A IA na Administração Tributária brasileira e seus desafios
A crescente e multifacetada implementação de sistemas de IA - inteligência artificial pela Administração Tributária brasileira e suas consequências.
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Atualizado às 11:14
Introdução
A transformação digital das Administrações Públicas é um fenômeno global, e a IA - Inteligência Artificial surge como seu principal vetor de aceleração. No campo tributário, essa realidade não é diferente. Dados recentes da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico indicam que a vasta maioria de seus países membros já emprega a IA para otimizar a arrecadação e combater a evasão fiscal1. Nesse contexto, o Brasil destaca-se como um dos protagonistas, tendo desenvolvido um robusto ecossistema digital que o posiciona como uma referência internacional na aplicação de tecnologia à gestão tributária2.
A RFB - Receita Federal do Brasil, em parceria estratégica com o Serpro, tem promovido uma verdadeira revolução silenciosa, migrando de um modelo historicamente punitivo para uma abordagem que prioriza a colaboração e a autorregularização. A máxima que guia essa transformação, conforme verbalizado pelo auditor-fiscal Pedro Frantz, é que "dado sem confiança é ruído e tecnologia sem propósito é barulho"3, sinalizando um compromisso com o uso ético e transparente dos dados.
Este artigo propõe-se a dissecar o avanço da IA no Fisco nacional. Primeiramente, apresentaremos o ecossistema de dados e as aplicações concretas da IA pela RFB. Em seguida, analisaremos a expansão do controle algorítmico por meio de novos sistemas integrados. Por fim, e de forma central, debateremos os inadiáveis desafios jurídico-constitucionais que essa nova realidade impõe, buscando delinear um caminho de equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte.
O ecossistema de dados e as aplicações da IA no Fisco
A capacidade da RFB em aplicar a IA de forma eficaz é diretamente proporcional à sua monumental capacidade de coleta e processamento de dados. O órgão lida mensalmente com cerca de 690 milhões de NF-e - Notas Fiscais Eletrônicas e anualmente com 3 bilhões de CT-e - Conhecimentos de Transporte Eletrônico e 35 milhões de escriturações contábeis digitais3. Essa infraestrutura, consolidada ao longo de anos com sistemas como o SPED - Sistema Público de Escrituração Digital - hoje um benchmark internacional -, criou o terreno fértil para o desenvolvimento de mais de 40 projetos de IA ativos.
As aplicações são vastas e abrangem praticamente todas as áreas da administração tributária, conforme sintetizado na tabela abaixo.
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Área de Atuação |
Ferramentas e Projetos de IA |
Descrição e Resultados Notáveis |
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Fiscalização e Antifraude |
Projeto Analytics, seleção preditiva, análise de redes. |
Cruzamentos massivos de dados para identificar com alta precisão irregularidades, grupos econômicos complexos e fraudes estruturadas. Já recuperou bilhões de reais em esquemas de sonegação4. |
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Aduana |
Projeto AJNA, Muralha Inteligente. |
Uso de varreduras por raio X em contêineres e sistemas de sensores em fronteiras para detectar rotas de contrabando e descaminho, aumentando a assertividade das operações. |
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Aeroportos |
Sistemas de gerenciamento de risco. |
Substituição da inspeção aleatória de passageiros por uma seleção baseada em análise de risco, reduzindo falsos positivos e o desconforto para viajantes em conformidade. |
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Área Jurídica |
Modelos de Linguagem (LLMs). |
Ferramentas para segmentação de processos e apoio à elaboração de minutas, sempre sob supervisão humana, visando acelerar a análise de contenciosos administrativos. |
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Atendimento e Compliance |
Chatbots com IA generativa. |
Assistentes virtuais treinados para fornecer respostas confiáveis e orientar os contribuintes, estimulando a conformidade voluntária e a autorregularização. |
O "Projeto Analytics" é a joia da coroa dessa estratégia, tendo permitido a identificação de esquemas complexos de sonegação com uso de criptomoedas que movimentaram mais de R$ 1 bilhão 5, além de analisar pedidos de ressarcimento com indícios de fraude que somam R$ 11 bilhões 4. Igualmente relevante é a capacidade do sistema de induzir a autorregularização, como no caso em que uma empresa, alertada sobre o uso indevido de prejuízo fiscal, retificou sua declaração, gerando uma arrecadação de milhões de reais sem a necessidade de instauração de um litígio3.
A expansão do controle algorítmico: CIB e a e-Financeira
A capacidade de fiscalização da RFB está sendo ampliada por novos sistemas que integram fontes de dados antes dispersas. A IN RFB 2.275/25 instituiu o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro, apelidado de "CPF do imóvel". Este sistema, alimentado por informações de cartórios e prefeituras através do Sinter - Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, permitirá à IA cruzar dados para identificar inconsistências como aluguéis não declarados ou patrimônio imobiliário incompatível com a renda declarada6.
Paralelamente, a plataforma e-Financeira, que desde 2015 centraliza dados bancários, ganha uma nova dimensão com a popularização do pix. O volume e a granularidade das informações sobre transações financeiras instantâneas conferem à Receita Federal uma capacidade de monitoramento em tempo real sem precedentes, cujo cruzamento com as demais bases de dados representa um salto qualitativo no poder de fiscalização do Estado.
