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Antes que vire manchete: Como um canal de denúncias pode evitar a próxima crise

O que é e quais as principais características de um bom canal de denúncias, e como ele integra outros canais de comunicação da empresa.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Atualizado em 21 de novembro de 2025 11:35

Quanto custa o silêncio dentro de uma organização? Em um ambiente em que um post de funcionário viraliza em minutos, um caso de assédio vira hashtag e uma investigação pode derrubar anos de construção de marca, ignorar sinais internos deixou de ser opção. Ao mesmo tempo, a inteligência artificial passou a apoiar a detecção de irregularidades e a análise de grandes volumes de informação, inclusive em canais de denúncias. Denúncias que antes se perdiam em e-mails, hoje podem ser triadas, agrupadas e priorizadas com apoio de IA. Isso amplia a capacidade de reação, mas também cria riscos: se o canal for tratado como simples recurso tecnológico, sem governança, transparência e proteção a pessoas e dados, a combinação de cultura silenciosa com algoritmos opacos pode ser desastrosa.

Na prática, o canal de denúncias é o mecanismo formal e permanente pelo qual colaboradores, terceiros e demais partes interessadas relatam, com segurança, suspeitas de fraudes, assédio, discriminação, corrupção, conflito de interesses, uso indevido de dados pessoais e outras violações. Não é caixinha de reclamações nem espaço informal de desabafo: é um controle de integridade, com regras, prazos, responsáveis, registros e evidências, conectado ao programa de compliance. Existem inclusive normas (como a ISO 37.301 e a ISO 37.002) que definem padrões de qualidade e reforçam que o canal deve ser integrado a código de ética, matriz de riscos, treinamentos, auditorias e monitoramento, operando com imparcialidade, confidencialidade e proteção ao denunciante.

Do ponto de vista de valor, o canal cumpre três funções centrais:

  • Protege a organização e as pessoas, permitindo detectar rapidamente irregularidades antes que virem escândalo ou ações judiciais de alto impacto;
  • Fortalece a reputação perante investidores, clientes e órgãos externos, que buscam evidências de integridade real, e não apenas discursos;
  • Atende a um conjunto crescente de exigências legais, como a lei anticorrupção (12.846/13), a lei 14.457/22 e o decreto 11.129/22, que tratam o canal como elemento-chave do programa de integridade e, em alguns casos, até torna obrigatório o canal para empresas, com foco em assédio sexual e violência no trabalho.

Para sair do papel, o canal precisa de governança clara, proteção real ao denunciante, acessibilidade e processo estruturado, incluindo auditorias próprias para garantir que tudo funciona adequadamente depois de implementado.

Sem processos não há regras, e sem regras, reina o caos e a conveniência. Como a manifestação será tratada, quais são os prazos e como se evitam conflitos de interesse? O processo deve definir isso antes da implementação!

A proteção ao denunciante é decisiva para romper o medo de retaliação: oferecer anonimato como opção, preservar rigorosamente a confidencialidade e punir retaliações de forma exemplar é tão importante quanto investigar o fato denunciado. Acessibilidade significa disponibilizar o canal a empregados, terceiros e demais públicos relevantes, em meios compatíveis com a realidade da organização, com comunicação simples e constante.

Casos como Wells Fargo, "Dieselgate" da Volkswagen e diversos episódios revelados pela Lava Jato mostram que, muitas vezes, havia gente percebendo o problema por dentro, mas sem um canal seguro, independente e confiável para falar, ou sem disposição da organização para escutar.

Ao lado do canal de denúncias, convivem outros canais de escuta. As diferenças e similaridades principais desses canais podem ser resumidas na tabela abaixo:

Canal

Foco principal

Exemplos típicos de uso

Particularidades

Canal de denúncias

Suspeita de irregularidade ética, legal ou de política interna

Fraude, assédio, discriminação, corrupção, conflito de interesses, uso indevido de dados

Exige sigilo elevado, proteção ao denunciante, trilhas de auditoria e investigação formal

SAC

Atendimento de primeira linha ao consumidor

Dúvidas, reclamações simples, elogios, cancelamentos, suporte ao uso de produtos/serviços

Fortemente vinculado ao Código de Defesa do Consumidor e regras de atendimento; alto volume e padronização

Ouvidoria

Segunda instância e visão sistêmica de reclamações e conflitos

Casos não resolvidos em outros canais, mediação com cliente/cidadão, recomendações de melhoria

Regida por normas setoriais, produz relatórios à alta gestão e órgãos de controle

Canal do titular de dados (LGPD)

Exercício de direitos do titular de dados pessoais

Pedidos de acesso, correção, exclusão, portabilidade, revogação de consentimento

Sob responsabilidade do Encarregado/DPO; exige controles de segurança e registro formal

A inteligência artificial entra nesse cenário como ferramenta potente e, ao mesmo tempo, nova fonte de risco. No lado positivo, modelos de processamento de linguagem natural podem ler grandes volumes de relatos, agrupar por tema, identificar indícios de maior gravidade, sugerir prioridades e gerar painéis que revelam padrões de risco. Algoritmos detectam picos anômalos de denúncias em áreas específicas, ajudam a resumir casos complexos para comitês de ética e permitem que assistentes virtuais orientem o denunciante durante o preenchimento, explicando o que pode ser relatado e como funciona o sigilo. Em organizações grandes, isso significa ganhar velocidade e profundidade na capacidade de enxergar o que está acontecendo "embaixo do radar".

Por outro lado, denúncias costumam envolver dados pessoais e sensíveis de denunciantes, denunciados e terceiros. Se as informações forem enviadas a modelos de IA sem governança, podem ser usadas para treinar sistemas externos, circular por ambientes inseguros ou cruzar fronteiras sem salvaguardas adequadas. Modelos enviesados podem subestimar determinados tipos de relato, distorcendo a priorização, ou levar a usos questionáveis, como tentar medir a "credibilidade" do denunciante por padrão de linguagem. Sob a ótica da LGPD, o uso de IA em canais de denúncia exige base legal clara, avaliação de impacto, contratos que limitem rigorosamente o uso de dados por terceiros, controles técnicos de segurança e supervisão humana permanente sobre decisões relevantes.

No fim, a escolha não é entre ter ou não um canal de denúncias, nem entre usar ou não IA. A escolha real é entre um canal com governança, transparência e responsabilidade - que usa a tecnologia para amplificar a escuta e reduzir riscos - e um canal que apenas simula abertura, enquanto acumula problemas silenciosos e dados mal protegidos. Em tempos de prints eternos, investigações midiáticas e algoritmos que expõem incoerências em minutos, a verdadeira vantagem competitiva não está em esconder crises, mas em descobri-las cedo o suficiente para corrigi-las. Um canal de denúncias robusto, protegido, integrado à gestão de riscos e apoiado em inteligência artificial de forma ética é mais do que mecanismo de compliance: é a linha que separa organizações que esperam a próxima manchete negativa estourar daquelas que decidem ouvir, proteger e agir antes que seja tarde demais.

Adilson Taub Junior

Adilson Taub Junior

CEO da Omnisblue e especialista em GRC, Privacidade e IA aplicada. Defensor do uso responsável de IA, lidera adequação à LGPD e compliance no setor público e privado, com 22 anos de experiência em tecnologia aplicada para resultados.

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