A estratégia do "nosso homem no Supremo"
Quando a sátira explica a realidade. O que experiências recentes e a ficção nos ensinam sobre a indicação para o STF?
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Atualizado às 11:12
O alinhamento político, institucional ou ideológico com o Governo tornou-se o critério decisivo para a indicação de alguém ao STF.
Em alguma medida, o processo de indicação para os tribunais superiores sempre envolveu a análise do perfil ideológico do candidato, de suas crenças e valores, especialmente de seu posicionamento sobre temas controversos, como aborto e eutanásia. A indicação envolve um cálculo político, em que os requisitos constitucionais de "notável saber jurídico e reputação ilibada" são, por vezes, objetos de interpretação bastante "elástica" (quando não dissimulada), em favor de assegurar uma Corte, se não afinada, pelo menos não contrária às pautas do Governo.
Esse não é um fenômeno novo ou propriamente brasileiro. Nos Estados Unidos, Dworkin destacou como os presidentes Nixon, Reagan e Bush fizeram indicações para assegurar a "pureza ideológica" da Corte1. No entanto, o autor também apontou como esse objetivo nem sempre foi alcançado. Após assumirem o posto, muitos indicados frustraram as expectativas conservadoras de seus patronos, inclusive em temas sensíveis para a pauta pretensamente conservadora, como no julgamento do caso Roe v. Wade, sobre o aborto (1973).
Como regra geral, todos querem colocar "alguém seu" nas cortes constitucionais. Porém, essa é uma "estratégia" que somente foi aprendida pelos governos brasileiros muito recentemente.
I. Aprendendo a jogar
A comparação entre algumas indicações anteriores pode ser bastante ilustrativa da nova tendência na escolha para o STF.
Por exemplo, tanto em seu discurso de posse na presidência quanto em sua carta de despedida da Corte, por conta de sua aposentadoria, o ministro Luís Roberto Barroso agradeceu à presidenta Dilma Rousseff sua indicação "da forma mais republicana possível, sem pedir, sem insinuar, sem cobrar"2. Em seu livro Sem data venia, o ministro reforça: "A bem da verdade e da justiça, a presidente Dilma não me pediu, seja direta ou indiretamente, absolutamente nada, inclusive em relação ao julgamento do Mensalão, que estava em curso e do qual eu ainda viria a participar."3. A indicação para o STF se deu em 2013. Nos anos seguintes, conhecemos como foi o fim do mandato da presidenta e qual foi o posicionamento do ministro sobre o impeachment, a "execução provisória da pena" e a operação Lava Jato, bem como seus desdobramentos políticos e institucionais.
Os governos seguintes não pareceram dispostos a correr os mesmos riscos em homenagem ao princípio republicano.
As duas indicações do atual Governo Lula foram as dos ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino.
Como sabido, Cristiano Zanin foi indicado após sua atuação como advogado de defesa do então ex-presidente Lula nos processos da Operação Lava Jato. Na ocasião da indicação, foram levantadas as mesmas críticas que agora reaparecem. Muitos esperavam alguém mais representativo dos segmentos sociais historicamente marginalizados e mais comprometido com as pautas progressistas em temas econômicos, políticos e de costumes.
Já Flávio Dino foi indicado enquanto era ministro da Justiça do Governo Lula, após uma carreira que atravessou os três Poderes, em que foi juiz Federal, deputado Federal, governador e senador. A análise de sua experiência quase "holística" na institucionalidade estatal, inclusive nas relações entre direito e política, certamente permitiu ao Governo aferir seu maior alinhamento ideológico com suas pautas. Portanto, a despeito da conveniência de seu estilo combativo e de seu preparo técnico, pode-se inferir que o decisivo para sua indicação foi sua identidade política com o Governo.
Contudo, há um efeito colateral: o grau de alinhamento institucional e ideológico do indicado com o Governo gera uma proporcional oposição política no Senado.
No plenário do Senado, a indicação de Barroso foi aprovada por 59 votos, com apenas 6 contrários, evidenciando uma baixa resistência política ao seu nome. Em comparação, Zanin foi aprovado por 58 contra 184. Apesar da maior resistência, essa votação indica que o candidato conseguiu angariar o apoio de parcela significativa dos senadores da oposição, e que aquelas características criticadas podem ter sido a garantia da sua aprovação com tal folga de votos. Já Flávio Dino foi aprovado por 47 votos contra 31, e duas abstenções, logo, com uma margem apertada.
Certamente, a indicação de Dino foi resultado da aprendizagem com a de Zanin, no sentido de reforçar o alinhamento político como critério de escolha.
Lembremos que, logo de início, o ministro Zanin surpreendeu alguns com seus votos.
Tendo tomado posse em 3/8/23, seu primeiro proferimento de destaque foi em 24/8/23, no julgamento do RE 635.659, sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal (Tema 506)5. Ainda que divergindo em alguns pontos, os ministros Fachin, Borroso, Moraes e Mendes já tinham votado pela descriminalização, quando o primeiro voto pelo improvimento do recurso, foi o de Zanin, depois seguido por Mendonça, Marques, Toffoli e Fux. No fim, apesar da divergência que abriu, Zanin acabou vencido, com a maioria decidindo pelo provimento do recurso.
Segundo os críticos, para além da longa discussão jurídica em torno da violação aos princípios penais da lesividade e da alteridade, o voto teria revelado o verdadeiro perfil do ministro e o erro do presidente da República na sua indicação.
Se o Governo pensava ter colocado "nosso homem" na Corte, a revelação pode ter sido incômoda, e servido de alerta para indicações futuras.
