Muros do silêncio: O abuso sexual infantil e a urgência de proteger a criança no santuário do lar
O abuso sexual infantil, muitas vezes cometido dentro do lar, rompe a confiança e destrói infâncias. Romper o silêncio é dever jurídico, moral e social.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Atualizado em 13 de outubro de 2025 11:59
O lar deveria ser, por definição e por mandamento legal, o refúgio inviolável da criança, o espaço sagrado de afeto, segurança e desenvolvimento. É a imagem que construímos, o ideal que almejamos e o direito que a nossa Constituição Federal, em seu art. 227, consagra com a força da prioridade absoluta. Contudo, como jurista e cidadã, sou compelida a rasgar este véu de idealização para confrontar uma das mais sombrias e dolorosas realidades de nossa sociedade: para um número assustador de crianças, o perigo não está na rua escura ou no estranho à espreita, mas dentro de casa, personificado por aqueles que deveriam ser seus guardiões.
Os dados dos anuários de segurança pública e os relatórios do Disque 100 são categóricos e devastadores: a esmagadora maioria dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes é perpetrada por familiares ou pessoas do círculo de confiança da vítima - pais, padrastos, avós, tios, irmãos mais velhos, amigos da família. Esta não é uma exceção trágica; é um padrão sistêmico e insidioso. A violência se instala onde a confiança deveria florescer, e o silêncio se torna o alicerce de uma fortaleza de dor. Discutir este tema não é uma escolha, é uma obrigação moral e um imperativo jurídico para todos nós.
A fortaleza violada: Desconstruindo o mito do "estranho perigoso"
O primeiro passo para combater um inimigo é reconhecê-lo. Por décadas, o imaginário coletivo foi ensinado a temer a figura do "estranho perigoso", uma narrativa que, embora não de todo falsa, desvia o foco do epicentro da violência. A verdade estatística nos força a olhar para dentro de nossos próprios lares e círculos sociais. O abuso intrafamiliar é particularmente cruel não apenas pela violência do ato em si, mas pela profunda traição que ele representa. Ele aniquila a estrutura de confiança sobre a qual a criança constrói seu mundo. O agressor não é um monstro anônimo; ele é a figura que ensina, que cuida, que deveria proteger.
Essa dinâmica perversa cria uma confusão devastadora na mente da criança, que passa a associar afeto com violação, cuidado com dor. O Direito Penal brasileiro, de forma acertada, tipifica essa conduta como Estupro de Vulnerável (art. 217-A do CP), reconhecendo a presunção absoluta de vulnerabilidade de menores de 14 anos. A lei compreende que, nesta faixa etária, não há que se falar em consentimento, pois a criança não possui maturidade e discernimento para tal, especialmente quando submetida a uma relação de poder, autoridade ou afeto por parte do agressor. O abuso se vale do poder para manipular, do segredo para aprisionar e da culpa para silenciar a vítima.
É neste ponto que se erguem os "muros do silêncio". A criança abusada raramente fala, não apenas pelo medo do agressor, mas por um emaranhado de sentimentos complexos: a vergonha, a culpa que lhe é falsamente imputada ("você provocou"), o receio de não ser acreditada e o pavor de destruir sua própria família. Frequentemente, a dinâmica familiar, de forma consciente ou não, colabora para este silenciamento, seja por negação, por dependência emocional ou financeira em relação ao abusador, ou por uma equivocada tentativa de "proteger o nome da família". Este pacto de silêncio é o que permite que a violência se perpetue por anos, deixando cicatrizes psíquicas que podem durar uma vida inteira.
O dever de olhar, escutar e proteger: Rompendo o ciclo da violência
Se a violência floresce no silêncio, é na escuta e na ação que reside a cura e a proteção. O dever de cuidado, imposto à família pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, vai muito além do sustento material. Ele engloba o dever de vigilância, de atenção aos sinais, de criar um ambiente onde a criança se sinta segura para se expressar. Mudanças abruptas de comportamento, agressividade, isolamento, medo de ficar sozinho com determinada pessoa, dificuldades de aprendizagem ou queixas de dores físicas inexplicadas são, muitas vezes, o grito não verbal de uma criança que sofre. Ignorar esses sinais é uma forma de negligência.
No entanto, a responsabilidade transcende os pais. O art. 227 da Constituição e o art. 4º do ECA convocam a comunidade e a sociedade a participarem dessa proteção. Professores, médicos pediatras, psicólogos, vizinhos e outros familiares formam uma rede de segurança secundária que é absolutamente crucial. A estes profissionais e cidadãos recai não apenas uma responsabilidade moral, mas, em muitos casos, um dever legal de comunicação. A suspeita ou a certeza da ocorrência de maus-tratos, incluindo o abuso sexual, deve ser obrigatoriamente comunicada ao Conselho Tutelar. Omitir-se é ser cúmplice do crime e da dor.
A prevenção primária, por sua vez, passa por um tema que ainda é tabu para muitos: a educação corporal e sexual das crianças, adequada a cada faixa etária. Ensinar uma criança, desde cedo, que seu corpo é seu território particular, que existem "toques bons" e "toques ruins", e que ela tem o direito de dizer "não" a qualquer carinho ou contato que a deixe desconfortável, é fornecer-lhe a principal ferramenta de autoproteção. É dar-lhe voz e legitimidade para que possa identificar e revelar uma situação de abuso. Não se trata de sexualizar a infância, mas de empoderá-la contra a violação.
Considerações finais
O abuso sexual intrafamiliar é uma ferida aberta no tecido social, uma chaga que corrói a confiança e destrói futuros. Combatê-lo exige a coragem de nomear o problema, de olhar para dentro de nossas próprias estruturas familiares e sociais com um olhar crítico e vigilante. Exige que transformemos a suspeita em ação, o silêncio em denúncia e a desconfiança na voz da criança em acolhimento incondicional.
Que cada um de nós se torne um guardião atento da infância. Que possamos ensinar nossas crianças a se protegerem e, acima de tudo, que possamos garantir que, ao falarem, encontrarão adultos prontos para escutar, acreditar e agir. A tarefa de demolir os muros do silêncio é árdua, mas é o único caminho para que o lar volte a ser, para cada criança, sinônimo exclusivo de amor, respeito e segurança.
_______
Referências bibliográficas
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Publicação anual. Acessível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/.
MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA. Relatórios do Disque 100 (Disque Direitos Humanos). Acessíveis através do site oficial do governo.
Andréa Arruda Vaz
Advogada, pesquisadora e escritora, Doutora e Mestre em Direito Constitucional.


