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Selos fiscais de bebidas vão muito além de controle tributário, são política sanitária

O controle das bebidas destiladas protege consumidores, permite rastreabilidade e combate produtos clandestinos e adulterados.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Atualizado às 10:31

Introdução

O selo fiscal que lacra garrafas de bebidas destiladas no Brasil carrega uma função que vai muito além da tributação. Produzidos pela Casa da Moeda do Brasil e controlado pela Receita Federal, o denominado "selo de IPI" é um dos poucos instrumentos estatais capazes de unir, num mesmo ato, fiscalização tributária, rastreabilidade industrial e proteção da saúde pública.

Não se trata, portanto, de uma simples "etiqueta de imposto", mas sim de uma barreira de segurança contra a circulação de destilados clandestinos e adulterados - justamente aqueles que estão associados a intoxicações por metanol, que têm causado cegueira e mortes. Em tempos de incremento de casos suspeitos no país, vale reconhecer o selo fiscal como mecanismo regulatório com impactos tributários e, principalmente, sanitários.

Reconhecer o selo fiscal como política sanitária é compreender que, em um país de dimensões continentais e mercado informal ativo, o combate ativo à produção ilegal de bebidas adulteradas depende também - senão prioritariamente - da eficiência dos instrumentos de controle.

O selo fiscal de bebidas e como ele funciona

Determinadas bebidas comercializadas no Brasil, especialmente as destiladas, são obrigadas a portar o selo de IPI previsto na lei 4.502/1964 e regulamentado pela Receita Federal. A produção e o fornecimento desses selos são de competência da CMB - Casa da Moeda do Brasil, que incorpora elementos gráficos e tecnológicos destinados a dificultar ou impedir falsificações e reutilizações.

Cada selo corresponde a uma unidade de produto legalmente produzida, com origem e destino identificáveis. O que parece um detalhe técnico, na prática, representa um elo de rastreabilidade que permite saber onde, quando e por quem determinada garrafa foi fabricada e selada.

Em mercados onde o consumo de bebidas adulteradas ainda é expressivo, esse tipo de marcação dificulta a atuação de produtores informais, reduz o incentivo à sonegação e fortalece a capacidade de resposta do Estado diante de riscos sanitários.

Direito do consumidor e regulação sanitária

O CDC (art. 6º, I) garante o direito à segurança e à informação sobre produtos potencialmente nocivos. Já a lei 9.782/1999 institui a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária e atribui à autarquia a função de controlar bens que possam comprometer a saúde pública. Por sua vez, o dever de afixar selos confeccionados para facilitar a fiscalização sobre determinados produtos encontra fundamento legal na lei 4.502/1964 (art. 46).

Essas normas, quando lidas em conjunto, mostram que a fronteira entre o fiscal e o sanitário é porosa. A existência de um selo, que autentica a origem da bebida e permite sua rastreabilidade, é uma forma indireta de proteção à saúde. Obviamente, o selo não detecta substâncias tóxicas, mas dificulta que o produto adulterado alcance o consumidor, justamente ao inviabilizar a circulação de garrafas não registradas.

Do ponto de vista regulatório, o selo cumpre papel semelhante ao de uma etiqueta de rastreio em medicamentos: é um sinal físico de que aquela unidade passou pelo controle oficial, traduzindo em linguagem visual a política pública de prevenção de danos.

O alerta do metanol e o papel do selo

As recentes notícias de intoxicações por metanol acenderam um alerta nacional. O Ministério da Saúde confirmou inúmeros casos e quase uma dezena de óbitos - até a data da elaboração deste artigo - em decorrência do consumo de destilados adulterados.

Nessas circunstâncias, o selo de IPI da Casa da Moeda torna-se mais uma linha de defesa visível. Como já mencionado anteriormente, por si só, a marcação não elimina o risco, mas delimita a diferença entre o produto sob controle estatal e aquele à margem da lei. O selo, portanto, não é apenas um resquício de burocracia, mas sim uma forma eficaz de garantir rastreabilidade em um setor sensível a fraudes.

