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Direito à perícia independente

Neste artigo aborda-se a necessidade de todos os vestígios do delito serem coletados na presença de perito oficial, bem como serem periciados por órgão independente de polícia técnico científica.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Atualizado às 13:41

1. Introdução

É de conhecimento vulgar que, no processo penal, a vantagem inicial pende para o Estado-acusação, o qual dispõe de todo um aparato para a investigação de um fato típico. A começar pelo aparato das polícias investigativas1 (civil ou Federal), que detêm um contingente de profissionais destacados para tentar resolver os casos criminais. Depois, há também a supervisão das investigações pelo Ministério Público, que, com seu poder requisitório, pode determinar um sem-número de diligências complementares. Não se esqueça, ainda, das ocasiões em que o próprio MP, por suas unidades investigativas (GAECOs, por exemplo), dá início às investigações nos casos de maior vulto, auxiliado pela polícia investigativa ou por seus próprios centros de inteligência.

É contra esse Leviatã persecutório que deverão o réu e seu advogado opor alguma forma de resistência, geralmente contando com pouco ou nenhum recurso técnico e/ou financeiro. Ou seja: em boa parte dos processos criminais a defesa está de mãos atadas por não dispor das mesmas ferramentas (tecnológicas, financeiras e de recursos humanos) de que dispõe a acusação.

Não por outra razão que a existência de uma perícia independente se reveste de enorme importância a fim de tentar garantir, mediante a análise dos vestígios do crime imparcial e livre de interferências, um jogo processual menos injusto ao réu e seu advogado, fiando-se nela a possibilidade, ainda que remota, de busca de alguma paridade.

2. A polícia técnico-científica

Atualmente, os órgãos periciais na maioria dos Estados brasileiros já estão desvinculados da estrutura administrativa das polícias civis e integram a estrutura das Secretarias de Segurança Pública2, recebendo denominações diversas, como Instituto Geral de Perícias, Superintendência de Polícia Técnico-científica, Polícia Científica etc.

Benfazeja desvinculação acentua o caráter autônomo desses órgãos, os quais, portanto, ao menos em tese se veem livres de pressões e interferências que possam macular seu trabalho científico. Segundo a doutrina de Saad Neto3, essa autonomia se divide em: 1) técnico-científica; 2) funcional; 3) administrativa e 4) financeira. Releva mencionar que a autonomia técnico-científica dos órgãos de perícia oficiais "diz respeito a sua liberdade para definir a técnica, a metodologia e a teoria científica"4 que melhor se apresentem. Por outro lado, no que toca à autonomia funcional, sob o ângulo do próprio profissional perito, esta corresponde à "liberdade que lhes é conferida para desempenharem suas funções e apresentarem resultados e conclusões técnico-científicas sobre o objeto periciado."5 Assim, conforme o autor, "da aplicação prática das autonomias técnico-científica e funcional do perito criminal oficial resulta a impossibilidade de haver qualquer subordinação intelectual entre o demandante e o expert [.]"6.

Para reforço do quanto dito, vale destacar trechos do voto do ministro Alexandre de Moraes, do STF, no âmbito da ADIn 6.621/TO, que julgou constitucional a existência do órgão autônomo de polícia técnico-científica desvinculado da estrutura da polícia civil no Estado do Tocantins:

[.] a polícia científica, em que pese ser um órgão de auxílio à polícia judiciária nas investigações criminais, deve manter um necessário grau de autonomia e independência, para que possa exercer as suas funções sem qualquer pressão da própria polícia judiciária, seja civil ou federal, no caso da estrutura nacional. Isso, no Brasil, ficou muito saliente a partir de inúmeros problemas que tivemos durante a Ditadura Militar, com laudos técnicos produzidos sem a necessária independência.

[.]

Vale ressaltar que a polícia técnico-científica não atua como atividade policial na investigação ou na repressão à criminalidade, mas, sim, na atividade absolutamente essencial e imprescindível de fornecer laudos e fazer análise técnica para subsidiar a polícia judiciária, que, por sua vez, subsidiará o Ministério Público no exercício da ação penal e o próprio Poder Judiciário na aplicação da lei penal e no julgamento das infrações penais.

[.]

Verifique-se que, quando o Ministério Público atua na investigação, nos PICs - Procedimento de Investigação Criminal, ele por vezes solicita diretamente às polícias técnico-científicas a elaboração de importantíssimos laudos, porque, nessa situação, quem está exercendo o papel de investigação, o papel da própria polícia judiciária, é o Ministério Público, e quem deve auxiliá-lo é a polícia técnico-científica, que vai realizar as suas funções com total autonomia, exatamente como um órgão pericial técnico.

Aliás, a discussão acerca da autonomia dos órgãos periciais alcançou o ponto culminante com a sobrevinda da lei 12.030/09, que em seu art. 2º dispôs: "No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial."

Portanto, mesmo se reconhecendo que o órgão de perícia possa atuar como linha auxiliar dos trabalhos investigativos, há de se ter em mente que a nenhum órgão da persecução penal oficial (polícia civil ou Federal e Ministério Público) ele estará subordinado, ainda que faça parte da estrutura administrativa da polícia investigativa em alguns Estados e no âmbito Federal (no caso da Polícia Federal), devendo gozar de plena independência no desempenho de sua atividade-fim.

