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CGU revisa entendimento sobre desconsideração da personalidade jurídica na LAC

Em resposta à consulta técnica da Receita Federal, a CGU publica nota técnica com novo entendimento sobre aplicação de sanções da LAC às pessoas físicas.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Atualizado às 13:37

Em resposta à consulta técnica da Receita Federal, a CGU publica nota técnica com novo entendimento sobre aplicação de sanções da LAC às pessoas físicas.

CGU - Controladoria-Geral da União publicou, em 3/10/25, a nota técnica 3.657/20241 (nota técnica), que apresenta novo entendimento sobre o art. 14 da lei 12.846/132 (lei anticorrupção ou LAC) - dispositivo que trata da desconsideração da personalidade jurídica.

A nota técnica elaborada pela CGU responde a uma consulta da RFB - Receita Federal do Brasil sobre duas questões principais:

(i) se seria possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica quando a empresa, embora criada com fins lícitos, passa a ser usada como escudo para a prática de ilícitos, inclusive mediante contratos simulados; e

(ii) se a mera participação consciente de sócios ou administradores em pagamentos indevidos configuraria abuso de direito suficiente para justificar a desconsideração.

Embora a desconsideração da personalidade jurídica tenha sido abordada pela CGU no Manual de Responsabilização de Entes Privados3, publicado em abril de 2022, para responder aos questionamentos da RFB, a CGU aprofundou a análise dos aspectos dogmáticos do instituto, especialmente quanto ao motivo e a finalidade desse instituto.

Como resultado da reanálise, a CGU reformulou seu próprio entendimento e ampliou a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica para além da hipótese em que se demonstrasse que a empresa tenha sido criada e utilizada exclusivamente para a do ato lesivo.

Neste artigo, analisamos como a mudança interpretativa impõe o desafio de estabelecer novos parâmetros de segurança jurídica, especialmente no que diz respeito à caracterização do chamado "abuso de direito".

A. Interpretação original da CGU sobre desconsideração da personalidade jurídica

Publicado em abril de 2022, o Manual de Responsabilização de Entes Privados consolida os entendimentos da CGU sobre as principais normas vigentes e aplicáveis aos PARs - processos administrativos de responsabilização das empresas à luz da lei anticorrupção.

Embora não tenha caráter normativo ou vinculante, o manual guarda uma importante função orientadora, ao apresentar as diretrizes para os demais órgãos e entidades do Poder Executivo Federal quanto às diretrizes e a aplicação da lei anticorrupção.

No que se refere à desconsideração da personalidade jurídica, a CGU reafirma no manual o entendimento que adotado em PARs: a medida só deve ser aplicada quando "claramente comprovado que a pessoa jurídica foi criada e utilizada pelos sócios para fins da prática de ato lesivo previsto na lei"4(grifo nosso).

A desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 14 da LAC, é uma medida excepcional que permite responsabilizar sócios e administradores quando houver abuso de direito ou confusão patrimonial, especialmente quando a pessoa jurídica é utilizada para encobrir ou facilitar atos ilícitos.

Nesse sentido, o manual orienta que a desconsideração deve ser utilizada como instrumento para "limitar e coibir o uso indevido do benefício atribuído à pessoa jurídica, pois, uma vez configurado seus pressupostos autorizadores, passa-se a responsabilizar os sócios por atos da pessoa jurídica".

Ao explorar as hipóteses de aplicação da medida, a CGU estabelece no manual os seguintes critérios:

(i) a mera insolvência da empresa não justifica a desconsideração;

(ii) seria necessário comprovar que a empresa foi criada e utilizada com finalidade ilícita, desviando-se da sua função social;

(iii) apenas os sócios e/ou administradores que praticam ou se beneficiam dos atos lesivos poderiam ser responsabilizados e

(iv) a aplicação da desconsideração deveria respeitar o contraditório e a ampla defesa.

Por fim, o manual reforça esse entendimento ao analisar as duas principais teorias sobre a desconsideração da personalidade jurídica. A CGU afirma que a LAC adota a teoria maior, segundo a qual não basta a insolvência da empresa: é necessário comprovar desvio de função social ou confusão patrimonial como requisitos para justificar essa medida excepcional.

B. A nova interpretação da CGU sobre desconsideração da personalidade jurídica

Para responder aos questionamentos apresentados pela Receita Federal, a CGU revisitou as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica e estabeleceu novas diretrizes.

A principal mudança de entendimento está na interpretação do art. 14 da lei anticorrupção: a CGU concluiu que não é necessário que a empresa tenha sido criada com o propósito de cometer ilícitos. Basta que sua personalidade jurídica seja utilizada de forma abusiva, mesmo que tenha sido constituída de forma legítima.

Nessa linha, a nota técnica da CGU amplia o entendimento tradicional sobre a desconsideração da personalidade jurídica. A CGU afirma que a medida pode ser aplicada mesmo quando a empresa foi criada com fins lícitos, desde que, com o tempo, passe a funcionar como escudo para práticas ilícitas. Isso pode ocorrer tanto quando a empresa está inativa quanto quando mantém alguma operação, mas é usada de forma predominante ou recorrente para cometer irregularidades.

