Infância em rede: Entre a janela para o mundo e o abismo digital, o dever de proteger é inadiável
A proteção infantil no ambiente digital exige ação conjunta de famílias, Estado e plataformas para garantir segurança, ética e saúde mental.
segunda-feira, 3 de novembro de 2025
Atualizado em 31 de outubro de 2025 12:00
Introdução
Vivemos uma era em que as fronteiras entre o mundo físico e o digital se esvaem a cada toque na tela, a cada comando de voz. Para nossas crianças e adolescentes, nativos de um continente digital sem mapas definitivos, a internet não é uma ferramenta externa, mas uma extensão de sua própria existência - o pátio da escola, a biblioteca infinita, o clube social global. Essa realidade, se por um lado democratiza o acesso ao conhecimento e à conexão humana de forma inédita, por outro, escancara uma porta para perigos complexos, multifacetados e, muitas vezes, silenciosos, que se infiltram no santuário do lar. A proteção da infância, mandamento pétreo de nossa ordem jurídica, ganha, no século XXI, um novo e desafiador campo de batalha: o ciberespaço.
Como jurista, sinto-me na obrigação de afirmar com a serenidade que o Direito exige, mas com a inquietação que a urgência impõe: a proteção integral de nossas crianças no ambiente digital não é uma mera recomendação parental ou uma opção de governança corporativa. É um dever jurídico vinculante, uma obrigação de resultado que a Constituição e o arcabouço legal impõem solidariamente à família, às gigantescas corporações de tecnologia (as Big Techs), ao Estado e, em última análise, a cada membro da sociedade. A omissão, neste terreno volátil, semeia danos psíquicos, emocionais e sociais que podem se tornar irreparáveis, comprometendo não apenas um indivíduo, mas o próprio futuro do corpo social.
O lar digital: A curadoria afetiva da família como primeira linha de defesa
Se o ambiente familiar é o primeiro núcleo de formação de valores, ele deve ser, com igual ou maior intensidade, a primeira trincheira de proteção digital. A entrega de um smartphone ou tablet a uma criança, sem a devida orientação, supervisão contínua e diálogo franco, equivale a um ato de negligência, análogo a deixá-la sozinha em uma metrópole desconhecida e repleta de perigos. O poder familiar, instituto do Direito Civil, não confere aos pais um poder absoluto, mas um poder-dever, cujo exercício visa primordialmente o melhor interesse da criança. No contexto atual, esse dever se desdobra na obrigação de uma curadoria digital, afetiva e atenta.
Isso não significa proibir, o que seria ineficaz e contraproducente, mas acompanhar. Não se trata de espionar, o que minaria a confiança, mas de construir uma aliança que permita o diálogo aberto sobre os riscos. Conversar sobre o que é cyberbullying e suas consequências devastadoras; explicar a permanência quase indelével de um conteúdo postado ("o print é eterno"); ensinar a não compartilhar dados pessoais; e, crucialmente, a reconhecer os sinais sutis de um aliciamento ou de uma interação tóxica. A pesquisa TIC Kids Online Brasil revela um dado alarmante: um número crescente de crianças e adolescentes relata ter tido contato com discursos de ódio, desinformação e conteúdos de extrema violência. Este é um sintoma febril de que o diálogo preventivo dentro de casa precisa ser fortalecido com urgência.
Ademais, é imperativo que os pais compreendam os danos à saúde mental que o design viciante de muitas plataformas pode causar. A cultura da comparação incessante, os filtros que distorcem a autoimagem, a ansiedade gerada pelo "medo de ficar por fora" (FOMO - Fear of Missing Out) e a busca incessante por validação através de "curtidas" são arquiteturas digitais que podem corroer a autoestima em formação. Estabelecer "zonas livres de tecnologia" em casa, como durante as refeições, e limitar o tempo de tela não são atos de tirania, mas de cuidado, essenciais para o desenvolvimento de habilidades sociais, do foco e da saúde do sono. A família precisa ser o porto seguro onde a criança se sinta à vontade para relatar qualquer situação desconfortável, sem medo de punição, mas com a certeza do acolhimento.
O dever de cuidado ampliado: Estado e big techs no banco dos réus
A responsabilidade, contudo, não pode e não deve recair unicamente sobre os ombros já sobrecarregados das famílias. Seria uma inversão cruel de ônus. O Estado e as plataformas digitais são atores com poderes e deveres proporcionais à sua imensa influência e capacidade de ação. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - lei 13.709/18) estabelecem diretrizes claras, mas sua aplicação ainda é tímida diante da magnitude do desafio. A LGPD, em seu artigo 14, exige o consentimento específico e em destaque de um dos pais para o tratamento de dados de crianças, uma norma de proteção que é sistematicamente contornada por interfaces e termos de uso propositalmente complexos.
As Big Techs, cujo modelo de negócio se baseia na extração de dados e na monetização da atenção, têm um dever de cuidado (duty of care) que precisa ser rigorosamente cobrado pelos órgãos de controle e pelo Judiciário. Seus algoritmos, otimizados para maximizar o tempo de tela a qualquer custo, podem criar espirais de conteúdo, conduzindo crianças a vídeos, grupos e desafios cada vez mais extremos ou inadequados. Não basta oferecer ferramentas de controle parental de difícil acesso; é preciso que as plataformas sejam, desde sua concepção (privacy by design), ambientes mais seguros. Isso implica em moderação de conteúdo proativa e eficaz, uso de inteligência artificial para identificar e derrubar perfis de predadores, e sistemas de verificação de idade mais robustos.
Ao Estado, cabe um papel muito mais enérgico de regulação e fiscalização. É preciso avançar na legislação para responsabilizar civilmente as plataformas por danos causados por seus produtos e algoritmos, quando configurada a falha no dever de segurança. É função do Ministério Público, como defensor dos interesses indisponíveis da criança, mover ações coletivas para forçar as empresas a adaptarem seus produtos à legislação brasileira. Ademais, é fundamental investir massivamente em educação midiática nas escolas, capacitando crianças e adolescentes a se tornarem cidadãos digitais críticos, capazes de identificar desinformação, de proteger sua privacidade e de navegar com resiliência no complexo ecossistema digital.
Considerações finais
A internet é um caminho sem volta, uma força de potencialidades imensas para o aprendizado e a socialização. Negá-la às novas gerações é privá-las de uma ferramenta essencial para o futuro. O desafio, portanto, não é desconectar nossas crianças, mas conectá-las com segurança, ética e saúde mental. Isso exige um pacto social robusto, uma ação coordenada e um compromisso inabalável de todos os elos desta corrente de proteção.
Que possamos transformar a nossa justificada preocupação com os riscos da internet em ações concretas e cotidianas. Que as famílias dialoguem com mais profundidade, que as empresas de tecnologia sejam compelidas a colocar a segurança infantil acima do lucro, e que o Estado cumpra seu dever regulatório, fiscalizatório e educacional com a determinação que a causa exige. A proteção de uma criança no ambiente digital é a salvaguarda de sua saúde mental, de sua integridade e de seu futuro. E, ao fazê-lo, estamos, em última e definitiva instância, protegendo o próprio porvir de nossa civilização.
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Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). Pesquisa TIC Kids Online Brasil. São Paulo: CGI.br, anualmente. Acessível em: https://www.cetic.br/pt/pesquisa/kids-online/publicacoes/.
SAFERNET BRASIL. Indicadores e Relatórios. Acessível em: https://www.safernet.org.br/pt-br/biblioteca/indicadores-e-relatorios/.
Andréa Arruda Vaz
Advogada, pesquisadora e escritora, Doutora e Mestre em Direito Constitucional.


