MC Pocah, liberdade de expressão e institutos do Direito Administrativo
Episódio envolvendo manifestação de servidor público em face da cantora lança luzes sobre institutos jurídicos relevantes.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:39
Recentemente, foi divulgada notícia segundo a qual a cantora Pocah, anteriormente conhecida como MC Pocahontas, teria sido chamada de "baranga" por um Policial Civil, enquanto caminhava na rua. De acordo com a artista, o fato teria sido gravado por ela e compartilhado em sua rede social.
O episódio suscita discussões relativas à liberdade de expressão de servidores públicos e seus limites, eventuais consequências funcionais decorrentes do poder disciplinar e até mesmo questionamentos relativos à responsabilidade civil do Estado.
Sabe-se que a liberdade de expressão ocupa uma posição de centralidade na Constituição da República de 1988. Tradicionalmente, consiste em direito fundamental que possui estreita relação com o constitucionalismo democrático, na medida em que materializa uma limitação à atuação do Estado frente ao indivíduo.
Apesar disso, não há uma definição clara sobre o que pode, ou não, ser sustentado no âmbito da liberdade de expressão no Brasil, sendo certo que as decisões judiciais sobre o tema são casuísticas. Se, por um lado, o STF já se manifestou no sentido de que os discursos de ódio, opiniões criminosas e atentados contra o Estado Democrático de Direito não estão protegidos sob o manto da liberdade de expressão, há uma zona cinzenta de circunstâncias nas quais não se sabe, previamente, se o discurso está resguardado.
Especificamente no âmbito da Administração Pública, há uma tensão latente entre o exercício da liberdade de expressão de servidores públicos, submetidos à relação especial de sujeição com o Poder Público, e o poder disciplinar, consubstanciado em previsões abstratas de penalidades, que podem ser aplicadas diante da exteriorização de falas e opiniões de servidores.
A insegurança jurídica relativa aos contornos da liberdade de expressão somada à discricionariedade do administrador público para enquadramento da conduta do servidor em determinada falta funcional torna o debate ainda mais complexo. Na prática, as punições disciplinares, tal como ocorre com as decisões judiciais, são ponderadas diante das peculiaridades do caso concreto, o que não permite a previsibilidade de eventual punição disciplinar.
De toda forma, a construção de parâmetros a serem observados para analisar falas, opiniões e manifestações de servidores públicos realça a esfera de proteção da liberdade de expressão de agentes públicos, limita atuações abusivas do Poder Público e permite o prévio conhecimento de situações que poderão culminar na instauração de processo administrativo disciplinar.
Uma diretriz interessante para delimitar a atuação do poder correicional consiste em distinguir as manifestações pessoais do servidor daquelas que poderiam ser confundidas com a posição institucional do órgão. Além disso, parece razoável diferenciar as opiniões divulgadas pelo indivíduo, enquanto sujeito de direitos, daquelas proferidas na condição de agente público. Ainda, é oportuno levar em consideração o contexto da fala, na medida em que opiniões manifestadas na rede social possuem maior alcance quando comparadas com aquelas proferidas fora da internet. No caso noticiado, em que pese a divulgação da ofensa em ambiente virtual, é válido analisar a expectativa de publicidade do agente público.
Sob outra perspectiva, seria possível refletir sobre eventual condenação estatal diante da conduta comissiva praticada por servidor público civil. Para fins de responsabilidade civil objetiva do Estado, é necessário comprovar a conduta do agente público, o dano e o nexo de causalidade entre eles. Ressalta-se que o dano não é elemento que se presume da circunstância.
A partir da teoria da dupla garantia, que impõe o ajuizamento de ação indenizatória em face do Poder Público, o servidor público não é chamado a responder em juízo, no primeiro momento. Se condenado o Estado, e comprovada a conduta dolosa ou culposa do servidor, assegura-se o direito de regresso contra o agente causador do dano, na forma do art. 37, §6º, da Constituição da República.
Contudo, ao analisar a responsabilidade civil do Estado por manifestação de parlamentar, que extrapolou os limites da imunidade material, o STF sedimentou que eventual responsabilização será subjetiva, pessoal, direta e exclusiva do próprio parlamentar. Assim, no Tema 950 da repercussão geral, a Corte entendeu que a hipótese configura excludente de responsabilidade civil objetiva estatal.
Com isso, constata-se que a despeito de parlamentares e servidores públicos classificarem-se como espécies de agentes públicos, responderão de forma distinta diante de conflito que envolva a liberdade de expressão.
Para a circunstância narrada, não há uma resposta prévia, única, delimitada do ordenamento jurídico à situação. Seja nos filmes, nas músicas ou na vida, as manifestações humanas não estão imunes às críticas. O grau de tolerabilidade varia conforme a sociedade na qual se inserem, e, por vezes, é traduzido em leis e princípios. Nisto consiste o típico problema jurídico: enfrentar perguntas para as quais ainda não há resposta.


