Utopia em ruínas na cidade maravilhosa
Nas calçadas do Rio, a utopia tropeça no controle policial das pessoas em situação de rua. Um convite para pensar a cidade e o que ainda resta de humano nela.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado em 10 de outubro de 2025 08:43
Recentemente, em 14/9/25, foi amplamente divulgada a prisão em flagrante de uma mulher e um homem, ambos em situação de rua, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, na cidade do Rio de Janeiro, após operação da Seop - Secretaria de Ordem Pública, em conjunto com a Guarda Municipal e com a Secretaria de Proteção e Defesa dos Animais.1 A abordagem se iniciou após denúncia de supostos maus-tratos a animais de estimação, embora os acusados tenham sido presos pelos crimes de desacato e desobediência. Alguns dias depois, a mulher, que não quis ser identificada, foi solta por decisão judicial proferida em audiência de custódia.2 Testemunhas e moradores negam os maus-tratos e acusam as autoridades de destruírem os bens do casal, além de acusarem os agentes de não terem acolhido os animais.3 Um dos cachorros, inclusive, foi encontrado dias depois vagando pelas ruas da região.4 O homem preso, ainda, relatou ter sido pisado no rosto por um dos policiais que realizou a abordagem.5 A ação, assim, revela graves indícios de truculência: três animais foram deixados na rua, o que já indica que o bem-estar dos pets talvez não fosse a preocupação da operação.
Um levantamento realizado pela UFMG estima que 22,5 mil pessoas vivem nas ruas do Rio de Janeiro e a prefeitura indica que 7,8 mil pessoas estão em situação de rua.6 Nos abrigos públicos municipais, porém, há apenas 3 mil vagas. O Estado do Rio de Janeiro, em 2024, apresentou déficit habitacional de 544.275 domicílios, sendo 409.640 na região metropolitana.7 O índice leva em conta os critérios de habitação precária, coabitação de mais de uma família em um mesmo imóvel e o ônus excessivo com aluguel.
Em razão desse cenário, que não é de exclusividade do Rio de Janeiro, em 2022, a Rede Sustentabilidade, o PSOL e o MTST propuseram a ADPF de 976. Segundo os autores da ação, "a população de rua somente vê a presença do estado para reprimir, expulsar, violentar, prender e praticar outros atos violentos". Ainda, questionam: "Será que se trata de uma ação voltada ao real interesse público? Infelizmente, não. Parece mais se tratar, infelizmente, quase que de uma espécie de eugenia - mas baseada em aspectos socioeconômicos". Foi nesse contexto que o relator, ministro Alexandre de Moraes, reconhecendo um "potencial estado de coisas inconstitucional", concedeu parcialmente a medida cautelar8, determinando, entre outras providências, a adesão à Política Nacional para a População em Situação de Rua e a proibição do "recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua".9 Como destacado pelo relator, a aporofobia, isto é, o medo, rejeição ou a aversão aos pobres, viola os objetivos fundamentais da República (art. 3º, IV, da CRFB), inclusive por ação ou omissão estatal, realizadora dessa forma repugnante de hostilidade.
Apesar disso, a teoria ainda parece distante da prática. A assistência à população em situação de rua, que deveria priorizar renda e moradia, acaba subordinada à lógica do controle dos pobres. No Rio, programas formalmente vinculados à Secretaria de Assistência Social são, na prática, conduzidos pela Secretaria de Ordem Pública e pela Guarda Municipal.10 Assim, o acolhimento permanece simbólico e a lógica policial, dominante.
Esta ação conduzida pela prefeitura pode não ter sido a primeira e nem a última ação truculenta contra a população em situação de rua na cidade maravilhosa: no inverno de 2025, com temperaturas de 11ºC, agentes da prefeitura apreenderam cobertores e outros materiais usados para proteção e abrigo dos indivíduos. À época, a Secretaria de Ordem Pública não se manifestou sobre as denúncias, limitando-se a afirmar que "realiza diariamente ações de ordenamento urbano, desobstrução de áreas públicas e acolhimento a pessoas em situação de rua (neste caso, em apoio à Secretaria Municipal de Assistência Social - SMAS)"11.
