Novos regramentos do procedimento de investigação criminal
O autor aborda sobre a decisão recente do STF que impôs novas regras no manejo do PIC - procedimento de investigação criminal no âmbito do Ministério Público
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Atualizado às 11:05
1. Introdução
Com a sobrevinda da Constituição Federal de 1988, indiscutivelmente o Ministério Público brasileiro ganhou proeminência como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, deixando de ser mero apêndice do Poder Executivo para ressurgir como verdadeiro agente transformador da ordem social e defensor do Estado Democrático de Direito.
Em razão disso, deram-se novos contornos a algumas funções ministeriais, sobretudo aquelas inseridas na atuação extrajudicial (patrimônio público, meio ambiente, Infância e Juventude, consumidor etc), por intermédio dos inquéritos civis públicos. Inegável que esse novo colorido gerou enorme ganho de eficiência na atuação dos promotores e procuradores e oportunizou à sociedade brasileira uma instituição pujante e comprometida com o bem-estar social.
Já no terreno da persecução penal, o constituinte garantiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, mas sem prever, expressamente, a possibilidade de a instituição presidir investigações criminais. Nada obstante, boa parte da doutrina e a quase totalidade da jurisprudência sempre considerou a atividade investigativa inerente à natureza ministerial e à sua posição como dono da ação penal.
Assim é que sobreveio o Tema 184 do STF, que em repercussão geral assentou, nestes termos:
O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso país, os advogados (lei 8.906/1994, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade - sempre presente no Estado democrático de Direito - do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa Instituição.
E reiteradamente a Excelsa Corte tem afirmado o poder investigatório do Ministério Público1. Todavia, sempre se ressentiu a ausência de regramento transparente e explícito, mormente de origem legislativa, a guiar a guiar o procedimento de investigação criminal, o instrumento ministerial para a tarefa apuratória. Neste artigo trataremos da decisão tomada acerca do assunto pelo STF nas ADIs 2.943, 3.309, 3.318, 3.337, 3.329 e 5.793.
2. A investigação do Ministério Público por meio do PIC
Há mais de 20 anos os tribunais superiores reafirmam o poder investigatório do MP. Por isso, sobretudo a nível estadual, com a instituição dos GAECO - Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, começou-se a gestar o PIC - procedimento de investigação criminal, instaurado mediante portaria, o qual, no início, ainda carecia de regulamentação geral, que nunca veio por atuação legislativa, mas, a princípio, por criação de cada MP (federal e estadual).
Após a criação do CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público, a sua primeira norma regrando o PIC foi a resolução 13/06, que terminou revogada pela resolução 181/17. De partida, esta definiu que o PIC tem como características ser: sumário, desburocratizado, administrativo e investigatório2. Demais disso, consignou que o prazo de conclusão do procedimento seria de 90 dias3, prorrogáveis por manifestação fundamentada do membro do Ministério Público. Por outro lado, a resolução nada dizia acerca da necessidade de registro do PIC perante o Poder Judiciário para fins de supervisão judicial, o que reforçava o seu carácter interno.
Antecedente ao PIC poderá existir a notícia de fato criminal, para que possa o membro ministerial proceder a averiguações preliminares não invasivas e não exaustivas, a fim de colher justa causa para a instauração do procedimento, no prazo de 30 dias prorrogáveis por mais 90 dias. Aliás, são nessas averiguações preliminares que em muitos casos o MP requisita a confecção de RIF - relatório de informação financeira ao COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras, providência que está sob o escrutínio do STF. Defendo que mesmo o STF considerando legal a requisição direta esta se faça dentro do PIC, jamais em mera averiguação preliminar, justamente por ser evidentemente invasiva - e justamente por ser medida invasiva é que deveria ser precedida sempre de autorização judicial.
Por fim, vale ressaltar que em nenhum momento a resolução 181/17 dispôs acerca da subsidiariedade do PIC em relação aos meios de investigação criminal clássicos, como é o caso do inquérito policial. Assim, resultava duvidoso se o Ministério Público poderia investigar todo e qualquer delito, mesmo paralelamente à polícia judiciária.
3. A decisão do STF nas ADIs
Há muito já se reclamava um maior regramento do procedimento de investigação criminal do Ministério Público, a exemplo do que sempre ocorreu com o inquérito policial. De fato, é inconcebível que um instrumento de vulneração dos status dignitatis do cidadão - como o é qualquer investigação criminal - não esteja legal e amplamente delimitado.
