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IA no sistema bancário: Inovação de crédito e o dever de transparência

Regulação e responsabilidade jurídica no uso da inteligência artificial pelo setor financeiro.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Atualizado às 09:16

Regulação e responsabilidade jurídica no uso da inteligência artificial pelo setor financeiro

O sistema bancário brasileiro figura entre os mais avançados do mundo no uso de IA - Inteligência Artificial. Essa tecnologia está presente desde o atendimento automatizado até os mecanismos de análise e concessão de crédito, transformando a forma como instituições financeiras avaliam riscos e concedem empréstimos.

Contudo, a mesma inovação que impulsiona eficiência e inclusão financeira também cria novos desafios jurídicos, éticos e regulatórios. No centro do debate estão a transparência algorítmica, a responsabilidade civil e a proteção de dados pessoais pilares fundamentais para equilibrar o avanço tecnológico com os direitos do consumidor.

A tramitação do PL 2.338/23, que institui o marco legal da inteligência artificial, reforça a urgência em estabelecer uma regulação que classifique riscos e proteja direitos fundamentais. Para o setor financeiro, que lida com dados sensíveis e decisões de alto impacto social, a conformidade não é apenas uma exigência legal é uma estratégia de reputação e confiança.

1. A responsabilidade civil por decisões automatizadas de crédito

Os sistemas de IA operam com base em big data, processando milhares de variáveis para gerar um score de crédito. Esse mecanismo, embora eficiente, funciona como um "árbitro invisível" capaz de determinar quem tem acesso ao crédito e quem fica à margem do sistema.

Aqui surge o dilema jurídico central: quem responde por decisões automatizadas injustas ou discriminatórias?

No Direito Civil tradicional, a responsabilidade é construída sobre a noção de culpa ou risco. No caso bancário, prevalece a teoria do risco da atividade, segundo a qual as instituições financeiras, por exercerem uma atividade intrinsecamente arriscada, devem responder objetivamente por danos decorrentes do uso de sistemas automatizados (art. 927, parágrafo único, do CC).

Dessa forma, erros algorítmicos, negativas indevidas de crédito ou vieses discriminatórios não podem ser tratados como "falhas técnicas", mas sim como riscos assumidos pela instituição que se beneficia economicamente da tecnologia.

2. Accountability algorítmica e o dever de transparência

A opacidade dos algoritmos o chamado black box problem desafia os fundamentos da responsabilidade e da confiança. O consumidor tem o direito de saber por que seu crédito foi negado ou aprovado.

Dois conceitos jurídicos e regulatórios emergem como essenciais:

Accountability algorítmica (responsabilização): impõe aos bancos a obrigação de manter governança, rastreabilidade e auditoria contínua sobre os sistemas de IA utilizados. O banco deve demonstrar que o modelo foi testado, é justo e não produz discriminação sistêmica.

Transparência e explicabilidade: reforçada pelo art. 20 da LGPD, que assegura ao titular o direito de solicitar revisão de decisões tomadas exclusivamente com base em tratamento automatizado. Assim, a instituição financeira deve ser capaz de explicar a lógica da decisão algorítmica, oferecendo clareza e reparabilidade.

A transparência é, portanto, o antídoto jurídico da caixa-preta algorítmica.

3. IA e discriminação algorítmica: O risco invisível

Um dos riscos mais sensíveis é a discriminação algorítmica. Se os dados históricos utilizados no treinamento dos modelos refletem preconceitos sociais, a IA tende a reproduzir e até amplificar tais vieses.

Casos emblemáticos no exterior mostram que fatores como endereço, gênero, cor ou histórico econômico de regiões inteiras podem influenciar decisões automatizadas de forma injusta. No Brasil, esse fenômeno viola diretamente o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o objetivo da construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, III, da CF).

Cabe ao regulador e às próprias instituições financeiras implementar critérios de equidade e testes de impacto algorítmico, garantindo que as decisões automatizadas respeitem os direitos fundamentais e não reforcem desigualdades históricas.

4. O papel da regulação setorial: Banco Central e ANPD

A FEBRABAN manifestou apoio à abordagem setorial prevista no substitutivo do PL 2.338/23, reconhecendo a importância de uma regulação técnica conduzida por autoridades especializadas.

BC - Banco Central do Brasil: responsável por assegurar a estabilidade e segurança do sistema financeiro. Sua atuação deve incluir normas de governança de dados, mitigação de riscos e certificação de sistemas de IA aplicados ao crédito.

ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados: guardiã da LGPD, cabe à ANPD fiscalizar o uso de dados pessoais nos algoritmos e garantir o cumprimento dos princípios de transparência, minimização e finalidade. Também deve impor sanções em casos de violação de direitos de titulares.

A coordenação entre BC e ANPD é o alicerce de uma regulação equilibrada capaz de promover inovação sem abrir mão da segurança jurídica e da proteção do consumidor.

5. Perspectivas futuras: O equilíbrio entre inovação e proteção

O marco legal da IA inaugura uma nova era de governança tecnológica.

Mas a regulação, por si só, não é suficiente. O futuro da IA no sistema bancário depende de uma arquitetura regulatória híbrida, composta por três camadas:

Regulação ex ante: certificação, auditoria e classificação prévia de risco dos sistemas de IA antes de sua aplicação no mercado.

Regulação ex post: responsabilização objetiva e reparação dos danos causados por decisões automatizadas.

Soft law: códigos de ética, diretrizes de boas práticas e autorregulação setorial com foco em ética, segurança e direitos humanos.

Somente com essa abordagem tripla legal, regulatória e ética será possível garantir que a IA continue sendo um vetor de eficiência e inclusão, e não um instrumento de exclusão ou injustiça.

Conclusão

A inteligência artificial é a espinha dorsal da transformação digital no sistema financeiro. Contudo, sua consolidação exige mais do que investimento tecnológico: requer maturidade jurídica, governança de dados e transparência institucional.

O equilíbrio entre inovação e proteção de direitos é o verdadeiro diferencial competitivo das instituições financeiras do futuro.

Em um cenário em que dados são o novo ativo estratégico, a confiança será o maior capital de um banco e a compliance digital, sua nova moeda de credibilidade.

Wendrill Fabiano Cassol

VIP Wendrill Fabiano Cassol

Especialista em Direito Bancário e do Consumidor | CEO no Wendrill Cassol Advogados | Mentor de Advogados.

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