Os desafios jurídico-constitucionais da fiscalização algorítmica
A eficiência e o poder da fiscalização algorítmica trazem consigo desafios proporcionais no campo do Direito. A adoção de decisões automatizadas pela IA colide com garantias fundamentais do contribuinte, exigindo uma profunda reflexão do legislador e do Judiciário.
O principal ponto de tensão reside na transparência dos algoritmos, frequentemente referidos como "caixas-pretas". Uma autuação fiscal baseada em uma "inconsistência detectada por sistema", sem a devida explicitação dos critérios e da lógica que levaram a tal conclusão, fere frontalmente o princípio da motivação dos atos administrativos, pilar do Estado de Direito. Essa opacidade compromete severamente o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88), pois, como pode o contribuinte contestar uma decisão cuja fundamentação desconhece? A consequência é uma perigosa inversão do ônus da prova, na qual o cidadão é compelido a provar sua inocência perante uma acusação maquínica 7.
Ademais, algoritmos são treinados com base em dados históricos e podem perpetuar ou mesmo amplificar vieses existentes, resultando em fiscalizações discriminatórias contra determinados setores ou perfis de contribuintes. A coleta e o cruzamento massivo de dados também devem observar estritamente os princípios da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, como finalidade, necessidade e adequação, para não se converterem em uma vigilância estatal desproporcional8.
O STJ, no julgamento do REsp 1.907.044/GO, já reforçou a necessidade de motivação clara e suficiente nos atos administrativos, um entendimento que deve ser estendido às decisões algorítmicas9. Nesse sentido, o PL 2.338/23, que visa criar um marco legal para a IA no Brasil, é de suma importância. Ao propor uma regulação baseada em risco e enfatizar a transparência, a responsabilidade e a supervisão humana, o PL pode fornecer as balizas necessárias para o uso da IA no âmbito tributário10.
Conclusão
A Administração Tributária brasileira vive um momento de profunda e irreversível transformação impulsionada pela inteligência artificial. Os ganhos em eficiência, precisão e capacidade de detecção de fraudes são inegáveis e colocam o Brasil em uma posição de vanguarda global. A transição para um Fisco mais orientado por dados e focado na conformidade voluntária é um avanço civilizatório que beneficia tanto o Estado quanto os contribuintes adimplentes.
Contudo, essa revolução tecnológica não pode ocorrer à revelia das garantias constitucionais. A eficiência arrecadatória não é um valor absoluto e deve ser ponderada com os direitos fundamentais à transparência, ao devido processo legal e à privacidade. O grande desafio que se impõe ao Brasil é, portanto, o de construir uma governança para a IA tributária que seja simultaneamente inovadora e garantista.
Isso exigirá a criação de um arcabouço legal robusto, a implementação de mecanismos de transparência algorítmica, a garantia de uma revisão humana qualificada para as decisões automatizadas e o fortalecimento do controle judicial. Somente ao equilibrar inovação tecnológica, justiça fiscal e proteção aos direitos fundamentais será possível consolidar um ambiente tributário moderno, seguro e, acima de tudo, confiável para todos.
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1 OECD (2025). Governing with Artificial Intelligence. Disponível em: https://www.oecd.org/en/publications/2025/06/governing-with-artificial-intelligence_398fa287/full-report/ai-in-tax-administration_30724e43.html
2 CIAT (2025). Three innovations in Brazil's value added tax reform. Disponível em: https://www.ciat.org/three-innovations-in-brazils-value-added-tax-reform/?lang=en
3 Serpro (2025). Receita Federal aposta em inteligência e confiança para transformar dados em decisões justas. Disponível em: https://www.serpro.gov.br/menu/noticias/noticias-2025/ia-na-rfb
4 Reforma Tributária (2025). Receita Federal usa IA e detecta esquemas que somam R$ 11 bi em sonegação. Disponível em: https://www.reformatributaria.com/tecnologia/receita-federal-usa-ia-e-detecta-esquemas-que-somam-r-11-bi-em-sonegacao/
5 FDS Tributário (2025). Receita Federal Lança Tecnologia de IA Que Detecta Fraudes de R$ 350 milhões. Disponível em: https://blog.fdstributario.com.br/receita-federal-lanca-tecnologia-de-ia-que-detecta-fraudes-de-r-350-milhoes-2024/
6 Documento da aula fornecido pelo usuário (aulaiaetributação.docx).
7 Migalhas (2025).Reforma tributária e IA: Riscos da fiscalização algorítmica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/440070/reforma-tributaria-e-ia-riscos-da-fiscalizacao-algoritmica
8 Portal Gov.br (2025). Compartilhar dados fiscais. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/lgpd/compartilhar-dados-fiscais
9 Superior Tribunal de Justiça (2021). Recurso Especial Nº 1.907.044 - GO. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=133040959&num_registro=202003139500&data=20210825&tipo=5&formato=PDF
10 Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 2338/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2487262