Diante da profusão de investigações diretas pelo MP país afora nas últimas décadas, já se fazia necessário - mesmo que ainda insuficiente - o estabelecimento de parâmetros mínimos, que não aqueles nascidos no seio da própria instituição. Como dito, ao contrário do que sempre ocorreu com seu equivalente (o IP), o PIC até então possuía prazos distintos, não corria sob supervisão judicial e poderia ser prorrogado ao bel-prazer do membro ministerial.
Em boa hora, portanto, as delimitações agora impostas pelo STF, que serão melhor esmiuçadas doravante.
3.1 Indevida regulamentação por ato infralegal
Haja vista que somente o Congresso Nacional pode legislar sobre normas processuais penais, sempre gerou estranheza o fato de que o Ministério Público brasileiro regesse o PIC por meio de resoluções, normas sabidamente infralegais. E, pior, fê-lo ao arrepio das regras já instituídas para o inquérito policial. O procedimento investigatório nasce, assim, com irremediável vício normativo, ferindo, a um só tempo, tanto a Constituição quanto o CPP.
Isso porque, como mencionado, as inúmeras resoluções a respeito criaram regras que destoavam daquelas aplicáveis ao inquérito policial, ao menos no que tange a prazos de conclusão, registro e supervisão judicial, prorrogações e forma. Não por outra razão, vozes abalizadas na doutrina há muito lançavam objeções4, e corretamente, uma vez que tais resoluções disciplinavam temas (processuais) que constitucionalmente estão a cargo da União, por meio do Poder Legislativo.
3.2 Procedimento "sumário" e "desburocratizado"?
Não se admite na ordem jurídica brasileira nenhum procedimento persecutório secreto (malgrado possa ser sigiloso em situações expecionais). Outrossim, tampouco se admite procedimento que possa ser tão resumido que impeça ao menos um átimo de defesa; e muito menos se permite um procedimento que não obedeça a formalidades e regramentos mínimos (Art. 9º CPP)5.
Logo, permitir que o PIC possa ser sumário e desburocratizado significa ir de encontro à mais basilar garantia fundamental do processo penal (aqui entendido de modo amplo, englobando-se evidentemente a fase pré-processual), o direito ao exercício de defesa.
Ora, se para a ação penal se reclama justa causa, como pode a fase que a precede ser "sumária"? E se o procedimento investigativo acompanhará a denúncia6, como pode ser ele desburocratizado?
A exaustividade7 da investigação como elucidação correta dos fatos não é só uma garantia para a sociedade atingida pelo desassossego do crime, mas também para o investigado, que nela poderá exercer (ainda que de forma mitigada) alguma defesa, consoante já consagrado na súmula vinculante 14 do STF (É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa). Também por idêntica razão a "burocratização" (aqui entendida como um conjunto de formalidades e documentações, respeitando-se uma ordem cronológica) do procedimento é uma garantia mínima ao exercício de defesa, pois a partir daí o investigado poderá - observando-se a "cadeia de custódia da investigação" - escrutinar a legalidade de todos os atos apuratórios praticados pela autoridade.
Mesmo que se referindo ao inquérito policial, a lição trazida na Exposição de Motivos do CPP é esclarecedora:
É ele [o inquérito policial] uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspecta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.
Não por outro motivo, no julgamento das ADIs mencionadas, o STF assim decidiu:
Os registros, prazos e regramentos previstos para instaurar e concluir inquéritos policiais constituem imposições extensíveis aos PICs. Inexiste, portanto, qualquer autorização da Constituição Federal para a instauração de procedimentos de natureza abreviada, flexível ou excepcional, como as expressões "sumário" e "desburocratizado" parecem sugerir.
Portanto, a burocratização e a exaustividade da investigação são garantias mínimas aos investigados e à sociedade da completa elucidação dos fatos em conformidade com o direito (ainda que mitigado) ao exercício de defesa no âmbito de um procedimento formal e amplamente documentado, que permita à defesa técnica verificar todos os passos da apuração e, consequentemente, sua legalidade.
