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Estudo psicossocial deve ser reconhecido como prova pericial

Tanto a perícia psicológica quanto o estudo psicológico devem ser entendidos e aplicados como modalidades de perícia.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Atualizado às 15:00

A compreensão do papel e da natureza das avaliações psicológicas em contextos judiciais tem sido objeto de debates e interpretações diversas, especialmente no que tange à sua classificação como perícia psicológica ou estudo psicológico. A diferenciação entre esses dois termos, frequentemente tratada de maneira ambígua na prática jurídica, suscita importantes questões relativas aos princípios fundamentais do direito à ampla defesa e ao contraditório.

Tanto a perícia psicológica quanto o estudo psicológico devem ser entendidos e aplicados como modalidades de perícia, não havendo, portanto, distinção substantiva que justifique tratamentos distintos no âmbito processual. A análise centra-se na premissa de que qualquer avaliação técnica especializada, destinada a avaliar pessoas - como ocorre nas varas de família por meio da aplicação de conhecimentos científicos - enquadra-se na categoria de perícia, conforme delineado pelo CPC.

Sob essa ótica, argumenta-se que cercear a defesa ou a acusação da utilização plena dessa modalidade de prova, ou questionar sua integralidade com base em uma distinção terminológica, configura uma violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, pilares essenciais do sistema jurídico brasileiro. A importância de tal discussão reside não apenas na necessidade de assegurar a correta aplicação das normas processuais, mas também na garantia de que as decisões judiciais sejam fundamentadas em avaliações técnicas robustas e abrangentes. Afinal, as avaliações psicológicas em contextos de litígio frequentemente abordam questões de extrema delicadeza, cujos desdobramentos afetam profundamente a vida dos envolvidos. Assim, assegurar que tais avaliações sejam conduzidas com a máxima seriedade e consideradas integralmente no processo decisório é fundamental para a realização da justiça.

Não há distinção jurídica entre perícia psicológica e estudo psicológico, mas é importante reafirmar a necessidade de se reconhecer sua natureza pericial para garantir o pleno exercício dos direitos constitucionais ao contraditório e à ampla defesa. Ao fazê-lo, busca-se contribuir para uma prática jurídica mais justa, coerente e eficaz, na qual as decisões judiciais sejam fundamentadas em avaliações técnicas qualificadas e submetidas ao devido processo legal.

Tal abordagem é essencial para evitar a revitimização de crianças e adolescentes em litígio, assegurando que suas vozes sejam ouvidas de forma adequada, sem exposição indevida ou repetitiva a procedimentos que possam agravar seu sofrimento. O papel da perícia psicológica em varas de família transcende a mera formalidade processual; ela se torna um elemento vital para a avaliação da dinâmica familiar e a promoção do melhor interesse dos vulneráveis. Questões como guarda de filhos, regulamentação de convivência, adoção e tutela são intrinsecamente ligadas ao bem-estar emocional e psicológico das partes envolvidas, exigindo uma análise profunda e especializada que apenas a perícia psicológica pode oferecer. Tal reconhecimento não apenas assegura a adequada proteção dos direitos dos envolvidos, mas também fortalece o sistema de justiça como um todo, promovendo decisões mais informadas, justas e humanizadas, que verdadeiramente refletem o princípio do melhor interesse do vulnerável.

Uma entrevista pontual não é avaliação psicológica; um relatório superficial não é laudo pericial; um procedimento sem rigor metodológico não é prova técnica. A psicologia forense, como ciência, exige processo estruturado de investigação, métodos validados e análise crítica de resultados - elementos ausentes nos chamados "estudos" que proliferam nas varas de família. Da experiência prática, confirmou-se que a prova pericial é indispensável para a adequada solução de conflitos familiares complexos, sendo sua ausência ou descaracterização fonte de insegurança jurídica e de decisões equivocadas. O juiz que prescinde da perícia formal está, em verdade, decidindo às cegas, baseando-se em impressões superficiais em vez de conhecimento técnico especializado.

A resistência institucional em reconhecer a natureza pericial do estudo psicossocial revela anacronismo jurídico incompatível com os avanços do Direito Processual contemporâneo. O CPC/15, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a legislação de proteção familiar formam um arcabouço normativo que não deixa margem para dúvidas: qualquer avaliação técnica especializada de pessoas é perícia, com todas as garantias processuais decorrentes.

A superficialidade dos procedimentos adotados nos "estudos" contrasta drasticamente com os padrões científicos da psicologia forense. Não é possível avaliar dinâmicas familiares complexas, identificar violência psicológica ou física, diagnosticar negligência ou compreender adequadamente as necessidades das crianças por meio de entrevistas pontuais e descontextualizadas. Crianças e adolescentes são expostos repetidamente a procedimentos inadequados, suas vozes são distorcidas por avaliações superficiais e seus direitos fundamentais são violados pela ausência de contraditório técnico. O sistema que deveria protegê-los torna-se fonte adicional de trauma.

