Plano Diretor e participação democrática: Do "parecer ser" ao "ser"
Decisões urbanísticas efetivas exigem envolvimento cidadão genuíno, transparência institucional e mecanismos que garantam impacto real nas escolhas municipais.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Atualizado em 16 de outubro de 2025 09:50
O Plano Diretor só realiza a função social com participação efetiva; apresenta justificativas, arcabouço teórico e medidas práticas, com função fiscalizatória do MP e amparo jurisprudencial do STF.
1. A expansão dos perímetros urbanos é consequência direta do crescimento das cidades. No Brasil, o processo de urbanização tem sido contínuo e policêntrico, alcançando praticamente todas as regiões e não se restringindo ao eixo Sudeste. Segundo o Censo Demográfico de 2022, do IBGE, 57% dos municípios brasileiros ampliaram sua população desde 2010, cenário que reforça a centralidade demográfica urbana e intensifica os desafios de planejamento e gestão territorial.
2. Esse crescimento, impulsionado por dinâmicas econômicas e sociais, impõe ao poder público municipal a conciliação de interesses frequentemente tensionados: de um lado, o dinamismo econômico e a expansão de infraestrutura; de outro, a preservação ambiental e a sustentabilidade de longo prazo. Soma-se a isso a necessidade de integrar áreas socialmente vulneráveis ao tecido urbano formal, sem interromper a trajetória de desenvolvimento.
3. Embora o acervo de pautas urbanísticas admita criatividade e discricionariedade administrativa, há matérias que não comportam opção política: são comandos constitucionais e legais vinculantes, sobretudo quanto à participação popular na formulação e revisão dos Planos Diretores. É justamente no "básico e essencial" - participação informada, dialogada e com devolutiva - que se evidenciam as maiores falhas, gerando ônus sociais difusos e questionando a legitimidade democrática das escolhas territoriais.
I - Marco Constitucional e Legal da gestão democrática
4. A Magna Carta do Estado Democrático de Direito - assegura, no art. 1º, parágrafo único, que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Tal dispositivo explicita a convivência entre a democracia representativa e os mecanismos de democracia direta/participativa (plebiscito, referendo e iniciativa popular: art. 14). No campo da política urbana, essa diretriz vincula procedimento e conteúdo do Plano Diretor, cujas regras de uso e ocupação do solo repercutem imediatamente na vida cotidiana dos cidadãos.
5. Nessa linha, o art. 182 da CF/88 determina que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Município segundo diretrizes gerais em lei, deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Concretizando esse comando constitucional, o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01) densifica o princípio da participação ao consagrar, no art. 2º, II, a gestão democrática da cidade e, no art. 40, §4º, exigir audiências públicas, debates com associações representativas e ampla publicidade em todas as fases de elaboração e revisão do Plano Diretor.
6. Para que tais diretrizes se traduzam em prática administrativa qualificada, a Administração Pública permanece vinculada aos princípios do art. 37, caput, da CF - legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência -, que impõem ao gestor conduta proba e orientada ao interesse coletivo. Esse dever é reforçado pela lei 8.429/1992 (lei de improbidade administrativa, com as alterações da lei 14.230/21), ao sancionar atos que atentem contra os princípios da Administração, especialmente a moralidade, a imparcialidade e a lealdade institucional. Desse modo, deve prevalecer a supremacia do interesse público sobre conveniências particulares, pressões políticas ou especulações imobiliárias, assegurando que as decisões urbanísticas efetivem o bem comum e a função social da cidade.
II - Democracia substantiva na consolidação do Plano Diretor como "pacto público"
7. Para Ronald Dworkin, a legitimidade democrática não se limita ao governo da maioria: uma decisão coletiva só é legítima quando trata cada pessoa com igual consideração e respeito, e quando os direitos fundamentais atuam como limites morais ao poder político1. Sob essa perspectiva, a qualidade da democracia não se mede pela simples aritmética dos votos, mas pela justiciabilidade pública das escolhas - isto é, pela capacidade de cada decisão ser racionalmente defendida perante todos os cidadãos, reconhecidos como iguais em dignidade e participação na comunidade política.
8. Esse horizonte dialoga com a filosofia clássica de Aristóteles de que o ser humano é um "animal político"2, que realiza a vida boa na pólis mediante deliberação e ação comuns. Se a cidade é a forma institucional dessa convivência, o planejamento urbano e territorial é o instrumento pelo qual a comunidade organiza, ao longo do tempo, usos, conflitos e cooperações no espaço compartilhado.