3.3 Caráter concorrente ou subsidiário do PIC?
Deixo registrada minha posição pessoal, que sustento desde os tempos em que servi ao Ministério Público brasileiro: a de que a investigação de todo e qualquer delito deveria ficar sempre a cargo da instituição, servindo a polícia judiciária como auxiliar ao promotor-investigador na função apuratória. Acredito que, assim, ao menos em tese, o trabalho investigativo ganharia qualidade por ficar a cargo daquele que é o dono da ação penal, ou seja, que tem o poder-dever de dar início à querela criminal, e porque o MP possui uma garantia de que a polícia judiciária não dispõe: a independência funcional, essencial ao bom desenvolver das atividades investigativas.
No entanto, não foi essa a opção do Constituinte de 1988, que deu primordialmente à polícia judiciária (civil e federal) a função de investigar, embora não exclusivamente, razão por que existe uma sólida construção doutrinal e jurisprudencial acerca do poder investigatório do MP. Assim é que, no estado atual de coisas, sustento que o parquet pode investigar, desde que em situações excepcionais que devem se fazer presentes no caso concreto.
A subsidiariedade (ou suplementaridade) da investigação presidida pelo Ministério Público foi ponto de vigoroso debate quando do julgamento do RE 593.727, que deu origem ao mencionado Tema 184 do STF.
A discussão maior dizia respeito a se o MP ficaria responsável pela investigação de todo e qualquer delito ou se a ele caberia investigar apenas aqueles de maior complexidade. Na oportunidade, acabou por prevalecer o entendimento que concedia ao MP a possibilidade de investigar qualquer delito, sem restrições, em carácter concorrente à polícia judiciária.
Não era essa, no entanto, a posição do relator, ministro Cezar Peluso, que aceitava a hipótese de o parquet investigar, cum granus salis. Na ocasião, o e. ministro assim afirmou em seu voto (vencido):
Concedo [...] à luz da vigente ordem jurídica, possa o Ministério Público realizar, diretamente, atividades de investigação da prática de delitos, para fins de preparação e eventual instauração de ação penal, em hipóteses excepcionais e taxativas, desde que se observem certas condições e cautelas tendentes a preservar os direitos e garantias assegurados na cláusula constitucional do justo processo da lei (due process of law), como, aliás, o admitem precedentes da Corte.
Tenho, contudo, com a devida vênia, que tal excepcionalidade exige predefinição de limites estreitos e claros, a começar pela necessidade de que a atuação do Ministério Público se desenvolva e documente em procedimento formal, de regra público e sempre submetido ao controle judicial, nos mesmos termos em que se documentam e desenvolvem os inquéritos policiais.
Note-se que já então o Ministro entendia ser absolutamente imprescindível que a investigação se desenvolvesse mediante procedimento formal documentado, público e submetido a supervisão judicial. O Ministro, além disso, determinava ao PIC as mesmas regras previstas ao inquérito policial, além ainda de delinear as situações excepcionais em que se admitiria a investigação pelo MP.
[...] admito que o Ministério Público promova atividades de investigação de infrações penais, como medida preparatória para instauração de ação penal, desde que o faça nas seguintes condições: 1) mediante procedimento regulado, por analogia, pelas normas que governam o inquérito policial; 2) que, por consequência, o procedimento seja, de regra, público e sempre supervisionado pelo Poder Judiciário; 3) e que tenha por objeto fato ou fatos teoricamente criminosos, praticados por membros ou servidores da própria instituição (a), ou praticados por autoridades ou agentes policiais (b), ou, ainda, praticados por outrem, se, a respeito, a autoridade policial, cientificada, não haja instaurado inquérito policial.
A melhor doutrina também sempre entendeu pelo carácter subsidiário da atuação ministerial na fase pré-processual. O promotor de justiça do MPDFT, Thiago Pierobom de Ávila, desta forma já se manifestava8:
[...] é de se reconhecer a legitimidade da função investigatória direta do Ministério Público. Ela, todavia, será necessariamente suplementar, pois via de regra a Polícia possui melhores condições de conduzir a maioria das investigações diariamente em curso no Brasil, reservando-se para a investigação feita pelo Ministério Público apenas as hipóteses em que uma razão concreta a justificar, a juízo do próprio Ministério Público.
André Luiz Nicolitt, juiz de direito no TJ/RJ, de sua parte consignava que o PIC deveria atender aos requisitos da subsidiariedade e excepcionalidade, na mesma linha do voto exarado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 593.7279.
