Estelionato sentimental e a responsabilidade civil e penal nas relações afetivas
O estelionato sentimental, fenômeno que desafia tanto o Direito Penal quanto o Civil, configura uma das expressões mais sofisticadas da fraude contemporânea.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado às 09:58
O estelionato sentimental, fenômeno que desafia tanto o Direito Penal quanto o Civil, configura uma das expressões mais sofisticadas da fraude contemporânea. Disfarçado sob o verniz da afetividade, o agente manipula emoções e vínculos de confiança para auferir vantagem ilícita, utilizando o afeto como instrumento de dolo e o engano como meio de espoliar a vítima, muitas vezes em sua dignidade, patrimônio e até saúde emocional.
O amor, que deveria ser terreno de liberdade e reciprocidade, é aqui instrumentalizado como moeda de troca, como ferramenta de domínio psicológico e de exploração financeira, abrindo espaço para uma necessária reflexão sobre a intersecção entre moralidade e juridicidade.
O estelionato sentimental é um crime que lesa a vítima material e psicologicamente, eis que sua repercussão causa sofrimento com traumas profundos, originando até comportamentos paranoides.
Praticado por seres humanos independentemente de sexo, é o resultado de uma cultura que transforma o indivíduo em objeto de ganho e não de amor. No campo penal, trata-se de um desdobramento do tipo previsto no art. 171 do CP, que define o estelionato como obter vantagem ilícita em prejuízo alheio mediante artifício ou ardil. No entanto, as especificidades da fraude sentimental, que se opera no ambiente da intimidade e das emoções, levaram o legislador a buscar uma tipificação própria.
Em trâmite no Congresso Nacional, o PL 1.146/24 propõe a inclusão do art. 171-A no CP, definindo expressamente o estelionato sentimental como o ato de enganar alguém mediante promessa de relacionamento afetivo ou amoroso, com o propósito de obter vantagem econômica ou patrimonial indevida, prevendo pena de reclusão de um a cinco anos e multa. O legislador reconhece, assim, a gravidade dessa forma de abuso emocional que transcende o simples prejuízo material e atinge o âmago da pessoa, sua autoestima e sua liberdade de confiar.
No âmbito civil, as consequências são igualmente severas. A vítima, ludibriada em sua boa-fé, pode pleitear reparação por danos morais e materiais, com fundamento nos arts. 186 e 927 do CC, que impõem o dever de indenizar aquele que, por ação ou omissão voluntária, causar dano a outrem. O enriquecimento sem causa e a violação da confiança, princípios basilares do ordenamento, são aqui frontalmente afrontados, justificando a tutela reparatória como forma de restabelecimento do equilíbrio jurídico e emocional rompido pelo engodo.
O estelionato sentimental revela o aviltamento da subjetividade humana em tempos de relações líquidas e instantâneas, nas quais a manipulação se traveste de afeto e o amor é convertido em ferramenta de poder. O Direito, como expressão da ética civilizatória, não pode se omitir diante dessa nova modalidade de crime que atinge, simultaneamente, a integridade patrimonial e a dignidade emocional.
A proposta legislativa, portanto, surge não como mera inovação penal, mas como resposta à urgência de proteger a afetividade como bem jurídico essencial. A fraude do coração é também uma fraude contra a própria humanidade, e o Estado de Direito tem o dever de rechaçá-la com o rigor que se impõe aos crimes que desonram o sentimento humano e profanam o princípio da confiança que sustenta a convivência civil. Ao se examinar o fenômeno sob o prisma social, percebe-se que o estelionato sentimental é também reflexo de uma era de vulnerabilidades emocionais expostas em redes digitais, onde a aparência substitui o caráter e a ilusão se torna mercadoria.
A tecnologia ampliou o alcance das relações e, paradoxalmente, a solidão dos indivíduos, tornando mais fácil a atuação de falsos afetos que se disfarçam de amores sinceros. O Estado, portanto, deve agir não apenas na punição, mas também na prevenção, promovendo educação emocional e consciência jurídica, para que a confiança, essência das relações humanas, não seja um campo fértil para a fraude, mas um valor protegido pela lei e pela sociedade.