Segundo a CGU, o abuso de direito pode ocorrer, por exemplo, em casos de "empresas de fachada", sociedades inativas usadas como escudo para ilícitos, ou mesmo entidades que operam habitualmente com finalidade desviada, mantendo aparência de legalidade. Em outras palavras, reproduzindo a analogia traçada pela CGU, a desconsideração será aplicável quando a empresa for usada como uma "ferramenta" para cometer o ilícito.

Na nota técnica, a CGU reconhece que a caracterização do abuso deve ser baseada em evidências concretas e submetida ao contraditório e à ampla defesa. A aferição quanto a pertinência (ou não) da desconsideração caberá à comissão processante (CPAR).

Trata-se, portanto, de uma evolução interpretativa, não necessariamente de uma ruptura, mas que merece ser analisada com atenção e empregada com a devida clareza.

C. Os novos contornos da desconsideração da personalidade jurídica

A nota técnica da CGU analisou dois casos em que se discutiu a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica com base em abuso de direito, mesmo quando a empresa não foi criada exclusivamente para cometer ilícitos. O primeiro envolve uma empresa intermediária no pagamento de propina, por meio de contrato fictício. O segundo trata de uma empresa que realiza diretamente o pagamento da propina, com participação consciente do sócio ou administrador.

No primeiro caso, a CGU entendeu que tanto a empresa intermediária quanto a que efetivamente pagou a vantagem indevida podem ser responsabilizadas, conforme os incisos do art. 5º da lei anticorrupção. A desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada se houver comprovação de abuso de direito, especialmente quando a empresa foi criada para esse fim ou passou a ser usada predominantemente para encobrir atos ilícitos.

Já no segundo caso, a negociação consciente da propina por sócio ou administrador, para a CGU, por si só, não justifica a desconsideração. No entanto, se houver indícios de que a empresa foi criada ou passou a ser usada de forma reiterada para praticar ilícitos ou provocar confusão patrimonial, o abuso de direito poderá ser reconhecido e a medida aplicada.

A CGU também trata da possibilidade de aplicar a desconsideração a empresas criadas com o mesmo objeto social, sócios e endereço de outras já punidas, quando houver indícios de fraude à lei. Embora não haja previsão legal específica, essa prática é respaldada por princípios constitucionais, doutrina e jurisprudência. A desconsideração, por ser medida excepcional e discricionária, exige análise cuidadosa pela comissão processante, com base em evidências concretas e sempre respeitando o contraditório e a ampla defesa.

Por fim, além das hipóteses de aplicação, a CGU também aprofunda a análise sobre quem pode ser atingido pela medida. O art. 14 da LAC prevê que os efeitos das sanções podem ser estendidos a sócios e administradores com poderes de decisão, excluindo, em regra, os sócios minoritários. No entanto, para a CGU a prática revela situações em que sócios minoritários ou terceiros - como "sócios de fato" ou "laranjas" - teriam se beneficiado diretamente dos atos lesivos. Nesses casos, a CGU entende que a responsabilização poderia alcançar inclusive pessoas não formalmente vinculadas à empresa, desde que haja comprovação de abuso ou fraude.

D. Desconsideração, um passo de cada vez

A nota técnica da CGU demonstra o esforço institucional de manter coerência normativa e, ao mesmo tempo, revisar seus próprios entendimentos à luz de novos contextos. Essa abertura interpretativa é bem-vinda, mas exige cautela. Afinal, o fortalecimento da integridade pública depende tanto da firmeza na aplicação da lei anticorrupção quanto da previsibilidade de seus efeitos.

Mais do que ampliar o alcance das sanções, o verdadeiro avanço está em promover práticas corporativas mais responsáveis. A desconsideração da personalidade jurídica, como medida excepcional, deve ser aplicada com base em critérios claros, justificativas consistentes e respeito ao limite entre o abuso de direito e a legítima liberdade de organização empresarial.

Diante da reformulação do entendimento sobre as hipóteses de aplicação da desconsideração, os próximos passos devem envolver a definição de critérios mais objetivos, o aperfeiçoamento dos parâmetros de análise, e o fortalecimento da segurança jurídica. É essencial garantir que a medida seja aplicada com equilíbrio, transparência e respaldo técnico, preservando a confiança dos agentes públicos e privados na atuação da Administração Pública.

________________

1 nota técnica nº 3.657/2024, publicada em 3 de outubro de 2025. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/95704. Acessado em 13/10/2025

2 Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

3 Manual de Responsabilização de Entes Privados da CGU, edição atualizada em março de 2022. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/68182. Acessado em 13/10/2025

4 Manual de Responsabilização de Entes Privados da CGU, pg. 102

Izabela Pacheco Telles

VIP Izabela Pacheco Telles

Pesquisadora de anticorrupção, fraude e investigação interna, atuou mais de uma década como advogada e desde agosto de 2025 assumiu a Coordenação-Geral de Governança, Riscos e Integridade no INSS

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