funciona como memória formalizada das concessões e resistências das partes, e a falta de precisão nessa ata aumenta o espaço para litígios futuros. Trata-se em essência do chamado custo de transação.
Dois elementos são centrais para a aplicação dessas cláusulas: materialidade e causalidade. A materialidade exige que a alteração seja relevante a ponto de comprometer o equilíbrio do contrato. Sua aferição envolve avaliar se o risco foi assumido por uma das partes, se a cláusula favoreceria quem não assumiu o risco e se o negócio teria sido firmado mesmo diante do evento. A perenidade dos efeitos também é relevante: não se exige que sejam definitivos, mas devem ter impacto duradouro sobre a sociedade-alvo ou sobre a própria finalidade econômica da transação. Já a causalidade impõe que o evento seja determinante para o efeito adverso alegado: não basta contribuir, é preciso que seja a causa direta da alteração substancial.
Além disso, é comum que as cláusulas MAC/MAE sejam acompanhadas de mecanismos auxiliares, como as bringing down clauses - que exigem a repetição das declarações e garantias na data do closing - e condições de fechamento específicas. Esses instrumentos funcionam como filtros adicionais, reforçando o controle das partes sobre a ocorrência (ou não) de eventos que possam alterar substancialmente a base do negócio. Outras previsões acessórias incluem cláusulas de covenants de conduta, que obrigam a parte vendedora a manter a operação dentro de padrões ordinários até o fechamento, e cláusulas de ajuste de preço (purchase price adjustments), que dialogam diretamente com os efeitos de eventual MAC/MAE.
O efeito típico dessas cláusulas é liberatório: a parte beneficiária pode se desvincular do contrato, motivo pelo qual também são chamadas de deal stopping clauses. Alternativamente, podem ter função revisional, servindo de gatilho para renegociação de termos ou ajuste de preço. Por isso, muitos contratos utilizam simultaneamente as expressões MAC e MAE, empregando-as de modo intercambiável para abarcar tanto a resolução quanto a revisão.
Em M&A, as cláusulas podem se apresentar de modo estrito - com definições precisas do que constitui alteração material adversa, acompanhadas de exclusões (carve-outs) - ou de modo difuso, espalhadas em seções como declarações e garantias ou condições de fechamento. Seja em uma forma ou outra, cumprem o papel de balizar a alocação de riscos no período intercalar.
Mais do que disposições contratuais, MAC e MAE traduzem escolhas sobre quem suporta o peso do inesperado e em que momento esse custo poderá ser enfrentado.
Em um ambiente como o brasileiro, em que "até o passado é incerto", tais cláusulas oferecem às partes um pacto mínimo de previsibilidade, não como blindagem absoluta, mas como uma forma de traduzir o incerto em regulável.
Em última análise, as cláusulas MAC e MAE não eliminam a incerteza; apenas a tornam minimamente administrável. Como disse Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas:
"A natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. (.) Viver é muito perigoso. (.) Viver - o senhor sabe - é etcétera."


