Sem lei clara, Justiça decide quem é ou não pessoa com deficiência
Doença renal crônica é deficiência invisível: sem lei federal, decisões judiciais desiguais perpetuam injustiça e exclusão social.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Atualizado às 14:49
Um candidato a concurso público, portador de insuficiência renal crônica, cliente do nosso escritório, foi surpreendido com a decisão de uma banca examinadora que o declarou inapto à reserva de vagas destinadas a pessoas com deficiência. A nefropatia grave que o obriga a sessões semanais de hemodiálise não bastou para convencê-los de que sua condição é impeditiva. Restou a ele o caminho que milhares de brasileiros conhecem bem: recorrer ao Judiciário. E, ao fazê-lo, conseguiu uma liminar que garantiu sua permanência na disputa.
Mas essa conquista expõe outro problema: nem todo brasileiro consegue judicializar seus direitos. O acesso à Justiça no Brasil ainda é profundamente desigual. Para uma parcela da população, a via judicial é uma alternativa concreta, mas para milhões de cidadãos, especialmente os mais vulneráveis, é um caminho inacessível - seja pelos custos, pela complexidade do processo ou pela falta de informação. Quando o legislador se omite, transfere para o Judiciário a tarefa de resolver, caso a caso, o que deveria estar assegurado em lei, mas isso significa que apenas quem consegue chegar aos tribunais terá sua dignidade reconhecida.
A história, portanto, não é exceção: é sintoma de um vazio legislativo que obriga os pacientes a transformar sua condição de saúde em litígio, judicializando a própria sobrevivência.
A insuficiência renal crônica não é uma enfermidade episódica. É uma condição de longo prazo, que impõe limitações severas e exige um tratamento invasivo, contínuo e vitalício. Ainda assim, o ordenamento jurídico brasileiro não a reconhece de forma expressa como deficiência. O resultado é a fragmentação: em alguns tribunais, prevalece o entendimento de que a doença, por restringir de modo permanente a participação plena em sociedade, se enquadra no conceito de deficiência trazido pela lei brasileira de inclusão e pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Em outros, prevalece uma leitura restritiva, limitada a parâmetros técnicos de classificações internacionais, que ignora a dimensão social do problema. A cada nova ação judicial, o Judiciário se vê compelido a suprir o que deveria ser competência legislativa, transformando decisões individuais em soluções improvisadas para uma falha estrutural.
Enquanto isso, o país assiste a uma disparidade federativa que escancara a desigualdade.
Pelo menos cinco estados já avançaram e editaram normas próprias reconhecendo a insuficiência renal crônica como deficiência. Em São Paulo, a lei 16.779/18 equiparou os portadores de doença renal crônica às pessoas com deficiência para fins de reserva legal de vagas em concursos públicos. No Acre, a lei 3.609/20 classificou expressamente o doente renal crônico como pessoa com deficiência para todos os efeitos constitucionais e infraconstitucionais. Em Minas Gerais, a lei 24.654/24 assegurou aos renais crônicos os mesmos direitos das pessoas com deficiência. Em Santa Catarina, a lei 18.255/21 alterou a legislação estadual de PcD para incluir a deficiência orgânica renal crônica em estágio avançado. No Rio de Janeiro, a lei 8.065/23 equiparou o paciente renal crônico a PcD para garantir acesso a direitos de acessibilidade, inclusive vagas especiais de estacionamento.
Nessas unidades da federação, pacientes renais crônicos passaram a ter direito não apenas à reserva de vagas em concursos públicos, mas também a benefícios tributários, políticas públicas inclusivas e prioridade em programas sociais. Nos demais estados, entretanto, continuam invisíveis. O reconhecimento ou a negação de direitos básicos depende do CEP do paciente, em flagrante contradição ao princípio da isonomia, o que mina a credibilidade do sistema jurídico e amplia a desigualdade no acesso a direitos fundamentais.
O Congresso Nacional não pode alegar ignorância do tema. Em 25 de fevereiro de 2015, o deputado Arnaldo Faria de Sá apresentou o PL 456, com o objetivo claro: reconhecer os portadores de doença renal crônica como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais. O projeto foi apensado ao PL 155/15, percorreu as comissões de Seguridade Social e de Finanças e Tributação, foi arquivado em 2019, desarquivado no mesmo ano, e desde então arrasta-se sem avanço efetivo.
Em setembro de 2024, a deputada Laura Carneiro foi designada relatora na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde ainda se encontra, aguardando parecer. Dez anos após sua apresentação, o PL continua parado. A morosidade legislativa tem custo: ela se traduz em ações judiciais, em insegurança jurídica, em pacientes obrigados a litigar para exercer direitos elementares.
O Judiciário tem cumprido um papel relevante ao corrigir ilegalidades pontuais, mas não pode continuar legislando a cada caso concreto. O resultado é a multiplicação de decisões contraditórias, ora reconhecendo a deficiência, ora negando-a, inviabilizando direitos.
Esse improviso judicial não traz segurança nem justiça. O que se exige é uma resposta clara, uniforme e nacional: a aprovação de uma lei que diga, sem rodeios, que a insuficiência renal crônica é deficiência, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes.
A omissão legislativa custa caro. Ela custa anos de litígio, custa oportunidades profissionais desperdiçadas, custa dignidade. E, sobretudo, custa rins. Quem depende de uma máquina para viver não pode depender também da inércia do Parlamento para ter seus direitos reconhecidos.


