Peter Häberle: O humanista que ensinou o Direito a ouvir a sociedade (1934-2025)
Jurista que revolucionou a hermenêutica constitucional, defendeu uma Constituição viva, aberta ao diálogo social e orientada pela democracia e pelo pluralismo.
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Atualizado em 7 de outubro de 2025 13:29
Com profunda lástima e grande reconhecimento, a comunidade jurídica mundial se despede de Peter Häberle, jurista alemão que nos deixou aos 91 anos. Considerado um dos mais importantes teóricos do Direito Constitucional contemporâneo, Häberle transcendeu o mero tecnicismo legal, firmando-se como um autêntico humanista cuja obra é um convite perene à reflexão sobre a democracia e o pluralismo.
Sua contribuição não se limita aos anais acadêmicos europeus; ela se tornou uma bússola essencial para a abertura hermenêutica do Direito brasileiro, influenciando a academia, a legislação e a jurisprudência do STF.
"Não há norma jurídica senão norma jurídica interpretada." - Peter Häberle (1934-2025)
O legado do pluralismo: A sociedade aberta dos intérpretes
O cerne da revolução doutrinária de Häberle reside em sua seminal obra, "Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição" (traduzida para o português em 1997). O jurista rompeu com a visão tradicional que confinava a interpretação constitucional a um numerus clausus de operadores oficiais, notadamente juízes e legisladores.
Para Häberle, a Constituição não se resume ao seu texto escrito; ela vive na sua interação contínua com a sociedade. O processo de interpretação deve ser uma "atividade plástica, construtiva e criadora", levada a cabo pela e para a sociedade aberta. Essa virada hermenêutica radical pressupõe que:
- A Constituição é pública: Sua leitura deve ser feita "em voz alta e à luz do dia", garantindo que todos os membros da sociedade política, como destinatários finais e realizadores da norma, participem de sua tradução.
- O círculo de intérpretes é ilimitado: Todos os órgãos estatais, as potências públicas e, crucialmente, "todos os cidadãos e grupos" são considerados agentes conformadores da realidade constitucional e legítimas "forças produtivas de interpretação".
- A norma vive na experiência: Em uma de suas máximas mais poderosas, Häberle ensinou que "não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada". A norma é, na verdade, o resultado de um processo que integra o programa normativo (o texto) com o âmbito normativo (a realidade social), em permanente diálogo dialético.
Os pilares da tolerância: Pensamento do possível e cooperação
A obra de Häberle se sustenta em conceitos que visam garantir a longevidade e a adaptabilidade da Constituição em sociedades complexas e plurais:
1. O pensamento do possível (Möglichkeitsdenken)
A Constituição é um "projeto (Entwurf) em contínuo desenvolvimento". Diante disso, a interpretação não pode ser aprisionada pela lógica binária (Entweder-oder - "um ou outro"), mas sim aberta a múltiplas alternativas. O "pensamento jurídico do possível" indaga sobre o que ainda não é real, mas pode vir a sê-lo, permitindo que a Constituição preserve sua força regulatória ao se adaptar às necessidades do tempo.
Esta abertura a alternativas, que contempla a realidade sem se deixar dominar por ela, converte-se em uma "teoria constitucional da tolerância", essencial para a coexistência de visões divergentes na esfera pública.
2. O Estado Constitucional Cooperativo
Em um mundo globalizado, Häberle concebeu o Estado Constitucional Cooperativo como aquele que abdica da soberania clássica e "não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo".
Neste modelo, os Estados Constitucionais se tornam referências mútuas, dedicando-se ativamente ao intercâmbio no plano internacional, com ênfase primordial na proteção dos direitos humanos. É essa matriz teórica que impulsiona a construção de ordens jurídicas supranacionais e a busca por um "direito constitucional comum", como o almejado para a região ibero-americana.
A doutrina Häberliana no Brasil
A influência de Häberle na práxis jurídica brasileira é inestimável, sendo o alicerce para a democratização e a transparência do controle de constitucionalidade:
- Abertura processual e legitimidade: A lei, ao institucionalizar a figura do amicus curiae e a realização de audiências públicas no controle abstrato, é uma tradução direta da doutrina da sociedade aberta. O STF, ao utilizar esses mecanismos (como no emblemático caso da ADI sobre células-tronco), garante o acesso a subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica de múltiplos segmentos, conferindo maior legitimidade democrática às suas decisões.
- Resolução de lacunas constitucionais: O pensamento do possível foi adotado pelo STF para resolver lacunas e assegurar a integridade do sistema, como na ADI , na qual a Corte interpretou a regra da lista sêxtupla para o quinto constitucional de forma a resguardar a pluralidade na composição dos Tribunais, mesmo diante de requisitos temporariamente ausentes.
- Mutação constitucional e supralegalidade: O modelo do Estado Constitucional Cooperativo foi fundamental para o histórico câmbio jurisprudencial do STF (REs 349.703 e 466.343), que reconheceu a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos (como o Pacto de San José da Costa Rica). Essa decisão reposicionou o Brasil em sintonia com a ordem jurídica supranacional, reconhecendo que tais instrumentos têm o poder de paralisar a eficácia de legislação infraconstitucional com eles conflitantes.
O caso da liberdade sindical
Como prova da capilaridade e da aplicação setorial de sua teoria no Brasil, Peter Häberle serviu como marco teórico principal para a tese e livro "Liberdade Sindical no Estado Constitucional Cooperativo".
Essa conexão ilustra como a visão de Häberle sobre um Estado aberto e voltado para a cooperação é indispensável para repensar direitos fundamentais de natureza coletiva. Em um Estado Cooperativo, a liberdade sindical é essencialmente ressignificada, exigindo que o arcabouço constitucional brasileiro se harmonize com as normas e tendências internacionais, reconhecendo o sindicato não apenas como um ator de direito interno, mas como parte integrante do diálogo global e cooperativo, fortalecendo a vida democrática e o conceito de cidadania.
A continuidade do projeto
Peter Häberle nos deixa, mas seu legado - o de que a comparação de direitos fundamentais pode ser considerada o quinto método da interpretação constitucional - assegura a perenidade de sua influência.
Sua obra é, em essência, um projeto para a eternização da Constituição, que continuará a ser reescrito e reinterpretado pelos inúmeros sujeitos que ele autorizou a falar em nome da lei fundamental. A maior homenagem que se pode prestar a este gigante é manter viva a chama da interpretação pluralista, garantindo que a Constituição seja, de fato, o projeto aberto e inclusivo que ele nos ensinou a valorizar. O seu legado é e sempre será, resumidamente, "uma democracia demanda comportamento democrático do Estado e da Sociedade".
Andréa Arruda Vaz
Advogada, pesquisadora e escritora, Doutora e Mestre em Direito Constitucional.
Robson Luiz de Souza
Graduando em Direito e especialista em marketing jurídico, com atuação voltada à construção de autoridade e posicionamento estratégico para advogados e escritórios. Copywriter jurídico, estrategista em comunicação e autor de artigo científico.