Na esteira do quanto proposto por Thiago Pierobom10, e adicionando outras situações, comungo da ideia de que nas seguintes situações excepcionais se admitiria a investigação direta pelo Ministério Público: a) ineficiência policial absolutamente demonstrada no caso concreto (seja para iniciar a investigação, seja durante); b) investigado integrante de forças de segurança pública; c) crimes envolvendo organização criminosa; d) crimes contra a Administração Pública; e) investigado membro do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Executivo e do Judiciário, bem como os respectivos servidores; f) casos de urgência, que requeiram a colheita rápida de provas. Como se vê, o leque de possibilidades de atuação do MP é razoavelmente amplo, mas a necessidade deveria vir fundamentada na portaria de instauração do procedimento investigativo.
Contudo, essa posição, ao menos por ora, resultou vencida de acordo com o que ficou decidido no julgamento das ADIs mencionadas pelo STF, o qual decidiu que o MP possui atribuição concorrente com a polícia judiciária para a instauração de procedimento de investigação criminal.
3.4 Prazo para conclusão do PIC e prorrogações
Conforme já dito, o procedimento de investigação criminal jamais foi regulamentado por lei, cabendo então ao CNMP e aos MPs país afora construírem suas próprias resoluções acerca do tema. Praticamente em todas o prazo para conclusão do PIC é (era) de 90 dias, prorrogável por sucessivas vezes o quanto fosse necessário, por obra exclusiva do membro presidente da investigação.
Contudo, a tese estatuída no corpo da ementa do acórdão do julgamento da ADI 2943 é explícita:
[...] a realização de investigações criminais pelo Ministério Público pressupõe (i) comunicação ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição; (ii) observância dos mesmos prazos previstos para conclusão de inquéritos policiais; (iii) necessidade de autorização judicial para eventuais prorrogações de prazo, sendo vedadas renovações desproporcionais ou imotivadas..
Primeiro, a respeito do prazo: a partir dessa decisão do STF todo e qualquer procedimento de investigação criminal do Ministério Público deve ser concluído em 10 dias (investigado preso) ou em 30 dias (investigado solto), aplicando-se por analogia o art. 10 do CPP11. Um trecho do voto do ministro Alexandre de Moraes explicita essa postura:
Convém destacar, ainda, que a investigação promovida pelo Ministério Público na fase pré-processual da persecução penal deve seguir o rito determinado pelo CPP, de modo que não se revela admissível que se prolongue indefinidamente no tempo. Precisamente por essa razão, em observância à razoável duração do processo e o devido processo legal, à semelhança do que ocorre com o inquérito policial, os PIC's - procedimentos de investigação criminal devem ser concluídos em 10 (dez) dias, se o investigado estiver preso, ou 30 (trinta) dias, se o investigado estiver solto - salvo disposição legal específica estabelecendo prazo diverso em legislação penal extravagante. Após esse prazo, deve se proceder ao oferecimento da denúncia ou ao arquivamento do procedimento.
Não resta, portanto, nenhuma dúvida de que aquele prazo outrora fixado em resoluções não tem mais nenhuma validade, e o desrespeito à nova orientação da Suprema Corte deve importar em nulidade dos atos subsequentes, sem necessidade de se perquirir sobre eventual prejuízo ou não à defesa, pois que o descumprimento de mandamento emanado do Tribunal Maior do país acarreta a indiscutível nulidade absoluta dos atos praticados em seu desacordo.
No que toca às prorrogações do prazo para conclusão do PIC, elas evidentemente podem existir. Há investigações tão complexas que se imaginar um exíguo período de 30 dias para finalização seria utópico. Logo, o procedimento pode sofrer prorrogações sucessivas, em princípio, sem recorte temporal (desde que respeitado o princípio da duração razoável da investigação), já que impossível prever o tempo de cada investigação. Mas, essa prorrogação deve ser: a) autorizada judicialmente; b) fundamentada; c) com prazo razoável.
Agora, somente o juiz pode autorizar a prorrogação do PIC, providência que antes ficava ao alvedrio do MP. Ademais, essa autorização deve ser suficientemente motivada, e isso sob dois aspectos: 1º) o juiz precisa dizer por que a prorrogação é necessária; 2º) e o fará com base no pedido ministerial, que igualmente tem de fundamentar seu pedido em razões concretas, apontando a necessidade da prorrogação e as diligências faltantes a serem realizadas. Incabível, pois, que o MP simplesmente diga, por exemplo, que a prorrogação é necessária porque "diligências pendem de conclusão, e são substanciais para o alcance do objetivo da investigação, que se reveste de complexidade...", já que isso não é fundamentar concretamente o pedido. No caso, o órgão ministerial deve descrever as diligências inconclusas, o prazo aproximado de conclusão e, porventura, apontar aquelas que ainda são necessárias.
