O perigo do cadastro público de condenados por violência doméstica
O PL 1.099/24 promete proteger mulheres, mas pode transformar a pena em infâmia eterna. Entenda por que o projeto é inconstitucional e ameaça o Estado de Direito.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Atualizado às 12:23
Introdução
O PL 1.099/24, de autoria da deputada Silvye Alves, cria o CNVM - Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Violência contra a Mulher, determinando a divulgação pública de nomes e fotos de pessoas condenadas com trânsito em julgado. O texto já foi aprovado na Câmara e no Senado e aguarda sanção presidencial.
Embora a proposta aparente reforçar a proteção das mulheres, sua lógica de exposição perpétua é frontalmente incompatível com a CF, a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados e a própria teleologia da execução penal, além de repetir modelos internacionais já criticados.
Desenvolvimento
1) Violação de princípios constitucionais e da finalidade da pena
O art. 1º da LEP dispõe que a execução da pena deve buscar a reintegração social, e por isso, como ensina Nucci, a pena possui função reeducativa/ressocializadora, o que significa oportunizar ao sentenciado "uma revisão de seus conceitos e valores de vida para, querendo, alterar seu comportamento futuro e não mais delinquir"1, permitindo-o "retomar sua vida em sociedade (art. 10, parágrafo único, LEP)2.
Tornar públicas, sine die, informações sensíveis equivale a institucionalizar a infâmia, transformando a pena em marca social perpétua, o que viola a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), pois trata a culpa penal para além do tempo respectivo ao que o próprio fato penal o limita, já que, na lição de Faria Costa, por existirmos na nossa própria e específica temporalidade, somos ser para culpa - por estamos no tempo histórico - mas culpa penalmente relevante, que se perfaz apenas na coincidência entre o momento da prática do fato com aquele em que atuamos; somente assim nos tornamos humana e penalmente responsáveis3. O que passa disso é estridência social que escapa aos limites da racionalidade ética da legislação penal4.
Do ponto de vista da necessidade, Luigi Ferrajoli recorda, citando Hobbes, que "o uso das leis (...) não tem por finalidade impedir o povo de realizar ações voluntárias, senão dirigir e controlar estas de tal forma que os súditos não se lesionem mutuamente"5. Assim, ao obrigar o Estado a divulgar o nome e foto de pessoas condenadas com trânsito em julgado, aumenta-se a possibilidade dos cidadãos se insuflarem contra outros, impedindo a convivência pacífica, a ressocialização e o mútuo respeito, além de não proteger novos bens jurídicos, mas apenas reiterando o estigma.
O projeto ainda viola a proteção de dados pessoais, erigida a direito fundamental (CF, art. 5º, LXXIX), e que conta agora com a incidência da lei 13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados, que qualifica essa publicidade como desproporcional e incompatível com a autodeterminação informativa6.
2) Estigmatização e preconceito
A medida cria um mural da vergonha estatal, aplicável apenas a crimes em contexto de violência contra a mulher. Pergunta-se: por que outros agentes criminosos não têm os mesmos dados publicizados? Há aqui clara quebra do princípio da isonomia, gerando preconceito institucionalizado.
Cria-se uma conjuntura em que tais medidas tendem a aplicar a lógica de controle social seletivo, ampliando a "morte civil" do apenado e produzindo efeitos colaterais pouco vinculados à redução efetiva da violência, ao passo que deslocam o foco de políticas estruturantes (prevenção, proteção e rede de atendimento) para respostas de exposição e vergonha pública; em termos de política criminal, a publicidade compulsória opera como extensão do punitivismo de exceção criticado nas "hediondizações", agravando a desproporcionalidade e a marginalização sem resolver as causas do fenômeno - e, por isso, deve ser confrontada com critérios de proporcionalidade, finalidades legítimas e evidências de eficácia7.
Nessa sequência, também se assemelha à pena infamante, pois tornará infame o delinquente, que perderá a estima de si próprio ou, ao menos, a estimação dos outros8.
3) Direito ao esquecimento, reinserção social e experiência internacional
A própria existência da prescrição penal demonstra que o ordenamento reconhece o direito ao esquecimento. Sobre isso, Silvia Alves afirma que o primeiro argumento que sustenta a prescrição é que o sofrimento a que se submete o deliquente é preciso ter um fim, seja pelos eventuais remorsos, seja pela incerteza em que o réu vive durante o curso do processo; o segundo, é que a sociedade acaba por perder o interesse na condenação; e o terceiro, porque com o transcorrer dos anos, a prova fragiliza-se9. Logo, se até a punibilidade se extingue pela passagem do tempo, com maior razão deve-se vedar a publicidade eterna de dados pessoais.
A jurisprudência europeia também caminha nesse sentido. O caso S. and Marper v. UK (CEDH, 2008) declarou inconvencional a manutenção indefinida de dados biométricos de condenados, entendendo que isso viola o direito à vida privada (art. 8º da CEDH), exatamente por impedir qualquer possibilidade de reinserção10.
Estudos empíricos mostram que a notificação pública aumenta a reincidência, enquanto cadastros restritos a autoridades podem ser mais eficazes. Ou seja, a publicidade generalizada é criminologicamente contraproducente11.
Conclusão
O PL 1.099/24 afronta a Constituição e os direitos fundamentais, ao converter a pena em marca social permanente. Viola a dignidade, a isonomia, a proteção de dados e a finalidade ressocializadora da execução penal. A experiência internacional demonstra que cadastros públicos não previnem delitos, mas alimentam preconceito e reincidência.
Tal como concebido, não protege mulheres, mas apenas cria um mecanismo de estigmatização perpétua.
A alternativa constitucionalmente adequada é a criação de cadastros restritos às autoridades competentes, com limites temporais, revisões periódicas e finalidade clara, além do fortalecimento das redes de proteção à mulher. Caso contrário, o Estado brasileiro deixará de ser guardião das garantias para se tornar administrador de um mural de infâmias, incompatível com o Estado Democrático de Direito.
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1 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Execução Penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022, p. 08.
2 Idem, p. 39.
3 COSTA, Jose de Faria. O tempo e a culpa em direito penal. In: COSTA, José de Faria; LINHARES, J. M. Aroso; ANTUNES, Maria João; GODINHO, Inês Fernandes (coord.). A culpa e o tempo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022, p. 44.
4 RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das leis penais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025, p. 131 e ss.
5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 427.
6 Ver Dados de criminosos também estão sob a proteção da LGPD. Acesso em 09 out 2025.
7 Ver tI52cINZu16CwtuB.pdf. Acesso em 09 out 2025. Aqui, Daniel Costa Lima, p. 44, estuda a seletividade penal quanto aos crimes hediondos. Tais críticas podem e devem ser aplicadas quanta à seletividade no tratamento dos crimes de violência contra mulher.
8 ALVES, Silvia. Punir e humanizar - o direito penal setecentista. 1 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019, p. 560-561.
9 ALVES, Silva. Fundamentos da extinção da punibilidade. 1 ed. Belo Horizonte: D'Plácido, 2016, p. 18-19.
10 Ver https://hudoc.echr.coe.int/?i=001-90051. Acesso em 09 out 2025.
11 Ver Do Sex Offender Registration and Notification Laws Affect Criminal Behavior?. Acesso em 09 out 2025.