Não precisamos de novas leis, precisamos aplicar corretamente as existentes. O art. 464 do CPC, o art. 151 do ECA e a jurisprudência consolidada do STJ formam base normativa sólida para o reconhecimento imediato da natureza pericial do estudo psicossocial. Não precisamos inventar novos métodos, precisamos aplicar rigorosamente os existentes. As resoluções CFP 06/19, 08/10 e as referências técnicas para atuação do psicólogo em varas de família e a literatura científica especializada oferecem diretrizes precisas para perícias psicossociais de qualidade.

Vivemos um momento histórico único para essa transformação. A recomendação 157/24 do CNJ, a crescente consciência sobre violência institucional e o amadurecimento do debate sobre proteção integral criam uma janela de oportunidade que não pode ser desperdiçada. A sociedade brasileira não pode mais aceitar que crianças e adolescentes sejam submetidos a procedimentos atécnicos sob o pretexto de celeridade processual. Rapidez sem qualidade não é eficiência; é negligência institucional.

A transformação desse cenário é responsabilidade de todos os operadores do Direito. Aos magistrados, cabe reconhecer que determinar perícia em vez de "estudo" não é formalismo excessivo, mas garantia de qualidade técnica e proteção aos vulneráveis. Aos promotores de justiça, cabe fiscalizar o cumprimento das garantias processuais e requerer a nulidade de procedimentos atécnicos. Aos defensores públicos e advogados, cabe exercer vigilância permanente sobre a qualidade da prova técnica e impugnar sistematicamente avaliações superficiais. Aos psicólogos e assistentes sociais, cabe elevar continuamente os padrões técnicos de sua atuação e recusar-se a realizar procedimentos incompatíveis com sua formação científica. Aos administradores judiciários, cabe criar condições estruturais para que as perícias sejam realizadas com a qualidade técnica necessária.

A implementação plena dessas mudanças promete revolucionar a justiça familiar brasileira. Imagine um sistema em que cada avaliação psicossocial seja conduzida com rigor científico, em que cada criança tenha sua voz ouvida adequadamente, em que cada decisão judicial seja fundamentada em prova técnica robusta. Esse não é um sonho utópico: é uma meta alcançável por meio da aplicação correta do ordenamento jurídico existente e da valorização da ciência psicológica.

Países desenvolvidos já demonstraram que é possível conciliar celeridade processual com qualidade técnica, eficiência administrativa com proteção aos vulneráveis. O futuro da justiça familiar brasileira será construído hoje, através das decisões que tomamos, das práticas que adotamos e dos padrões que exigimos. Que seja um futuro em que a ciência prevaleça sobre o improviso, em que o rigor técnico substitua a superficialidade, em que a proteção integral da criança e do adolescente seja mais que promessa constitucional - seja realidade cotidiana em cada vara de família do país.

Em cada processo de guarda litigiosa, em cada disputa familiar, em cada momento em que uma criança precisa ter sua voz ouvida e seus direitos protegidos, que prevaleça a perícia técnica sobre o improviso, a ciência sobre a superficialidade, a proteção integral sobre a conveniência processual. Esta é nossa responsabilidade. Este é nosso compromisso. Este é nosso legado.

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(artigo baseado em publicação do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM)

Barbara Heliodora de Avellar Peralta

Barbara Heliodora de Avellar Peralta

Advogada Especializada em Direito das Famílias e Violência Infantil, Vice Presidente da Comissão de Relações Familiares do IBDFAM/RJ, Membro associado do IBDFAM, Diretora do IBDFAM Niterói, Delegada da Comissão da Criança e adolescente da OAB/RJ. Doutoranda e capacitada em Perícias psicológicas e Alienação Parental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Diretora da Associação Henry Borel (fundação até 2025) , professora da Acadepol (academia de polícia do Estado do RJ) e da ESA (escola superior de advocacia).

Andreia Soares Calçada

VIP Andreia Soares Calçada

Psicóloga clínica e jurídica. Perita do TJ/RJ em varas de família e assistente técnica judicial em varas de família e criminais em todo o Brasil. Membro do IBDFAM e autora de livros e artigos na área.

Gerardo Carnevale Ney da Silva

Gerardo Carnevale Ney da Silva

Formado na UERJ em 1979. Defensor Público concursado em 1980. Titular da 2a. Vara de Família de 2001 até junho de 2024. Desembargador Eleitoral substituto no TRE/RJ no biênio 2021 a 2023 e Desembargador Eleitoral Titular de 2023 a 2024, na classe de Juiz de Direito. Vice-Presidente do IBDFAM/Rj.

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