O direito à saúde não pode ser reduzido a um risco financeiro
O crescimento de casos de câncer tem sido considerado um risco financeiro aos planos de saúde, mas essa visão ignora o beneficiário e contraria o direito.
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
Atualizado às 10:51
Novos estudos apontam que futuramente haverá mais casos de câncer. Até 2050, serão 30,5 milhões de diagnósticos anuais e 18,6 milhões de mortes (Medscape/Global Burden of Disease, 2025).
Mas não apenas isto assusta o setor da saúde suplementar. A cada ano, a incorporação de novos tratamentos coloca a oncologia como sendo um dos grandes desafios e ofensores do mercado. Então logo vem a lógica de que beneficiários com câncer são uma ameaça financeira, ou seja, são vistos como "alto custo" e o seu tratamento como um risco à sustentabilidade da carteira.
Quando analisado sob a ótica da CF/88, essa justificativa não se sustenta. No art. 196 da CF/88 traz que "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." Como sendo dever de todos, não seria diferente para a saúde suplementar, visto que o plano de saúde assume a obrigação contratual de garantir a assistência à saúde adequada e contínua. Sob essa ótica, o beneficiário não pode ser equiparado a variável de risco, pois ele é titular do direito à saúde e a vida digna.
Essa premissa é reforçada pelo CDC, pois veda as práticas abusivas e exige a boa-fé nas relações contratuais. Sendo assim, os contratos de planos de saúde não podem ser interpretados apenas sob a visão empresarial, mas também pelo princípio da função social, devendo assegurar a proteção à saúde no momento de maior vulnerabilidade do beneficiário, como no caso dos tratamentos oncológicos.
O argumento de que os tratamentos oncológicos podem virar um "tsunami financeiro silencioso" paras as operadoras é ainda mais frágil quando colocamos em prova os dados recentes da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar - de que os lucros dos planos de saúde subiram 157% no primeiro trimestre de 2025, sendo o maior em quatro anos. Isso mais que evidencia que não está em jogo a escolha entre sustentar a carteira ou garantir o tratamento, mas sim a escolha de modelos de gestão mais eficientes e racional dos recursos, sem sacrificar e impedir o acesso do beneficiário ao tratamento.
O verdadeiro debate que os planos de saúde devem fazer, não é se o câncer custa caro para a sua operação, mas sim como equilibrar a inovação e a sustentabilidade sem abrir mão do que verdadeiramente importa - a saúde, vida e dignidade do beneficiário. Protocolos clínicos baseados em evidências, eliminação de desperdícios e transparência contratual podem auxiliar na redução de custos, mas jamais como justificativas para negarem ou dificultarem o tratamento.
Por fim, a saúde suplementar existe porque há consumidores que confiam nos serviços e na garantia de tratamento. Colocar o bem-estar do beneficiário em segundo plano em prol da "saúde-financeira da carteira" é inverter a lógica contratual e abandonar os princípios constitucionais e consumeristas. A verdade é que o risco não está no paciente e no elevado número de diagnósticos, e sim no desgaste de confiança e da função social do contrato.
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Medscape / Global Burden of Disease.
Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME). O câncer em ascensão no Brasil e América Latina: projeções até 2050. Medscape Português. Publicado em 2025. Disponível em: https://portugues.medscape.com/viewarticle/câncer-ascensão-brasil-e-américa-latina-olho-2025a1000pr1
Lopes, Leticia - Lucro de planos de saúde sobe 157% no primeiro semestre: R$ 6,3 bilhões, o maior em quatro anos - O Globo 02/09/2025 - disponível em https://oglobo.globo.com/economia/negocios/noticia/2025/09/02/planos-de-saude-tem-lucro-de-r-63-bilhoes-no-primeiro-semestre-o-maior-em-quatro-anos.ghtml - acesso em 03 out. 2025