9. Assim, compreende-se que o Plano Diretor transcende a condição de mero compêndio técnico para assumir a natureza de um pacto público - um arranjo de diretrizes e prioridades que deve ser publicamente justificado e coproduzido pela coletividade. Exige procedimentos de participação substancial, critérios de equidade territorial e mecanismos permanentes de revisão e atualização, aptos a assegurar a legitimidade democrática de suas decisões.
10. Em última instância, a política urbana realiza sua verdadeira vocação quando estrutura escolhas territoriais reconhecidas como razoáveis e legítimas pelo exercício consciente da cidadania - e não quando se limita à aprovação formal de medidas desprovidas de efetiva deliberação social.
III. Instrumentalidade e risco de participação meramente formal: o paralelo processual
11. A doutrina processual civil brasileira - exemplificativamente representada por Daniel Amorim Assumpção Neves, Cássio Scarpinella Bueno e Fredie Didier Jr. - consagra a instrumentalidade das formas como princípio estruturante do processo: em linhas gerais, o rito não é fim em si, mas meio para tutela efetiva do direito material.
12. A metáfora é elucidativa para a política urbana: tal como no processo, em que a forma serve à substância, a participação popular não pode reduzir-se a rito de legitimação formal; ela precisa configurar instrumento real de influência sobre o conteúdo das decisões públicas, garantindo sentido democrático e efetividade às escolhas territoriais.
13. Observa-se, entretanto, que grande parte das municipalidades, ao elaborar ou revisar seus Planos Diretores, busca mais a aparência de participação do que sua efetividade. Multiplicam-se canais de consulta e mecanismos de publicidade, mas raramente se assegura deliberação real sobre o conteúdo das propostas. Essa prática reflete a lógica do "parecer ser" em detrimento do "ser" (Sêneca), sobrepondo a aparência ao conteúdo e resultando em gestão democrática meramente formal, carente de substância participativa.
14. Assim, o planejamento urbano converte-se em pseudodemocracia técnica, esvaziando o princípio da função social da cidade (CF, art. 182; Estatuto da Cidade, art. 2º, II) e afastando-se de sua finalidade maior: promover o bem comum por meio da deliberação cidadã genuína.
IV - Escada de participação cidadã e o controle jurisdicional
15. Sherry Arnstein, em A Ladder of Citizen Participation (1969), propôs a "Escada de Participação Cidadã", com oito degraus que representam níveis crescentes de poder político conferido à sociedade civil: manipulação e terapia (não participação); informação, consulta e pacificação (concessão mínima de poder); e, por fim, parceria, delegação de poder e controle cidadão (poder efetivo).
16. O estudo demonstra que apenas nos degraus superiores ocorre verdadeira redistribuição de poder, em que o cidadão deixa de ser ouvinte para se tornar coautor das decisões públicas. Nos níveis inferiores, prevalecem práticas simbólicas de escuta, que legitimam decisões já tomadas - fenômeno que a literatura recente denomina pseudoparticipação3. Compreender em que patamar se situa um processo participativo é relevante para aferir se o Plano Diretor cumpre, de fato, o mandamento constitucional da gestão democrática da cidade (CF, art. 182; Estatuto da Cidade, art. 2º, II).
17. Nesse mesmo horizonte - em que a forma deve corresponder à substância participativa na aferição do cumprimento do mandamento constitucional da gestão democrática (CF, art. 182; Estatuto da Cidade, art. 2º, II) -, destaca-se o papel do Ministério Público. No plano jurídico, sua atuação como fiscal da efetividade dos procedimentos participativos decorre, entre outros comandos, do art. 129, III, da Constituição Federal, que lhe confere a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para tutela de interesses difusos e coletivos - instrumentos idôneos para coibir vícios formais e materiais que comprometam a constitucionalidade do processo legislativo urbanístico.
18. Em reforço a esse horizonte normativo, a jurisprudência desempenha papel igualmente relevante. Precedentes do STF têm consolidado esse entendimento, ainda que reconheçam a autonomia municipal quanto à forma de condução das audiências. No ARE 1.519.278/RS (rel. min. Cármen Lúcia), assentou-se que, inexistindo norma constitucional que detalhe o modo de participação, deve prevalecer a autonomia do ente local; contudo, a regularidade do processo legislativo depende de prova documental da efetiva realização de audiências públicas e da abertura de espaço para o debate democrático.