O discurso oficial é de compromisso com a população em situação de vulnerabilidade, de um lado, e de imparcialidade no trato do problema, de outro. Como aponta Juarez Tavares, é preciso desmistificar a ideia de neutralidade da atuação estatal, que é sempre violenta e orientada em favor dos interesses das classes dominantes12. O saber criminológico, por meio da interdisciplinariedade que o constitui, nos dá importantes ferramentas para desvelar aspectos nem sempre tão ocultos que norteiam a atuação do soberano: a brutalidade dos órgãos estatais e da administração pública contra a população pobre e negra no Rio de Janeiro é persistente e sobrevive ao curso da história.
Desde a década de 90, a guerra às drogas domina a agenda da chamada política de "segurança pública" da cidade, acompanhada pelo hiperencarceramento e pela letalidade policial. O alvo preferencial sempre foi o preto e pobre, reconhecido como o outro, causador de pânico e desordem social. Ainda em meados da década de 90, apontavam Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder que "a saída do regime militar tem colocado novamente as classes médias altas em pânico diante da ausência de controle social autoritário. Tal como na conjuntura de saída do regime escravista e da monarquia, quando o "medo branco" manifestava suas preocupações com o aumento da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro". Esse "medo branco", lembram, "tem se manifestado em diferentes situações (...) para justificar a adoção de políticas repressivas de controle social e questionar fortemente as opções democráticas". A ideia de que a ordem deve conter o caos atravessa os discursos estatais e sociais dirigidos às pessoas em situação de rua. Nessa lógica, o diferente, isto é, o negro, o pobre, a mulher, o indígena, o estrangeiro, é visto como uma ameaça, um agente capaz de "provocar fissuras no todo suposto harmônico e integrado".13 Por trás dessa visão ecoam antigas matrizes filosóficas que moldaram o nosso pensamento ocidental, da tradição aristotélica-tomista à racionalidade cartesiana, todas orientadas por uma crença na hierarquia e na harmonia como sinônimos de ordem. Como resultado, acaso, espontaneidade, desejo e subjetividade quase não encontram lugar.
As operações que envolvem pessoas em situação de rua podem ser inseridas, portanto, nesta política de "ordenamento" e exclusão de pobres, fazendo recair sobre esse grupo o estigma do perigo, do crime e do caos. Quando a prefeitura deixa escapar que a finalidade das ações é, em verdade, a desobstrução das áreas públicas, a mensagem que se transmite é que a cidade e o espaço público não pertencem às pessoas em condição de vulnerabilidade, e a única resposta que o Estado os pode oferecer é a criminalização ou, com sorte, ao encaminhamento a um precário abrigo público.
A partir da completa falta de políticas públicas de moradia, de um lado, e da atuação estatal repressiva, de outro, é que deve ser compreendido o episódio ocorrido em Ipanema, e à luz de uma criminologia crítica. Embora o ideal de "segurança pública", pretensamente oculto, ainda oriente o agir do Estado, em democracia, essa política deveria ser de "segurança dos direitos", na feliz expressão de Alessandro Baratta. Como destacou Nilo Batista, Baratta já percebera que a noção de segurança pública é uma concepção "(...) falsa porque, se significasse a garantia de todos os direitos de todos os cidadãos, seria melhor enunciada como segurança dos direitos ao invés de um vazio direito à segurança; perversa, porque nas sociedades de classes a garantia dos direitos de certas pessoas geralmente se empreende às custas de severas violações a direitos de outras".14 Segundo Vera Malaguti Batista, a noção de segurança não reside em seu próprio paradigma, mas sim na gestão coletiva de projetos de vida, isto é, nos transportes, saúde, educação, cultura, lazer, esporte, na moradia, e outros direitos.15
As permanências históricas da brutalidade do Estado Brasileiro contra as classes subalternas se tornam visíveis, portanto, de forma periódica, em flashs midiáticos, tais como aqueles que registraram a abordagem em Ipanema, enquanto tantas outras violências policiais permanecem fora das câmeras, escondidas nos becos das favelas cariocas.