Incômoda ou cômica, essa surpresa nos lembra que polarizações políticas extremadas podem induz a erros de avaliação de perfis, como
II. "Nosso homem"?
Em 1958, o escritor britânico Graham Greene, famoso por seus romances de espionagem, publicou Nosso Homem em Havana, uma sátira ao clima conspiratório da Guerra Fria, então em curso.
No nosso atual clima polarizado, em que o cenário brasileiro parece uma sátira daquela bipolarização da Guerra Fria, a obra de Greene oferece um ponto de apoio para análise, se não científico, talvez lúdico.
Morando na capital cubana durante os instáveis meses finais da ditadura de Fulgêncio Batista, o cidadão inglês Jim Wormold trabalha como vendedor de aspiradores de pó, sem sucesso. Seus problemas pessoais e financeiros pioram quando é abandonado pela esposa e passa a ser pressionado pelos gastos extravagantes da sua filha de 17 anos. Até que, surpreendentemente, ele é procurado pelo serviço secreto britânico para colaborar como informante e espião, pois acreditam que ele tem acesso a informações privilegiadas do governo local, já que sua filha está sendo cortejada por um capitão da polícia política cubana. Vendo no convite a oportunidade de uma renda extra, o simples vendedor passa a forjar informações pretensamente "confidenciais"6. Assim, o serviço secreto britânico é enganado de que tem "um homem seu" em Havana.
O enredo expõe como, não apenas o vendedor falseia seu papel de espião, mas todos constroem personas convenientes para seus próprios fins. A filha transita de religiosa puritana a desinibida insinuante para ganhar presentes do pai e do pretendente. O capitão é gentil com a jovem e seu pai, enquanto esconde sua atuação como torturador de presos políticos.
O romance de Greene é um jogo de máscaras, em que as personagens forjam personas em favor de seus próprios objetivos, levando a situações cômicas e caricatas.
Historicamente, em todo o mundo, os presidentes pretendem colocar "seus homens" nas cortes constitucionais, ainda que não raramente venham a se surpreender com o verdadeiro perfil de seus escolhidos, descobrindo tarde demais que "seu agente" não era exatamente quem acreditavam ser.
Em 21/8/23, Zanin foi o único ministro a votar contra a equiparação de ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+ a crime de injúria racial, no julgamento de embargos de declaração referentes à decisão do STF que em 2019 estendeu a aplicação da lei do crime de racismo à homotransfobia (ADO 26 e MI 4.733)7.
Poucos dias depois, em 25/8/23, o Zanin votou pelo não conhecimento de uma ação ajuizada pela Apib - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, em que a entidade alega que a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul estaria intervindo, sistematicamente, de forma abusiva e violenta nas terras indígenas Guarani-Kaiowá (ADPF 1.059). Zanin seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes no sentido de que a ação não apresentava elementos mínimos para seu prosseguimento processual, sendo acompanhado também por André Mendonça e Nunes Marques. No entanto, por maioria, o plenário decidiu pelo prosseguimento da ação8.
Essa sequência de votos contrários às pautas (em tese) apoiadas pelo Governo lança suspeita sobre o posicionamento do ministro Zanin em outras questões sensíveis com julgamento pendente, como a descriminalização da interrupção voluntária da gestação (ADPF 442). Se o Governo pensava ter em Cristiano Zanin "nosso homem" no STF, os resultados talvez não tenham sido os esperados. Daí porque a aposta teve que ser aumentada com a indicação de Dino. Agora, com a nova vaga, abre-se uma nova rodada, e o Governo pretende indicar mais dos "seus homens".
Contra essa lógica, cresce a demanda por maior pluralidade e representatividade na composição da Corte, em favor da indicação de uma mulher negra para a vaga.
No entanto, tudo indica que a atenção do Governo está mais voltada para a busca de um homem de fidelidade canina, a fim de evitar novas surpresas.
Em um ambiente extremamente polarizado político-ideologicamente, como o atual, parece existir uma pressa na categorização dos atores políticos e sociais como aliados ou adversários, a despeito de uma análise mais detida.
Greene conhecia bem esses jogos de máscaras para agradar plateias e padrinhos. Antes de ser escritor e jornalista, ele próprio havia sido recrutado pelo MI6, o serviço secreto britânico, para atuar como espião durante a Segunda Guerra Mundial. Sua experiência na espionagem lhe ensinou como disfarces e encenações (reais e simbólicas) são estratégias comuns nos jogos do poder, e que aqueles que acreditavam ter "nosso homem" estrategicamente colocado podem estar totalmente equivocados.
O livro de Greene tem o mérito de ser um romance de espionagem que não se leva a sério, mas passa uma importante lição. Polarizações simplistas induzem a fantasiar aliados, ignorando as complexidades envolvidas na avaliação de um perfil social, político ou mesmo jurídico.
Cumpre avaliar o perfil jurídico do futuro candidato ou candidata à próxima vaga do STF pelo seu retrospecto biográfico e sua carreira, e não apenas pelos discursos e serviços recentes, pelas personas escolhidas para atender a interesses ocasionais.
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1 DWORKIN, Ronald. O Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 174-176.
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ministro Luís Roberto Barroso se despede do Supremo após 12 anos de atuação. Mais notícias, 09/10/2025.
3 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 42-43.
4 BRASIL. Senado Federal. Por 58 votos a 18, Senado aprova Zanin para o STF. Matérias, de 21/06/2023.
5 No RE, analisou-se a constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. O artigo elenca as penas aplicáveis a "quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo" drogas ilícitas para consumo pessoal. Apesar de pretender diferenciar o usuário do traficante, o dispositivo legal mantém como crime o porte para consumo próprio e não estabelece critérios quantitativos e qualitativos de diferenciação.
6 GREENE, Graham. Nosso Homem em Havana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF equipara ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+ a crime de injúria racial. Notícias, de 22/08/2023.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento Fundamental 1059. Andamento processual.


