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Debêntures e infraestrutura digital: O financiamento dos data centers

O artigo analisa o enquadramento de data centers como infraestrutura apta a captar recursos via debêntures incentivadas.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Atualizado às 10:09

"Não é possível desenvolver um país sem desenvolver o seu mercado de capitais.

Qualquer indústria precisa de financiamento, de capitalização, que é o motor principal de qualquer atividade empresarial."

Benedicto Ferrin de Barros, Histórias do Mercado de Capitais no Brasil, org. Simone Azevedo, Elsevier, p. 2.

1. Introdução

A IA - inteligência artificial tornou-se um tema onipresente. Em meio a descobertas diárias e previsões apocalípticas sobre empregos e automação, o que se perde de vista é que o avanço da IA depende de uma base material complexa: os data centers.

Essas estruturas converteram-se na espinha dorsal da economia da informação. Cabos, fibras ópticas, servidores e instalações de armazenamento e processamento de dados são hoje tão essenciais à soberania de um país quanto suas rodovias, portos e linhas de transmissão.

O desafio está em financiar essa infraestrutura. A construção de um único data center hyperscale demanda investimentos bilionários. Este artigo examina como os mecanismos previstos nas leis 12.431/11 e 14.801/24, que disciplinam, respectivamente, as debêntures incentivadas e as debêntures de infraestrutura, podem ser aplicados a esse novo paradigma de ativos estratégicos, à luz também da MP 1.318/25, que instituiu o ReData - Regime Especial de Tributação para Serviços de Data Center.

Mais do que um tema setorial, trata-se de compreender como o mercado de capitais pode se tornar vetor de soberania tecnológica, canalizando poupança privada para infraestrutura crítica, não apenas física, mas digital.

2. Evolução normativa das debêntures e o deslocamento do crédito público

A trajetória das debêntures no Brasil reflete o amadurecimento institucional do mercado de capitais e a gradual substituição do crédito estatal por instrumentos de funding privado. Em estudo pioneiro da ANDIMA, recorda-se que a debênture, originária do direito inglês (written acknowledgment of debt), foi adaptada ao ordenamento brasileiro como título representativo de promessa de pagamento emitido por sociedades por ações.

Durante décadas, o financiamento de longo prazo esteve concentrado no BNDES, que exercia funções de alocação de capital e subsídio implícito. O Plano Real e a estabilização macroeconômica dos anos 1990 criaram condições para a emergência de um mercado de capitais mais profundo, e o crédito público cedeu espaço ao private funding no financiamento da infraestrutura.

A lei 12.431/11 representou o marco inicial dessa transição, ao instituir o regime das debêntures incentivadas: valores mobiliários vinculados a projetos de infraestrutura considerados prioritários pelo Poder Executivo. O incentivo fiscal, ao desonerar o investidor pessoa física e reduzir a alíquota para estrangeiros, buscava ampliar a base de investidores e reduzir o custo de capital.

Com a lei 14.801/24, o foco deslocou-se do investidor para o emissor. Seu art. 6º permite a dedução integral dos juros pagos aos investidores da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, além da exclusão de 30% desses valores do lucro real e da base de cálculo da contribuição social. Ao internalizar o benefício fiscal na estrutura do projeto, a lei fortaleceu o emissor e reduziu o custo global de capital, incentivando o investimento produtivo.

O decreto 11.964/24 regulamentou a matéria, definindo em seu art. 4º os setores elegíveis: logística e transporte, mobilidade urbana, energia elétrica e fontes renováveis, telecomunicações, saneamento, irrigação e segurança hídrica. O art. 7º, §1º, por sua vez, autoriza portarias interministeriais a ampliar esse rol, abrindo espaço normativo para o reconhecimento de novas modalidades de infraestrutura, como a digital.

Essa coexistência entre as leis 12.431/11 e 14.801/24, somada aos instrumentos previstos em FIDCs - fundos de investimento em direitos creditórios e CRIs - certificados de recebíveis imobiliários, cria um ecossistema de funding de longo prazo que articula emissões privadas, incentivos fiscais e políticas públicas de investimento.

3. A infraestrutura digital como paradigma emergente

O conceito de infraestrutura evoluiu. Se antes o desenvolvimento econômico estava associado a rodovias, portos e energia, hoje depende também da infraestrutura digital: data centers, redes ópticas, cabos submarinos e sistemas de computação em nuvem formam a base física da inteligência artificial.