Por fim, nenhuma prorrogação deve ultrapassar em muito o prazo estabelecido em lei. Se o investigado estiver solto, por exemplo, é desproporcional uma decisão que conceda prazo que supere em três vezes, v.g., aquele assinalado no diploma legal respectivo. O novo prazo concedido deve guardar relação com a necessidade explicitada pelo MP em seu pedido, que deve indicar qual o tempo de conclusão das diligências restantes.
E verificando o magistrado que a investigação se prolonga por demais, afetando a razoabilidade da sua duração, pode, com espeque no art. 3º-B, inciso IX, do CPP12, determinar o trancamento do PIC.
3.5 Requisitos da portaria e formal indiciamento
O procedimento de investigação criminal sempre terá início por intermédio de instauração de portaria. Essa é a determinação que consta no art. 4º da resolução 181/17 do CNMP, in verbis:
Art. 4º O procedimento investigatório criminal será instaurado por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados e deverá conter, sempre que possível, o nome e a qualificação do autor da representação e a determinação das diligências iniciais. (destaquei)
Para além de ser fundamentada, a portaria deverá conter (sempre que possível) o nome e a qualificação do autor da representação. Todavia, a resolução silencia quanto a um aspecto de suma relevância: o nome e a qualificação do(s) suposto(s) autor(es) do fato investigado. Ora, se deve conter a qualificação do representante, sempre que possível, por que não à mesma maneira a qualificação do investigado?
Não é incomum que os PICs sejam instaurados quando já exista algum indício de autoria do suposto fato criminoso, mas um expediente corriqueiro é que não se faça menção ao investigado, fazendo com que toda a investigação caminhe praticamente à clandestinidade, em inegável burla à súmula vinculante 14 do STF. Como não há nenhuma previsão do ato de formal indiciamento no PIC, ocorrem situações em que por meses se investigam pessoas à socapa, com medidas invasivas, inclusive, sem que estas nem sequer possam conhecer a existência da apuração e, por meio de advogado, exercer um direito mínimo de defesa nesse momento pré-processual. Somente tomarão conhecimento de uma investigação contra si quando do cumprimento de mandados de prisão e busca e apreensão.
Diante desse quadro, de duas, uma: ou o nome do investigado já vem lançado na portaria inicial - e, no caso de impossibilidade, no seu aditamento quando já houver indícios de autoria; ou se procede a um ato de indiciamento formal, em analogia ao art. 2º, ¶ 6º, da lei 12.830/13, tal como ocorre no inquérito policial.
O que é inaceitável na atual quadra dos acontecimentos é que pessoas sejam investigadas às ocultas, sem que possam ter acesso (ainda que em parte) aos autos da investigação, que, embora possam correr em sigilo, devem estar à disposição do investigado naquilo que já estiver documentado, em virtude do direito de defesa.
3.6 O dever de registro, o art. 18 do CPP13 e a proibição de dupla persecução
O ne bis in idem, com suas variações terminológicas aqui e acolá14, constitui princípio consagrado nos ordenamentos jurídicos ocidentais, ainda que não expresso em muitas Constituições e diplomas legais, como no caso do Brasil. No entanto, penso que se pode ainda que implicitamente extraí-lo do art. 5º, inciso LIV, da Constituição Nacional15, que estatui a cláusula do devido processo legal. Por outro lado, recolhe-se-o explicitamente do Pacto de San José da Costa Rica (art. 8.4)16, diploma agasalhado pela CF/88. Segundo esse princípio, ninguém poderá ser punido ou processado mais de uma vez pelo mesmo fato17.
Antes da decisão nas ADIs supramencionadas, não havia, gize-se, dever do Ministério Público de comunicar ao juízo competente e proceder ao registro do PIC nesse juízo. O procedimento, assim, caminhava intra muros, apenas no âmbito do órgão ministerial que o presidisse. De modo que, se houvesse um inquérito policial instaurado para a apuração do mesmo fato, o increpado estaria sujeito a duas investigações por instituições distintas, o que causava espécie. No mais, tendo em conta que o PIC não se submetia a nenhuma regra (a não ser aquelas previstas em resoluções), ele poderia ser instaurado mesmo após o arquivamento do IP, se o promotor não concordasse com seu fundamento.