Podemos encerrar lembrando Eduardo Galeano, que nos ensinava ser vital manter a utopia em nossos horizontes. É essa mesma esperança que move os subscritores do presente artigo: acreditar na possibilidade de políticas públicas voltadas à garantia de direitos, principalmente aos mais vulneráveis. E se o mesmo escritor nos advertiu, referindo Goya, que devemos temer quando a razão se separa do coração16, optamos por fugir das racionalidades hegemônicas e reafirmar que, se o controle e a repressão estatal persistem como prática dominante no contexto urbano do Rio de Janeiro, apenas o acolhimento e a efetivação dos direitos podem sustentar uma ação estatal legítima.
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1 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/15/mulher-presa-ipanema-zona-sul-do-rio.ghtml e https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/16/justica-mulher-situacao-de-rua-presa-acao-seop.ghtml [acesso em 21/09/2025]
2 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/16/cao-perdido-de-mulher-em-situacao-de-rua-que-foi-presa-em-ipanema-e-encontrado.ghtml e https://diariodoestadogo.com.br/mulher-em-situacao-de-rua-e-solta-apos-seop-apreender-caes-em-ipanema/ [acesso em 21/09/2025]
3 Vide nota 1.
4 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/16/cao-perdido-de-mulher-em-situacao-de-rua-que-foi-presa-em-ipanema-e-encontrado.ghtml [acesso em 21/09/2025]
5 Vide nota 2.
6 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/08/25/acao-civil-publica-aponta-falhas-da-prefeitura-do-rio-com-populacao-em-situacao-de-rua.ghtml [acesso em 21/09/2025]
7 https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/05/15/estudo-mostra-que-deficit-habitacional-no-rio-e-o-maior-dos-ultimos-anos-mais-de-meio-milhao-de-moradias.ghtml [acesso em 21/09/2025]
8 A qual foi referendada pelo Plenário da Corte em 22.08.2023.
9 Conforme decisão na ADPF 976.
10 https://carioca.rio/servicos/servico-especializado-em-abordagem-social/ [acesso em 22/09/2025].
11 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/07/20/populacao-de-rua-madrugadas-de-inverno-no-rio.ghtml
12 TAVARES, Juarez. Violência: o engano do mal. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2025.
13 CERQUEIRA FILHO, Gisálio; NEDER, Gizlene. Quando o eu é um outro. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, ano 1, número 2, 2o semestre de 1996, pp. 91-92.
14 BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (org.). Sem polícia. São Paulo, Tirant, 2024, pp. 89-93.
15 BATISTA, Vera Malaguti. "O Alemão é muito mais complexo", Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, p. 103-125, jul./dez. 2011. Disponível http://memoriadasolimpiadas.rb.gov.br/jspui/bitstream/123456789/21/1/SG002%20- %20BATISTA%20Vera%20M%20-%20o%20alemao%20e%20muito%20mais%20complexo.pdf.
16 https://www.youtube.com/watch?v=mdY64TdriJk [acesso em 21/09/2025]
BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (org.). Sem polícia. São Paulo, Tirant, 2024.
BATISTA, Vera Malaguti. "O Alemão é muito mais complexo", Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, p. 103-125, jul./dez. 2011.
CERQUEIRA FILHO, Gisálio; NEDER, Gizlene. Quando o eu é um outro. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, ano 1, número 2, 2o semestre de 1996.
TAVARES, Juarez. Violência: o engano do mal. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2025.
Larissa Barbosa
Advogada Associada no escritório Nilo Batista & Advogados Associados. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais (GCrim/UFRJ). Mestranda em Direito Penal na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Bacharela em Direito e em Psicologia, ambas pela UFRJ.