De acordo com o relatório Data Centers 2025, da Hogan Lovells5, o investimento global em data centers atingiu US$ 54 bilhões apenas no primeiro semestre de 2024, crescimento de 185% em relação ao ano anterior. O consumo energético associado à operação de IA já alcança 4,5 GW, com projeção de 18,7 GW até 2028, o que evidencia a magnitude da demanda energética desses empreendimentos.

No Brasil, a capacidade instalada situa-se entre 700 MW e 826 MW6 (a maior da América Latina), com concentração na região Sudeste. Conforme o GRI Conference Spotlight - Data Center 2025, o país figura entre os três principais polos emergentes de infraestrutura digital global, com mais de 20 GW em pedidos de conexão e potencial de R$ 2 trilhões em investimentos até 2030.

O avanço, contudo, impõe desafios jurídicos e ambientais significativos: licenciamento ambiental complexo, demanda intensiva por energia e água e necessidade de compliance ESG rigoroso. Como se observa em estudo anterior do autor8, "as diligências jurídicas e técnicas para aquisição dos terrenos onde essas estruturas serão construídas devem abordar aspectos bastante específicos: proximidade de suprimento abundante de água e infraestrutura de energia e telecomunicações, licenciamento ambiental potencialmente mais complexo, compliance ESG mais sofisticado e zoneamento adequado."

A PNDC - Política Nacional de Data Centers e o ReData, criados pela MP 1.318/25, buscam mitigar esses entraves, ao conceder isenções de II, IPI, PIS e Cofins para equipamentos de alta eficiência energética, condicionadas ao uso de energia limpa e critérios de sustentabilidade. Essa convergência de incentivos sinaliza o reconhecimento do setor como vetor estratégico de soberania tecnológica.

4. Elegibilidade dos data centers como projetos prioritários

Embora os data centers ainda não constem nominalmente no rol do art. 4º do decreto 11.964/24, o inciso IV, ao incluir o setor de telecomunicações, fornece base interpretativa suficiente para seu enquadramento como infraestrutura de suporte à conectividade e à inovação tecnológica.

A resolução Anatel 780/25 reforçou esse entendimento ao reconhecer expressamente os data centers como parte integrante da infraestrutura de telecomunicações, equiparando-os às redes de suporte e interconexão. A referida Resolução estabeleceu que sua implantação e operação dependem de homologação prévia pela Anatel, confirmando o caráter regulado e a natureza essencial dessas instalações.

Além disso, o art. 7º do decreto 11.964/24 incluiu explicitamente projetos de PD&I - pesquisa, desenvolvimento e inovação, o que permite a qualificação de data centers de alta eficiência energética (integrados a smart gridsedge computing e cloud computing) como projetos de infraestrutura tecnológica inovadora.

Em termos regulatórios, a distinção entre infraestrutura de telecomunicações e serviço de valor adicionado, estabelecida no art. 61 da lei 9.472/1997, é decisiva: a primeira compreende as redes físicas e lógicas que viabilizam a transmissão de dados; a segunda, as atividades que apenas utilizam essas redes, agregando utilidades. Assim, apenas os data centers que atuam como nós de interconexão ou de roteamento de tráfego de terceiros enquadram-se como infraestrutura prioritária.

Por se tratar de incentivo fiscal, a melhor técnica hermenêutica recomenda uma interpretação restritiva das hipóteses de enquadramento. O reconhecimento de determinado empreendimento como infraestrutura prioritária deve observar não apenas o setor econômico a que pertence, mas sobretudo a função pública e a essencialidade da atividade desempenhada, em conformidade com os parâmetros definidos nas portarias interministeriais e na própria lei de regência. Assim, a extensão dos benefícios a data centers deve limitar-se àqueles que efetivamente desempenhem papel estrutural na rede de comunicações, isto é, que operem como infraestrutura crítica de interconexão, e não meramente como prestadores de serviços de valor adicionado.

5. Estruturação financeira e modelagem contratual

Mesmo antes da consolidação normativa, data centers podem ser financiados por debêntures convencionais, estruturadas, por exemplo, sob a lógica do project finance.

O pacote de garantias típico dessas operações compreende a cessão fiduciária dos recebíveis gerados pelos contratos de colocation e conectividade, o penhor das ações da SPE - sociedade de propósito específico titular do ativo, a constituição de contas vinculadas (escrow accounts) com regras contratuais de destinação de fluxos de caixa (waterfall) e a outorga de step-in rights ao agente fiduciário, de modo a lhe permitir intervir na operação do projeto em caso de inadimplemento relevante.