Justamente para se evitar essa dupla persecução é que determinou o STF o registro do procedimento perante o juízo competente. Entendo, por conseguinte, que não se deverá admitir nenhuma investigação em duplicidade; então, deverá o juiz determinar o trancamento da investigação comunicada por último, com fundamento no art. 3º-B, inciso IX, CPP.
Outrossim, não poderá o Ministério Público instaurar o PIC se já houve inquérito policial para apurar o mesmo fato, tendo sido este arquivado, salvo se houver notícias de outras provas, a teor do art. 18 do CPP. Isso porque, conforme decidido pelo Supremo, os regramentos do inquérito policial também se aplicam ao procedimento de investigação criminal.
5. Conclusão
Não foi a minha intenção, neste simples repositório de ideias, esgotar tema tão farto quanto o ora debatido. É certo que novos assuntos irão surgir em torno do procedimento de investigação criminal pelo Ministério Público. Reitero meu pensamento acerca do direito-dever do MP de investigar, entendendo salutar para a pacificação social a presença ativa da instituição na fase pré-processual.
Porém, penso que já era tempo de se imporem certos regramentos à atividade investigativa ministerial, a fim de se prevenirem abusos, que decerto ainda ocorrem. O Ministério Público deve investigar, mas sob regras conhecidas e em conformidade àquelas mesmas previstas para a polícia judiciária. Ora, se esta recebeu - a meu juízo - a primazia da investigação criminal, não há nenhuma razão para que o MP goze de privilégios que a ela não se estendem.
Oportuna, portanto, a decisão do STF nas ADIs 2.943, 3.309, 3.318, 3.337, 3.329 e 5.793, que impôs avanços inegáveis quanto ao regramento do PIC - mesmo na ausência de legislação expressa - a permitir que haja por parte da defesa dos investigados e do Poder Judiciário maior controle da legalidade dos atos investigativos, que antes estavam confinados a um procedimento quase secreto, e diretrizes claras.
Tem-se agora a grata notícia18 que, inclusive, o CNMP já busca reformular a resolução 181/17 a fim de ajustá-la às prescrições da Suprema Corte. O Conselho incorporou todas as determinações assentadas na decisão (como a equiparação dos prazos àqueles previstos ao IP), eliminando toda a normativa que com ela colidisse (como a comunicação de instauração somente interna corporis). A nova resolução também já determinará a aplicação do art. 18 do CPP ao PIC.
Depreende-se, assim, que mesmo o órgão maior do Ministério Público brasileiro já convencido está de que os tempos mudaram, e novos ares estão pairando sobre o procedimento de investigação criminal.
_______
1 STF, ADI 3806.
2 Redação original do Artigo 1º.
3 Redação original do Artigo 13.
4 NICOLITT, André Luiz. PEIXOTO NETO, Adwaldo Lins. Investigação direta pelo Ministério Público: análise quanto as possibilidades para sua realização e dos limites traçados pelo STF no julgamento do RE 593.727/MG. In SIDI, Ricardo. LOPES, Anderson Bezerra [orgs.]. Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. - Belo Horizonte: Editora D`Plácido, 2018, p. 82.
5 CPP, Art. 9º Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.
6 Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.
7 Que nada tem que ver com demora. Mesmo na investigação vigora o princípio da razoável duração do processo.
8 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Investigação criminal: controle externo de direção mediata pelo Ministério Público. - Curitiba: Juruá, 2016, p. 389.
9 Ob. Cit., p. 88.
10 Ob. Cit., p. 389.
11 CPP, Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.
12 Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:
IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;
13 Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.
14 "Double jeopardy", no Direito estadunidense, ou "autrefois rules", no Direito inglês. CRUZ, Rogério Schietti. Proibição da dupla persecução penal. - 2ª ed. - São Paulo: Editora Juspodivm, 2022, p. 25.
15 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
16 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
17 CRUZ, Rogério Schietti. Proibição da dupla persecução penal. - 2ª ed. - São Paulo: Editora Juspodivm, 2022, p. 18.
18 CNMP aprova resolução que adequa normas sobre o Procedimento Investigatório Criminal às decisões do Supremo Tribunal Federal. https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/19014-cnmp-aprova-resolucao-que-adequa-normas-sobre-o-procedimento-investigatorio-criminal-as-decisoes-do-supremo-tribunal-federal. Acessado em 19/11/2025.


