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CNH sem autoescola

Proposta do governo enfrenta queda de braço no Congresso.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado às 12:17

O que parecia ser apenas mais uma consulta pública do governo Federal transformou-se rapidamente em uma disputa política que pode definir o futuro da formação de motoristas no Brasil. A proposta do Ministério dos Transportes de acabar com a obrigatoriedade das autoescolas para obtenção da CNH, que promete redução de até 80% nos custos, agora enfrenta um obstáculo inesperado: o Congresso Nacional quer barrar a medida antes mesmo que ela saia do papel.

A promessa que dividiu o país

Quando o Ministério dos Transportes abriu, em 2 de outubro, a consulta pública sobre a minuta de resolução do Contran que flexibiliza o processo de habilitação, a promessa era sedutora. Com a possibilidade de estudar a teoria por conta própria, fazer cursos online gratuitos oferecidos pelo governo e até mesmo dispensar as 20 horas obrigatórias de aulas práticas, o custo da CNH - que hoje pode chegar a R$ 4.200.

Os números apresentados pelo governo impressionam e justificam, ao menos em tese, a urgência da medida: 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação no país. Só em 2024, foram registradas mais de 900 mil infrações por dirigir sem CNH, e 2025 já acumula quase 800 mil casos até setembro. A lógica governamental é clara: se o problema é o custo elevado, a solução é baratear o processo e regularizar essa multidão de motoristas informais.

A consulta pública, disponível na plataforma Participa + Brasil (processo 50000.034372/2025-74), já recebeu mais de 18 mil contribuições em poucos dias, tornando-se uma das maiores da atual gestão. O prazo para opinar vai até 2 de novembro - ou pelo menos deveria ir.

O Congresso entra em cena

No dia 7 de outubro, cinco dias após a abertura da consulta pública, o deputado Federal Coronel Meira (PL/PE) apresentou o PDL - Projeto de Decreto Legislativo 800/25, que pretende sustar imediatamente os efeitos da consulta pública. O argumento do parlamentar é técnico, mas devastador: a Senatran - Secretaria Nacional de Trânsito teria cometido uma ilegalidade ao abrir a consulta sem realizar antes a AIR - Análise de Impacto Regulatório, exigida pelo decreto 10.411/20.

Na justificativa do PDL, o coronel Meira enfatiza que a AIR - Análise de Impacto Regulatório não deve ser tratada como uma mera formalidade burocrática, mas sim como requisito essencial para a validade de atos dessa natureza. Ele argumenta que, ao iniciar uma consulta pública sem o devido estudo de impacto, a Senatran age sem motivação adequada e submete à sociedade um debate cujas consequências para a segurança no trânsito, a economia do setor e a vida dos cidadãos permanecem desconhecidas.

O parlamentar cita precedentes do STF e do TRF-1o que reforçam a necessidade de fundamentação técnica para a validade de atos administrativos complexos. Segundo ele, a Senatran inverteu as etapas: deveria primeiro fazer os estudos, depois apresentar uma proposta fundamentada e só então abrir para consulta pública.

300 mil empregos em risco

O PDL 800/25 chega em um momento em que o setor de autoescolas já estava mobilizado contra a proposta. A Feneauto - Federação Nacional das Autoescolas estima que a medida pode resultar na demissão de cerca de 300 mil trabalhadores e no fechamento de aproximadamente 15 mil empresas espalhadas pelo Brasil.

Ygor Valença, presidente da Feneauto, criticou duramente a proposta, afirmando que o texto apresentado não representa modernização nem desburocratização. Segundo ele, trata-se de uma substituição do sistema atual, e não de um aprimoramento, uma vez que modernizar significaria revisar as exigências já existentes, e não eliminar o processo de formação profissional.

Para a entidade, a proposta tem caráter populista e tende a agravar o problema que pretende solucionar. Valença argumenta que, diante do cenário atual em que cerca de 20 milhões de pessoas dirigem sem habilitação, liberar o processo sem o devido preparo não resolveria a questão, mas a ampliaria. Segundo ele, o foco deveria estar na fiscalização, na educação e no treinamento, e não na flexibilização da formação.

A Feneauto já vinha articulando uma ofensiva política em Brasília, buscando apoio de deputados e senadores para barrar ou modificar substancialmente a proposta. O PDL 800/25 representa, portanto, uma vitória parcial do setor, que agora conta com um instrumento legislativo para tentar paralisar a iniciativa do governo.

Os cenários possíveis

A situação atual da nova proposta de CNH é de total indefinição, com dois cenários principais, ambos com riscos significativos:

Se o PDL - Projeto de Decreto Legislativo for aprovado: A consulta pública será suspensa, e o processo retornará à estaca zero. A Senatran será obrigada a realizar uma AIR - Análise de Impacto Regulatório, exigindo novos estudos técnicos para comprovar a viabilidade e segurança da proposta. Este caminho, embora atrase a implementação, é considerado juridicamente mais seguro, pois corrige a falha processual desde o início.

Se o PDL for rejeitado: A consulta pública terminará, o Contran aprovará a resolução e a nova CNH entrará em vigor. No entanto, essa aparente vitória do governo carrega um risco futuro: a ausência da AIR pode ser considerada uma ilegalidade de origem. Caso isso seja confirmado judicialmente mais tarde, a resolução poderá ser anulada, tornando irregulares todas as CNHs emitidas sob o novo modelo, pois atos nulos não se validam com o tempo.

Em resumo, a aprovação do PDL força uma correção imediata do processo, enquanto a rejeição adia o problema, criando uma insegurança jurídica que pode invalidar todo o projeto no futuro.

O que vem pela frente

Por enquanto, a consulta pública continua ativa e pode receber contribuições até 2 de novembro. Mas o clima é de incerteza. O PDL 800/25 seguirá para análise nas comissões temáticas da Câmara dos Deputados, e a celeridade de sua tramitação é incerta.

O setor de autoescolas comemora a iniciativa do deputado e promete intensificar a mobilização. O governo, por sua vez, defende que a proposta é legítima e necessária, e que os exames obrigatórios garantem a segurança.

Enquanto isso, 20 milhões de brasileiros continuam dirigindo sem habilitação, e o país segue sem uma solução consensual para um problema que afeta diretamente a vida, a economia e a segurança de milhões de pessoas.

Modernizar ou precarizar?

A questão que se impõe é: será que não existe um caminho de equilíbrio? É possível modernizar e tornar o processo de habilitação mais acessível sem comprometer a qualidade da formação dos condutores?

Se o governo tem razão, que apresente os estudos e dados que sustentem a proposta. Se o Congresso tem razão, que cobre a fundamentação técnica e o cumprimento das etapas legais.

No fim, o que está em discussão não é apenas o custo de uma carteira de motorista, mas o próprio modelo de formação e segurança nas vias brasileiras. E, até que a disputa entre Executivo e Legislativo se resolva, a decisão que definirá o futuro da CNH no país segue em aberto - e com ela, a direção de um debate que vai muito além do volante.

Para participar da consulta pública (enquanto estiver ativa):

Acesse: www.gov.br/participamaisbrasil/cnh-para-todos

Processo: 50000.034372/2025-74

Prazo: até 2 de novembro de 2025 (sujeito a alterações)

Para acompanhar o PDL 800/2025:

Câmara dos Deputados - Deputado Coronel Meira (PL/PE)

Objetivo: Sustar os efeitos da consulta pública da Senatran

Kênia Rodrigues Quintal

VIP Kênia Rodrigues Quintal

Advogada há mais de 20 anos, desde 2021 exerce o cargo de Procuradora-Geral do Município de Carapebus.

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