3. Perícia independente: Direito fundamental

Considera-se que os escopos do processo penal moderno e garantista, sob os auspícios da ordem constitucional, sejam tese: a verdade atingível (ou processual) e a garantia aos direitos fundamentais da pessoa humana, com respeito às regra pré-estabelecidas.

Nesse embalo, cumpre ressaltar o caráter de direito fundamental de que se reveste a perícia independente, indene de sugestionamentos e interferências do Estado-acusação. No ponto, vale mais uma vez o escólio de Saad Neto7:

Tendo aptidão para alcançar diversos players e permear as várias instâncias persecutórias envolvendo todo o sistema de justiça criminal, a atividade de perícia criminal realizada pelo Estado eleva o direito à prova pericial ao status de direito fundamental a ser exercido por todo indivíduo comprometido com a busca da verdade.

E mais adiante conclui o autor8:

Em virtude de seu conteúdo técnico-científico e objetivo, a atuação da perícia criminal oficial, especialmente na fase inicial da persecução penal, mostra-se fundamental para a garantia de direitos das pessoas envolvidas na suposta conduta delitiva investigada, principalmente no que se refere ao direito do fato a provar, tendo em vista que o resultado do exame pericial é apto para reduzir diversas incertezas que eventualmente possam pairar sobre os fatos questionados.

Donde se conclui que apenas a perícia realizada por órgão autônomo e sem subordinações de qualquer ordem aos órgãos da persecução estatal pode ser considerada uma perícia independente e, assim, garante dos direitos fundamentais da pessoa investigada.

4. A atuação direta das polícias e do Ministério Público

Bem sabe o legislador que a perícia deve estar a cargo de um órgão autônomo, livre de ingerências. Em consequência dessa conclusão, somente se pode ter como prova periciada aquela advinda desse órgão autônomo estatal, e não a que porventura advenha de órgão interno da estrutura da polícia investigativa ou do MP (a exemplo dos centros de inteligência).

Nesse sentido, bem valiosa a lição do professor Lorenzo Parodi9:

Da mesma forma que a raposa não pode ser guarda do galinheiro, a autoridade que investiga (e que tem evidente interesse em tentar confirmar suas teses acusatórias e a lisura de sua conduta e das provas que produz), assim como o órgão acusatório, não pode ser, sozinha, responsável pela custódia das evidências e provas nem, menos ainda, pela validação da autenticidade, integridade e integralidade delas. Fosse assim, haveria um patente conflito de interesses e acabariam prejudicados o exercício de direitos fundamentais e o respeito às garantias fundamentais que são a base do processo democrático constitucional de tipo acusatório.

Na lida real, é muito comum o advogado se deparar com a seguinte situação: após uma operação da polícia investigativa ou do Ministério Público (pelos GAECOs), inúmeros aparelhos eletrônicos (celular, notebook, tablet etc.) são apreendidos mediante autorização judicial e, ainda no local da apreensão (geralmente na casa do alvo), averiguados e manuseados pela autoridade ali presente, longe da presença de qualquer perito criminal. Após, esses aparelhos são enviados para "perícia" no órgão de inteligência respectivo e lá são extraídos os dados. Por fim, são selecionadas aquelas evidências que melhor se adequam à tese acusatória e formulados os "Relatórios de Análise"10, geralmente subscritos por pessoas não identificadas, os quais são entregues ao órgão persecutório e anexados na denúncia.

O problema é que, nesses casos, toda coleta, tratamento, preservação, custódia e processamento dos vestígios11 não foi levada a cabo por um perito oficial, mas pelos agentes e autoridade participantes da "operação" que resultou na apreensão, contrariando o disposto no arts. 6º, incisos I e II, 158-C, 158-E, 159 e 169 do CPP. É indevido o manuseio dos vestígios diretamente pela autoridade policial, pelo Ministério Público ou por seus respectivos agentes, configurando-se no caso inafastável quebra da cadeia de custódia.

Imagine-se o seguinte exemplo (um tanto corriqueiro): durante o cumprimento de mandado de prisão e busca e apreensão em desfavor de um investigado, a autoridade policial ou o membro do MP - geralmente acompanhados por policiais armados - "solicita" ao proprietário o desbloqueio do celular, passando então a manuseá-lo com a finalidade de averiguar in loco as últimas conversas mantidas pelo alvo, inclusive tirando prints de algumas conversas, tudo isso longe da presença dos peritos e sem maiores cuidados. Pergunta-se: encontra-se respeitada a cadeia de custódia ou esta já foi fulminada?

Para o professor Lorenzo Parodi, nesses casos a cadeia de custódia está irremediavelmente comprometida, resultando na imprestabilidade do vestígio como fonte de prova12:

Análises e manuseios realizados diretamente pelas autoridades investigadoras ou pelos órgãos de acusação, em dispositivos eletrônicos apreendidos ou em material digital original obtido de qualquer forma, resultarão fatalmente em quebra de cadeia de custódia (e possível, quando não provável, quebra de integridade) e consequente inadmissibilidade de tais elementos probatórios em âmbito penal.

