IRDR 54 do TJ/SP: Como fica a pensão da lei 4.819/58 após a EC 103/19
Decisão do TJ/SP sobre o IRDR 54 reacende o debate entre direito adquirido e vedação constitucional trazida pela reforma da previdência, definindo novos rumos para as complementações de pensão da lei 4.819/58 no Estado de São Paulo.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Atualizado em 21 de outubro de 2025 11:37
A reforma da previdência de 2019 (EC 103/19) incluiu na Constituição a proibição de criar ou manter complementações de aposentadoria e de pensão por morte fora das hipóteses ligadas ao regime próprio dos servidores ou à lei que extinga esse regime (Art. 37, §15º, CF). As complementações já concedidas na data da sua entrada em vigor foram mantidas pela regra de transição (Art. 7º, EC 103/19). A mensagem do legislador constituinte foi conter novas diferenças e proteger o que já estava sendo pago, visando a aliviar o tão deficitário sistema previdenciário1.
Para entender a controvérsia instaurada no Estado de São Paulo desde então, vale um apanhado histórico. A lei estadual 4.819/58 assegurou a complementação das aposentadorias aos empregados celetistas de empresas cujo Estado de São Paulo era o maior acionista. Isto é, garantiu a este grupo o recebimento da diferença entre o benefício do INSS e um parâmetro atrelado à remuneração da ativa. Em 1974, houve a revogação do benefício, mas com preservação dos direitos dos empregados admitidos até a sua vigência e dos então beneficiários (art. 1º, parágrafo único, lei estadual 200/74).
Sendo assim, desde então vinham sendo concedidos pelo Estado os benefícios de complementação de aposentadoria e de pensão para este grupo específico.
Ocorre que, após a reforma da previdência, a Secretaria da Fazenda de São Paulo, passou a negar novos pedidos de complementação da pensão por morte às viúvas e dependentes de ex-empregados admitidos até 1974, mesmo quando o instituidor recebia complementação instituída pela lei 4.819/58 em vida2. A pensão do INSS continuou sendo paga. O indeferimento recaiu apenas sobre a parcela complementar.
Este cenário gerou uma onda de ações a partir de 2019.
O acúmulo de processos revelou decisões divergentes nas Câmaras de Direito Público do TJ/SP, sendo que praticamente metade do Tribunal adotava a corrente contra a concessão da complementação da pensão por morte, alinhada à nova norma constitucional e ao entendimento do Estado de São Paulo, enquanto a outra metade possuía o entendimento de que as complementações de pensão por morte eram devidas.
Diante da divergência instaurada no âmbito do Tribunal e da multiplicidade de ações sobre o mesmo tema, com o objetivo de trazer previsibilidade, segurança jurídica e fortalecer a teoria dos precedentes, o Tribunal instaurou o IRDR 0022476-95.2024.8.26.0000, Tema 54, na turma especial de Direito Público.
O impasse jurídico é objetivo: de um lado, o art. 37, § 15, CF, incluído pela reforma, veda novas complementações fora das hipóteses constitucionais e a regra de transição do art. 7º preserva apenas as já concedidas na data de vigência; de outro, as leis paulistas foram extintas em 1974 com ressalva de direitos para quem já estava no sistema, abrindo espaço para duas leituras.
A leitura restritiva e positivista, em síntese, afirma que a pensão por morte é benefício novo regido pela lei do óbito. Se a morte ocorrer após 2019, aplica-se a proibição constitucional a novas complementações e a transição protege apenas o que já era pago na data da reforma. Esse entendimento combina o novo texto constitucional com a súmula 340 do STJ, segundo a qual a lei aplicável à pensão é a vigente na data do óbito do segurado, prestigiando o princípio tempus regit actum e o brocardo jurídico dura lex sed lex.
Por sua vez, a leitura garantista sustenta que, como a lei 200/74 resguardou direitos dos admitidos até sua vigência, a morte do instituidor apenas aciona uma consequência prevista muito antes da reforma. Não se criaria benefício novo. Haveria continuidade de um direito assegurado em 1974, que se projeta aos dependentes. Nessa lógica, a vedação do art. 37, § 15, não alcança esse arranjo paulista pretérito e a súmula 340 não resolve por si o caso.
No julgamento do IRDR 54 do TJ/SP, por maioria de votos, restou vencedora a segunda corrente, fixando a seguinte tese: "o pensionista de ex-empregado de sociedade de economia mista submetido a regime celetista, admitido antes da vigência da lei estadual 200/74 e falecido após o advento da EC 103/19, tem direito à complementação de pensão adimplida pelo Estado de São Paulo, prevista nas leis estaduais 1.386/51, 4.819/58 e 200/74".
A súmula 340 do STJ foi afastada, porque o colegiado entendeu não haver "nova concessão" regida pela lei do óbito: tratar-se-ia de continuidade de direito resguardado desde 1974, "pendente de gozo". Por essa lógica, não incidiria a lei vigente na data do óbito e, portanto, o verbete não resolveria o caso.
Os votos convergentes destacam pontos sensíveis: (i) a pensão estaria amparada por direito adquirido desde a qualificação como dependente; (ii) a morte seria "termo" (evento futuro e certo) que apenas aciona o gozo, não "ato", de modo que a Reforma não poderia retroagir para suprimir uma situação "já adquirida".
