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IA generativa e direitos autorais: Lições do caso Li v. Liu

Decisão chinesa reconheceu proteção autoral à imagem gerada com IA quando há contribuição humana significativa. O que isso sinaliza para o direito brasileiro?

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Atualizado às 13:55

A crescente integração da inteligência artificial generativa ao cotidiano jurídico, artístico e econômico tem desafiado os marcos tradicionais de proteção autoral em diversos sistemas jurídicos. O caso Li v. Liu (Beijing Internet Court, 2023) representa um marco nessa discussão, ao abordar pela primeira vez, em decisão judicial, a possibilidade de reconhecer uma criação produzida com o auxílio de IA como obra protegida por direitos autorais.

O julgamento oferece um retrato do estágio atual do debate jurídico na China, convidando à reflexão sobre os limites da autoria humana e a necessidade de harmonização normativa entre diferentes regimes legais.

Contexto do caso

Na decisão, o tribunal de Beijing reconheceu que uma imagem gerada por IA, sob instruções e parâmetros fornecidos pelo autor, poderia ser protegida pela lei de direitos autorais da República Popular da China. O tribunal considerou que o processo criativo envolvia a intervenção intelectual do usuário, cuja contribuição ultrapassava o mero acionamento da ferramenta. Essa compreensão reforçou a centralidade do elemento humano na criação, mesmo em um contexto de automatização parcial do processo produtivo.

A decisão, contudo, não equiparou a IA a um sujeito de direitos. O tribunal enfatizou que a titularidade permanece restrita ao humano que direciona o processo, afastando a hipótese de personalidade jurídica das máquinas, questão que ainda gera intensa controvérsia teórica no campo do direito internacional e da ética tecnológica. O entendimento aproxima-se, em parte, de interpretações já consolidadas em outros ordenamentos, como o europeu, que também mantêm a autoria humana como requisito essencial à proteção autoral.

A abordagem chinesa e o debate internacional

O posicionamento da corte reflete a busca do sistema jurídico chinês por respostas próprias aos desafios da economia digital. Desde a promulgação das diretrizes nacionais sobre inteligência artificial, a China tem procurado equilibrar estímulo à inovação tecnológica e proteção de direitos de propriedade intelectual. A decisão em Li v. Liu insere-se nesse esforço, evidenciando uma postura que reconhece o valor econômico e criativo das produções assistidas por IA, sem abdicar do princípio da intervenção humana.

No plano internacional, o caso dialoga com discussões que ocorrem sob amparo da OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual, da União Europeia e dos Estados Unido, onde refletem abordagens diferentes e em evolução

Embora se discuta propostas de criação de novas categorias jurídicas para obras híbridas, o caso Li v. Liu reforça a ideia de que o modelo clássico de autoria, centrado na intervenção intelectual humana, ainda é capaz de abranger as criações assistidas por IA, interpretação que dialoga com a própria lei de direitos autorais brasileira (lei 9.610/1998).

Lições e paralelos com o marco jurídico brasileiro

A análise do caso chinês permite traçar paralelos com o contexto normativo brasileiro, especialmente no que se refere à lei de direitos autorais (lei 9.610/1998) e à LGPD (lei 3.709/18). Embora a legislação brasileira não trate expressamente das obras produzidas com o auxílio de IA, a ênfase no conceito de "criação do espírito humano" e na "expressão pessoal" como fundamentos da autoria sugere uma convergência interpretativa com o entendimento adotado pelo tribunal de Pequim.

Além disso, o caso suscita reflexões sobre o uso de dados pessoais e informações disponíveis em bases digitais para o treinamento de modelos generativos, tema central da LGPD. A lei brasileira impõe princípios de transparência, finalidade e consentimento, o que abre espaço para debates sobre eventual violação de direitos de titulares de dados utilizados em sistemas de IA. A ausência de regulamentação específica para o treinamento de modelos de linguagem ou imagem no Brasil reforça a relevância da decisão chinesa como referência comparativa.

Desafios futuros

O julgamento do caso Li v. Liu demonstra que o direito chinês busca adaptar-se a um cenário tecnológico em rápida transformação, sem romper com os fundamentos clássicos da proteção autoral. Ainda que a decisão tenha se limitado ao reconhecimento da intervenção humana como condição para a titularidade, ela inaugura uma trilha interpretativa que poderá influenciar a construção de novas doutrinas sobre autoria, originalidade e responsabilidade no contexto da IA.

Para países como o Brasil, que enfrentam dilemas semelhantes, o precedente chinês evidencia a urgência de um debate institucional mais amplo, capaz de integrar as dimensões autoral, ética e de proteção de dados em um mesmo horizonte normativo. A harmonização entre inovação tecnológica e segurança jurídica permanece como um dos maiores desafios do século XXI.

Em síntese, o caso reafirma que a inteligência artificial, embora revolucione a forma de criar, não dissolve a centralidade da autoria humana. A decisão projeta um modelo de coexistência entre tecnologia e direito, em que a criatividade assistida pela máquina é reconhecida sem comprometer a estrutura jurídica da responsabilidade e da titularidade.

Nesse sentido, a experiência chinesa além de oferecer um precedente jurídico, também é um convite à reflexão global sobre os caminhos possíveis da regulação autoral na era da inteligência artificial.

Thomas Law

Thomas Law

Advogado especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Direito das Relações Internacionais Econômicas e doutor em Direito Comercial. É presidente da CNRBC (OAB Federal), do Ibrachina e do IBCJ, além de vice-presidente do CEDES e de comissões da OAB/SP. Também atua como pesquisador, professor, palestrante e autor. Fundador do Ibrawork.

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