Mesma linha seguiu um importante precedente do STJ no seio do AgRG no HC 943.895, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik. O caso versava sobre o manuseio, pela autoridade policial, de celular apreendido, com prints de conversas e confecção de relatório antes mesmo do envio do material à perícia. O ministro Joel Ilan Paciornik considerou, por isso, que entre a coleta e o processamento da prova houve a quebra da cadeia de custódia. Segue um trecho do voto: "a situação descrita dos autos não se tratou de simples verificação do aparelho pela autoridade policial antes da perícia técnica, mas de procedimento aprofundado que compromete a fidedignidade da prova e, consequentemente, a cadeia de custódia."

Infelizmente, esse proceder é mais comum do que se imagina, aliás, parece até mesmo ser a regra, não apenas por parte da autoridade policial, mas também do Ministério Público quando preside investigações, e isso quase sempre sem nenhum tipo de qualificação ou conhecimento a respeito das melhores práticas internacionais, descritas em documentos como a ISO/IEC 27.037, a ISO/IEC 27.042:2015 ou mesmo a ABNT NBR ISO/IEC 27.037:2013.

Como bem salienta Clarissa Diniz Guedes13, "ainda na fase de investigação, quando da obtenção da prova digital, são necessários conhecimentos específicos sobre a melhor forma de coletar, armazenar e preservar as informações contidas na prova digital sem comprometer sua integridade."

Logo, a presença do perito oficial já na coleta do vestígio, por seu conhecimento, habilidade e independência, não se trata de mera opção, mas sim de imperatividade, a fim de garantir integridade e integralidade da evidência, sem o que não se falará em prova confiável.

5. Conclusão

Indesmentível, por conseguinte, o dever do Estado em garantir aos acusados um processo penal justo, e é sob tal enfoque que advém a necessidade de estruturação de um órgão pericial autônomo, com capacidade técnica para atuar em todas as fases da persecução penal, desde seu início.

Não se pode admitir que a "prova" produzida unilateralmente pela acusação tenha o mesmo valor daquela produzida perante um órgão oficial de perícia. Nesse caso, a "prova da acusação" deverá ser valorada tal qual um elemento de informação que tenha sido produzido unilateralmente pela defesa, por meio de investigação defensiva, por uma questão mesmo de paridade.

Além disso, a defesa tem o direito de requerer ao juízo a prova sobre a prova, por meio de perícia independente, a fim de certificar se a cadeia de custódia foi respeitada no caso de provas produzidas unilateralmente pela acusação.

Por fim, se comprovada a quebra da cadeia de custódia (como no manuseio do vestígio pela autoridade investigativa em desrespeito ao procedimento previsto em leis e regulamentos), deverá a prova ser tida como imprestável e, assim, inadmissível, porque inválida, sendo necessariamente desentranhada dos autos.

Todo esse cuidado trará ao processo penal mais garantias e ao julgador um pouco mais de certeza de que a prova a ser por ele apreciada foi produzida por órgão independente e imparcial, segundo as melhores práticas internacionais.

___________________

1 Neste artigo, designaremos como polícia investigativa tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Federal.

2 SAAD NETO, Cláudio (org.). O direito à prova pericial no processo penal. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 66.

3 Obra citada, p. 86-89.

4 Obra citada, p. 86.

5 Obra citado, p. 88.

6 Obra citada, p. 88.

7 Obra citada, p. 69. 8 Obra citada, p. 83.

8 PARODI, Lorenzo. Perícia defensiva em provas digitais no processo penal: origem, custódia, integralidade e integridade. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 91.

9 Ou outros nomes que se queiram dar: relatório de informação, relatório de inteligência, relatório de investigação etc.

10 Segundo Wiliian Núncio, vestígio é "todo material bruto, objeto que o perito encontra no local do crime. Como exemplo podemos citar um HD (hard disk), pendrive, smartphone, smart TV, cd/dvd, assistentes pessoais, drones, entre outros." A CADEIA DE CUSTÓDIA EM PERÍCIA FORENSE DIGITAL. https://academiadeforensedigital.com.br/a-cadeiade-custodia-em-pericia-forense-digital/. Acessado em 05/10/2025.

11 Obra citada, p. 96.

12 GUEDES, Clarissa Diniz. Prova em vídeo no processo penal: aportes epistemológicos. - Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, p. 47.

Paulo Brondi

VIP Paulo Brondi

Advogado criminalista Ex-promotor de justiça (MPGO) Especialista em Compliance e Direito Penal Econômico Especialista em Processo Penal Sócio-fundador do escritório Benedito Torres Advogado

Gabriel Bulhões Nóbrega Dias

Gabriel Bulhões Nóbrega Dias

Advogado Criminalista. Autor do livro Manual Prático de Investigação Defensiva: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira (EMais). Presidente da Comissão Nacional de Investigação Defensiva da ABRACRIM. Professor de Pós-graduações; Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS. Pós-graduado em Ciências Criminais pela UCAM/RJ e em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM/Universidade de Coimbra.

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