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O teste de coerência do Estado brasileiro: Confiar ou não nos precatórios

Ao rejeitar precatórios como garantia, a ANS reacende o debate sobre a confiança do Estado em suas dívidas e a credibilidade institucional do país.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Atualizado em 24 de outubro de 2025 13:46

A decisão da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar de rejeitar os precatórios federais como ativos garantidores reacendeu um debate que vai muito além do setor de saúde suplementar. Ela expõe uma questão central para a economia e para o próprio Estado brasileiro: afinal, o governo confia em suas próprias dívidas? Os precatórios federais representam créditos reconhecidos judicialmente e incluídos no orçamento da União.

São, portanto, obrigações soberanas com força judicial e orçamentária, diferentes de qualquer outro instrumento de crédito. Não se tratam de títulos privados ou dívidas de mercado, mas da materialização da responsabilidade do Estado em cumprir decisões judiciais transitadas em julgado. Negar-lhes valor regulatório é um equívoco que fragiliza a credibilidade institucional do país. Se o próprio Estado não acredita em suas dívidas, como pode esperar que o mercado o faça? Tratar precatórios federais como risco, e não como ativos de garantia com respaldo jurídico e fiscal, é desperdiçar a oportunidade de fortalecer o sistema financeiro e reduzir a dependência de instrumentos puramente bancários.

É evidente que a prudência regulatória é necessária. O uso de precatórios como lastro não deve ser feito de forma desordenada. Mas a solução não é proibir, é estruturar. O Brasil pode e deve avançar para um modelo institucional que permita o uso seguro desses títulos, com registro centralizado, auditoria independente e critérios transparentes de liquidez e valuation.

A criação de um sistema nacional de custódia e registro de precatórios, sob supervisão do Banco Central e interoperabilidade com o Tesouro Nacional e órgãos de controle, eliminaria as incertezas sobre autenticidade e titularidade. Isso permitiria que os precatórios federais circulassem no ambiente regulado com a mesma segurança dos títulos públicos tradicionais, garantindo previsibilidade e transparência. Além do aspecto técnico, há um ponto macroeconômico crucial.

O volume de precatórios federais supera R$ 150 bilhões, representando um estoque expressivo de riqueza judicialmente reconhecida, mas subutilizada como instrumento econômico. Transformar esses créditos em ativos lastreáveis reduziria o custo de capital para setores intensivos em garantia, como saúde, infraestrutura e energia, e ampliaria a eficiência do sistema financeiro sem pressionar a dívida pública.

A verdadeira prudência regulatória não é recusar o novo, mas modernizar o que já existe com transparência, governança e responsabilidade. Os precatórios federais, longe de representarem risco, são um teste de coerência institucional: se o Estado não cumpre e não valoriza suas próprias decisões judiciais, compromete a confiança de todo o sistema. Reconhecê-los como ativos de verdade não é apenas uma questão técnica, é um ato de maturidade institucional e de reafirmação da credibilidade do Estado brasileiro. A ANS e outros reguladores têm a oportunidade de liderar essa mudança: adotar uma prudência construtiva, que fortaleça a estabilidade do sistema sem negar o papel legítimo dos precatórios na economia.

O futuro fiscal do país depende da capacidade de transformar passivos reconhecidos em ativos de confiança pública. E esse futuro começa com uma decisão simples, mas simbólica: acreditar que a palavra do Estado, expressa em um precatório, tem valor real.

Gilberto Badaró

Gilberto Badaró

Advogado especialista em precatórios e sócio do Badaró Almeida & Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia (UFBA).

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