19. Na mesma linha - e aprofundando o parâmetro de controle, em precedente paradigmático (RE 1.514.621/SP, rel. min. Alexandre de Moraes), o Supremo reconheceu a inconstitucionalidade parcial de lei municipal que alterou o Plano Diretor sem qualquer instrumento de participação popular ou estudo técnico prévio, enfatizando que "a validade e legitimidade de norma urbanística pressupõem participação comunitária em todas as fases de sua produção, além do planejamento técnico adequado".
20. Tais julgados demonstram a passagem de uma verificação meramente formal da participação - limitada à checagem de publicações ou convites - para uma abordagem substancial, voltada a aferir o conteúdo deliberativo e o alcance social do processo participativo. Nessa perspectiva, a atuação do Ministério Público busca impedir que audiências e consultas se reduzam a atos burocráticos, promovendo sua conversão em instâncias legítimas de coprodução das decisões urbanísticas, em sintonia com os degraus superiores da Escada de Arnstein (parceria, delegação de poder e controle cidadão).
21. Impende, portanto, à luz desses parâmetros jurisprudenciais e institucionais, apresentar rol inicial, não exaustivo, de meios práticos juridicamente amparados para assegurar a efetividade da participação no Plano Diretor:
(i) calendário público das etapas divulgado com antecedência mínima razoáve - recomendável não inferior a 15 dias -, à luz do direito de acesso à informação (CF, art. 5º, XXXIII e LAI - lei 12.527/11);
(ii) audiências públicas em cada etapa, com registro audiovisual, lista de presença e relatório de participação consolidando contribuições e encaminhamentos (Estatuto da Cidade, art. 40, §4º);
(iii) caderno de respostas, indicando acolhimentos/rejeições com motivação técnico-jurídica, publicizadas em meio oficial, utilizando os instrumentos de gestão democrática (debates, audiências, conferências e órgãos colegiados: arts. 43 a 45 do Estatuto da Cidade);
(iv) Núcleo Gestor paritário e atuação contínua dos Conselhos da Cidade, com atas e deliberações publicadas (Estatuto da Cidade, arts. 43-45);
(v) dados, documentos e bases geoespaciais abertos para permitir controle social e reprodutibilidade (LAI, arts. 3º e 8º; CF, art. 5º, XXXIII); e
(vi) estudos técnicos prévios, elaborados por equipe técnica independente contratada por procedimento isonômico, garantindo impessoalidade e tecnicidade (CF, art. 37, caput).
22. Tais mecanismos deslocam o processo dos degraus simbólicos e o aproximam dos patamares superiores da Escada de Arnstein (parceria, delegação de poder e controle cidadão), com influência efetiva das contribuições sociais. O caminho aqui descrito compila mecanismos já existentes, oferecendo panorama inicial para a efetividade da participação no planejamento urbano.
23. Entretanto, é a condução desses mecanismos que define o resultado. Quando o poder público se limita ao "parecer ser", instaura-se a pseudoparticipação, que apenas simula legitimidade democrática. A gestão verdadeiramente democrática pressupõe redistribuição de poder e se concretiza quando o Plano Diretor e demais normas urbanísticas espelham a vontade deliberada da coletividade, realizando, de fato, a função social da cidade e da propriedade. Exige-se que o cidadão deixe de ser mero espectador para tornar-se coprodutor das decisões que moldam o espaço coletivo. Participar não é apenas ser informado ou consultado, mas influenciar concretamente as escolhas públicas, em condições institucionais que garantam essa influência.
_______
1 VERBICARO, Loiane. O Modelo de Democrácia à Luz da Teoria de Ronald Dworkin. In: Revista Jurídica. Vol. 03, nº 52, 2018, pp. 248-274
2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco / Obra Completa. Edição 4ª. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2018.
3 CORTEZ, Shirlei Debastiani; LUCIANO, Edimara Mezzomo. Em busca da participação nas cidades inteligentes: participação cidadã, pseudoparticipação ou apenas retórica? In: XLVI Encontro da ANPAD - EnANPAD 2022, 21-23 de setembro de 2022, on-line. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2022.
Stefanie Rodrigues Lind
Advogada no escritório Gouvêa Franco Advogados.