Além disso, a marcação oficial deve ser vista sob a ótica da gestão de riscos públicos. O selo cria mais um obstáculo para o ingresso de produtos ilegais no mercado, reduzindo o espaço de operação das fábricas clandestinas. Mais que isso, oferece trilhas de auditoria e verificação: cada selo possui número, cor e holografia próprios, que podem ser conferidos por fiscais e comerciantes.

Em suma, quando há suspeita de contaminação, o selo permite rastrear lotes, recolher produtos e identificar responsabilidades. Em termos de saúde pública, isso significa tempo, e tempo, nesses casos de intoxicação em massa, como o cenário atual, costuma ser a diferença entre o número de vidas preservadas ou não.

Portanto, ao contribuir para reduzir a exposição da população a produtos de risco elevado, pode-se afirmar que o selo de controle materializa o dever de proteção estatal previsto no art. 196 da Constituição Federal.

Fragilidades e desafios

Todavia, nem tudo são flores. Nenhum instrumento de controle é imune a fraudes. O mercado informal evolui rápido e há diversos casos de selos falsificados, o que fragiliza a credibilidade do sistema. O art. 296, §1º, do CP criminaliza a falsificação de selo ou sinal público, reconhecendo o dano institucional que tal conduta provoca. Ademais, trata-se de crime de mera conduta, porque o simples ato de falsificar já compromete a confiança social no sistema.

Ainda assim, a resposta não pode ser apenas penal. É preciso investir em modernização e integração de dados para que o os selos continuem exercendo sua função de barreira de entrada. A prevenção da falsificação deve caminhar junto com a facilidade de verificação, e isso requer inovação.

É inegável que o sistema de controle de bebidas no Brasil possui espaço para aprimoramento. Alguns caminhos a seguir são exemplos de como essa evolução pode acontecer na prática:

  1. Verificação digital - incluir QR Codes e números seriais únicos nos selos checáveis, conectados a bases públicas da Receita Federal, permitindo que qualquer cidadão, em especial o consumidor final, verifique a autenticidade pelo celular e reporte irregularidades, a exemplo do recente e salutar programa "Na Palma da Mão" implementado pelo Inmetro.

Assim, qualquer pessoa poderá verificar a procedência do produto, comunicando as autoridades em caso de irregularidade, de modo que consumidores e estabelecimentos estejam no mesmo lado da fiscalização, aproximando a política de controle da vida cotidiana.

  1. Revisão tecnológica do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) - restabelecimento do sistema, que foi descontinuado pela Receita Federal em 2016, tendo o TCU determinado recentemente seu retorno às operações em 2025, mas agora sob novas bases digitais e interoperáveis, garantindo transparência sem onerar o setor produtivo.

Atualmente, diante dos avanços tecnológicos verificados em outros mercados regulados e rastreados, como o setor de cigarros, por exemplo, é possível, sem grandes custos, aperfeiçoar o Sicobe, de forma que as informações de rastreabilidade sejam compartilhadas em tempo real com outros órgãos de controle sanitário e de defesa do consumidor (Anvisa, Procons etc.).

Considerações finais

Nas últimas décadas, a expertise da Casa da Moeda aperfeiçoou a tecnologia gráfica dos selos, a Receita Federal aprimorou seus sistemas de controle, e, ainda assim, a sociedade ainda vê o alto custo humano das bebidas adulteradas. O desafio que se impõe agora é transformar o selo em instrumento de verificação acessível, que permita, além das autoridades competentes, ao consumidor confirmar a procedência e denunciar suspeitas.

O combate a episódios de intoxicação por metanol não se faz apenas com apreensões, mas com organização da confiança. E é justamente isso que o selo da Casa da Moeda simboliza: uma camada de proteção entre o lícito e o ilícito, entre o produto legal e o letal. Em tempos de crises sanitárias, selar é também - e principalmente - cuidar.

Marcelo Ludolf

Marcelo Ludolf

Advogado, sócio do escritório Basilio Advogados. Mestre em Direito pela Fundação Getúlio Vargas, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, graduado em Direito pela PUC-Rio.

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