Também merece registro a justificativa de que a vedação do art. 37, § 15, CF, incide sobre o regime próprio dos servidores e sobre novos regimes complementares a instituir, não alcançando o arranjo paulista pretérito regulado pela lei 4.819/58.
Por outro lado, o voto divergente sustenta que a lei 200/74 teve caráter de transição, resguardando apenas direitos já consolidados dos empregados admitidos até 13/5/1974, sem criar novos direitos para situações futuras. Assim, tal norma não pode ser invocada por beneficiários que não detinham direito adquirido na data de sua edição.
Desta forma, nos casos em que o instituidor da pensão faleceu após a vigência da EC 103/19, o entendimento foi pela aplicação da vedação constitucional trazida na reforma da previdência, a qual passou a não permitir a concessão de novas complementações de pensão (art. 37, §15, CF), conforme súmula 340 do STJ.
Ainda, também destacou que como o instituidor era empregado vinculado ao RGPS - Regime Geral de Previdência Social, não se enquadra nas exceções do art. 40, CF, reservadas exclusivamente aos servidores submetidos a regime próprio.
Apesar de não constarem nos votos vencedor e vencido, vale destacar alguns argumentos que se coadunam com o voto vencido. Não foi só a súmula 340 do STJ que consagrou o racional de que a legislação vigente é a aplicável no momento em que a pensionista atinge as condições de elegibilidade, mas também a súmula 359 do STF3, o Tema de repercussão geral 396 do STF4 e o Tema repetitivo 907 do STJ5 prestigiam a mesma ratio decidendi, aplicando o princípio tempus regit actum em situações previdenciárias, valendo sempre a norma vigente no momento em que o beneficiário reúne todas as condições de elegibilidade para pleitear os respectivos benefícios.
Ainda, o entendimento do STJ vai além e defende que não há direito adquirido a regime jurídico previdenciário6.
A pensão por morte não era direito garantido aos dependentes dos beneficiários da lei 4.819/587, mas sim uma expectativa de direito8, que não se concretizou pela nova vedação constitucional.
O cônjuge sobrevivente não é herdeiro9 do beneficiário, e sim dependente e segurado dele, sendo a pensão por morte, portanto, um novo benefício e não a continuação da aposentadoria10.
Nessa ordem de ideias, a corrente positivista ganha mais notoriedade, em alinhamento ao voto vencido e em contrariedade ao entendimento vencedor no IRDR 54 do TJ/SP, o qual possui força vinculante nos limites da área de jurisdição do TJ/SP (arts. 927, III, e 985, ambos do CPC).
A controvérsia ainda poderá ser levada pelas partes para julgamento nos Tribunais Superiores, os quais eventualmente decidirão de forma definitiva sobre o tema.
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1 https://infograficos.gazetadopovo.com.br/politica/deficit-da-previdencia-nos-estados/
2 Parecer PA nº 45/2020 da Procuradoria-Geral do Estado
3 Súmula 359 do STF: "Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os requisitos necessários".
4 "(...) Isso porque, assim como a aposentadoria se rege pela legislação vigente à época em que o servidor implementou as condições para sua obtenção, a pensão igualmente regula-se pela lei vigente por ocasião do falecimento do segurado instituidor. Tudo isso em observância ao princípio tempus regit actum. Esse tema é por demais conhecido desta Corte, sendo pacífica a jurisprudência, conforme se observa do julgamento do RE 499.464/RJ, de minha relatoria, cujo acórdão foi assim ementado: "PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. LEI NOVA. AUMENTO DO BENEFÍCIO. RETROAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. I - O benefício previdenciário da pensão por morte deve ser regido pela lei vigente à época do óbito de seu instituidor. II - Impossibilidade de retroação de lei nova para alcançar situações pretéritas. III - Recurso extraordinário conhecido e provido". Na mesma linha foi o decidido no ARE 699.864-AgR/RJ, Rel. Min. Teori Zavascki; RE 581.530-AgR/ES, Rel. Min. Dias Toffoli; RE 638,227- AgR/RJ, Rel. Min. Luiz Fux; RE 577.827-AgR/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie; RE 320.179/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia; RE 465.072/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes. (...)"
5 Tese Firmada: "O regulamento aplicável ao participante de plano fechado de previdência privada para fins de cálculo da renda mensal inicial do benefício complementar é aquele vigente no momento da implementação das condições de elegibilidade, haja vista a natureza civil e estatutária, e não o da data da adesão, assegurado o direito acumulado."
6 STJ, RMS 60.635/BA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/03/2021, DJe 14/04/2021, AgRg no REsp n. 1.212.364/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 22/9/2015, DJe 30/9/2015 e AgRg no REsp n. 1.116.644/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 27/10/2009, DJe 7/12/2009.
7 TJSP; Apelação 1023666-19.2021.8.26.0053; Relator: Oswaldo Luiz Palu; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 23/2/2022 e TJSP; Apelação 1011421-73.2021.8.26.0053; Relatora: Maria Laura Tavares; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 15/8/2022
8 STF, RExt n. 630.501/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, Julgamento: 21/2/2013, Publicação: 26/8/2013
9 STJ, REsp 1.633.598/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA julgado, em 21/2/2017
10 TJSP; Apelação 1056230-85.2020.8.26.0053; Relatora: Vera Angrisani; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 22/4/2021



