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A regra da conversão proibida

Quando a interpretação ultrapassa seus limites e se converte em violação manifesta de norma jurídica: o campo legítimo da ação rescisória.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Atualizado às 15:12

A publicação deste artigo deve-se ao fato de que poucos institutos do processo civil despertam tanto receio nos operadores do Direito quanto a ação rescisória. A esse motivo somaram-se dois outros: primeiro, o contato frequente que tive com ações rescisórias desde o início da minha carreira, quando, ainda no segundo semestre da Faculdade de Direito da UFRGS, iniciei como estagiário em gabinete de desembargador do TJ/RS1; e, segundo, uma convicção teórica que tenho por consolidada: a coisa julgada, a segurança jurídica e a legalidade constituem os três pilares que estruturam o Estado Democrático de Direito. Em meu primeiro livro2, dediquei atenção a alguns desses temas, deixando claro que a minha posição é a de um defensor da coisa julgada.

É a partir dessa convicção que decidi compartilhar as reflexões a seguir - as quais serão aprofundadas em meu próximo livro - e que tratam da hipótese mais frequentemente invocada como fundamento para a ação rescisória: a violação manifesta à norma jurídica, prevista no inciso V do art. 966 do CPC. Trata-se de fundamento de estrutura aberta, que autoriza a desconstituição da decisão judicial que contrarie, de modo frontal e inequívoco, o ordenamento jurídico.

A doutrina3 e a jurisprudência4 convergem no sentido de que o mero erro de interpretação não autoriza a propositura de ação rescisória. Exige-se uma violação direta e objetiva, que se traduza na recusa inequívoca do conteúdo prescritivo da norma. A violação manifesta da norma jurídica caracteriza-se, portanto, pela negação direta de seu comando, não se confundindo com a divergência interpretativa quanto ao seu alcance.

Costumo afirmar que uma metáfora de simplicidade eloquente permite compreender essa diferença: se a norma estabelece que determinada conversão deve ocorrer à esquerda, a uma distância de cem metros, e o condutor (julgador), desconsiderando por completo essa prescrição, admite qualquer conversão, em qualquer ponto e direção - exceto aquela à esquerda e a cem metros -, não se está diante de uma interpretação possível, mas de contrariedade evidente ao comando normativo.

Em tais casos, não há interpretação razoável, mas afronta manifesta ao dever de conformidade à norma, cuja constatação não apenas autoriza, como impõe a utilização da ação rescisória. Para essas situações, a ação rescisória não serve à revisão da Justiça ou injustiça da decisão, mas à preservação da coerência do Direito enquanto sistema dotado de racionalidade interna.

Há, outrossim, casos ainda mais graves, ilustrados por uma metáfora complementar: a norma estabelece que o condutor (o julgador) pode realizar qualquer conversão, exceto à esquerda e a uma distância de cem metros. O julgador, todavia, ignora inteiramente essa proibição, e realiza precisamente a conversão vedada - à esquerda, no ponto exato em que a norma a proibia. Também aqui não há espaço para interpretação possível ou razoável: o que se tem novamente é afronta direta ao dever de conformidade normativa, cuja verificação impõe o ajuizamento da ação rescisória, como instrumento de preservação da integridade do sistema jurídico.

Em ambas as metáforas, o que se tutela não é o resultado do julgamento, nem a justiça ou a injustiça da decisão, mas a coerência e a racionalidade do Direito. Com efeito, a autoridade da coisa julgada não pode se converter em instrumento para legitimar a negação direta do conteúdo prescritivo da norma, sob pena de ruptura do próprio conceito de juridicidade.

Um acórdão recente demonstra a distinção acima apresentada. Por ocasião do julgamento da ação rescisória 5100790-23.2025.8.21.7000[5], o TJ/RS julgou procedente o pedido formulado pela parte autora, reconhecendo a violação manifesta aos arts. 141 e 492 do CPC. Para alcançar essa conclusão, o TJ/RS observou que o autor da ação originária havia formulado pedido de concessão de benefício por incapacidade a partir de 18/6/21.

O acórdão rescindendo, todavia, determinou o pagamento de prestações relativas a período anterior e além daquele postulado (desde 2018), configurando hipótese de decisão ultra petita e, portanto, de afronta direta à norma que limita o poder jurisdicional. Ora, o acórdão rescindendo concedeu mais do que foi postulado - e limitado - pela parte autora na petição inicial.

Essa situação enquadra-se tanto na primeira quanto na segunda metáforas acima apresentadas. É que a lei, de um lado, faculta ao julgador três possibilidades: conceder menos do que foi pedido; conceder exatamente o que foi pedido; ou, ainda, rejeitar o pedido; e, de outro lado, veda duas situações específicas: conceder mais, ou algo diverso do que foi postulado.

O julgador, contudo, no paradigma acima referido, desconsiderou deliberadamente a determinação normativa e adotou precisamente uma das vias que não era possível: conceder além do que foi pedido. Em tais casos, ocorre violação manifesta à norma jurídica, a qual impõe a desconstituição da coisa julgada, conforme reconhecido pelo TJ/RS.

Situação de natureza análoga - ainda que em sentido inverso - ocorre nas hipóteses em que a violação manifesta de norma jurídica não decorre do excesso, mas da negação do conteúdo material e da finalidade do pedido apresentado pela parte autora. É o que se verifica, por exemplo, nos casos em que o vício não reside em ter o julgador concedido mais do que foi pedido, mas em ter interpretado a pretensão deduzida em juízo, assim como as manifestações processuais, de modo a subverter seu conteúdo lógico e sistemático - desconsiderando tanto o objetivo buscado com a propositura da ação, quanto a efetividade da prestação jurisdicional.

Também nesses casos, o desvio interpretativo produz resultado idêntico e de igual gravidade ao da decisão ultra petita: o afastamento deliberado do comando normativo que deveria vincular o julgador. Assim como nas metáforas antes apresentadas, o que se tem, novamente, é outra conversão proibida, igualmente apta a caracterizar violação manifesta de norma jurídica.

Importa compreender que, em todos esses casos, a ação rescisória atua como mecanismo de autodefesa do sistema jurídico, assegurando que a força da coisa julgada jamais se sobreponha à integridade do Direito e se converta em instrumento de negação da racionalidade normativa. Cumpre, por fim, sempre recordar: nem todo equívoco interpretativo autoriza a rescisória - mas toda negação direta do conteúdo prescritivo da norma a impõe, como forma de restaurar o estado de juridicidade.

__________

1 Nesse mesmo gabinete, passei a ocupar a posição de Secretário de Desembargador, após a conclusão do 6º semestre da graduação em Direito da UFRGS.

2 Boettcher, Vitorio Alfaro. Segurança Jurídica, Coisa Julgada e Decisão de Inconstitucionalidade : crítica ao art. 525, § 15, do CPC / Vitorio Alfaro Boettcher - Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2025.

3 Amplamente: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Ação rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

4 Nesse sentido: AR 6.010/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/11/19, DJe 10/12/19; AgInt no REsp 1827076/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/09/2019, DJe 26/09/2019; AgInt na AR 5.022/SC, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 19/3/19.

5 Ação Rescisória 51007902320258217000, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Heleno Tregnago Saraiva, Julgado em: 27/8/25.

Vitorio Boettcher

VIP Vitorio Boettcher

Vitorio Alfaro Boettcher é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), advogado em Porto Alegre, Brasília e São Paulo, e sócio do escritório Ricardo Alfonsin Advogados.

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