Essa arquitetura de garantias expressa a lógica própria do non-recourse financing, em que o serviço da dívida é sustentado primordialmente pelo fluxo de caixa do próprio projeto, e não pelo balanço do patrocinador (sponsor). A segregação patrimonial e contratual da SPE confere autonomia financeira ao empreendimento, isolando o risco corporativo do investidor estratégico e permitindo que os títulos emitidos sejam lastreados na performance do ativo subjacente.

Nos projetos em que há fornecimento energético dedicado, os contratos de PPA - Power Purchase Agreement, usualmente de longo prazo e vinculados a fontes renováveis, funcionam como alicerce econômico da estrutura, assegurando previsibilidade de custos e estabilidade na matriz energética.

A esses instrumentos somam-se contratos de O&M - Operation & Maintenance, que disciplinam níveis de serviço e indicadores de desempenho (SLAs - Service Level Agreements  e KPIs - Key Performance Indicators), configurando uma matriz de alocação de riscos que reduz a exposição operacional e reforça a atratividade financeira da emissão.

Quando emitidas sob o rótulo de green bonds ou sustainability-linked bonds, as debêntures incorporam métricas ambientais e de eficiência, como o PUE - Power Usage Effectiveness e o WUE - Water Usage Effectiveness, ao próprio desenho financeiro do título, conforme diretrizes da ICMA e da ANBIMA.

A estrutura pode prever mecanismos de incentivo e correção, como step-upstep-downcash sweep e covenants ESG auditados por parecer independente. Ao articular finanças, desempenho ambiental e governança contratual, o modelo revela como o mercado de capitais pode ser instrumento de disciplina regulatória, e não apenas de captação de recursos.

No plano regulatório, a resolução CVM 175/23 consolidou o regime jurídico dos fundos de investimento, incluindo os FI-Infra, e reforçou padrões de transparência e sustentabilidade, fortalecendo a integridade do ecossistema de financiamento de infraestrutura.

6. Conclusão

O mercado de capitais não é um fim em si, mas um meio de desenvolvimento. Sua função estruturante está em canalizar poupança privada para investimentos produtivos, reduzindo a dependência do crédito público e promovendo eficiência alocativa.

Reconhecer a infraestrutura digital como projeto prioritário é reconhecer que a soberania contemporânea é, antes de tudo, informacional, e que a base física do dado pode ser tão estratégica quanto o petróleo foi no século XX.

Se bem articuladas, as leis 12.431/11 e 14.801/24, o decreto 11.964/24 e a MP 1.318/25, podem vir a culminar em portaria interministerial que consolide o enquadramento da infraestrutura digital como prioritária. Essa harmonização trará previsibilidade regulatória, segurança jurídica e atratividade ao capital privado, permitindo que o Brasil dispute a vanguarda regional em infraestrutura tecnológica.

Uma vez implementado com coerência técnica e coordenação institucional, o regime de debêntures incentivadas e de infraestrutura aplicadas a data centers poderá inaugurar um novo ciclo de investimento inteligente, um ciclo em que sustentabilidade, tecnologia e mercado de capitais caminhem integrados.

Como advertia Benedicto Ferrin de Barros, "qualquer indústria precisa de financiamento, capitalização, que é o motor principal de qualquer atividade empresarial." Aplicado à era digital, esse princípio resume o desafio do nosso tempo: transformar capital financeiro em infraestrutura de futuro.

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Notas

ANDIMA - Debêntures: Histórico e Perspectivas do Mercado Brasileiro. Rio de Janeiro, 2008.

Lei nº 12.431, de 24 de junho de 2011.

Lei nº 14.801, de 9 de janeiro de 2024.

Decreto nº 11.964, de 22 de abril de 2024.

Hogan Lovells. Data Centers 2025. Relatório Setorial, 2024.

GRI. Conference Spotlight - Data Center 2025. Relatório Setorial, 2024.

CONAMA. Resolução nº 01, de 23 de janeiro de 1986.

Menezes, Farley. "Data Centers: Seus Desafios e Oportunidades". Migalhas, 2024.

Medida Provisória nº 1.318, de 1º de agosto de 2025.

Anatel. Resolução nº 780, de 1º de agosto de 2025.

Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997.

CVM. Resolução nº 175, de 23 de dezembro de 2022.

ANBIMA. Código de Sustentabilidade, 2023.

ICMA - Green Bond Principles, 2021.

Farley Menezes

VIP Farley Menezes

Sócio fundador da M2 LAW. Atuação em Mercado de Capitais, M&A | Financiamentos Estruturados, Fundos de Investimento, Reestruturações de Dívida e Contratos Empresariais | Transações Imobiliárias

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