Novação ficta: Como a súmula 286/STJ protege o consumidor de abusos bancários
A prática da novação ficta em renegociações bancárias e como a súmula 286/STJ resguarda o direito do consumidor de revisar contratos anteriores diante de abusos estruturais.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Atualizado às 15:03
A prática bancária contemporânea tem se sofisticado em modelos contratuais complexos, estruturados para provocar a sensação de "solução" ao consumidor endividado, quando, na realidade, promovem apenas a perpetuação de encargos abusivos. Uma das técnicas mais recorrentes é rotular renegociações de dívida como "novação", sugerindo ao consumidor que a nova avença extingue integralmente os contratos anteriores, impedindo qualquer revisão judicial.
Essa compreensão, entretanto, não encontra guarida no Direito brasileiro. A jurisprudência pacífica do STJ - consolidada na súmula 286 - estabelece que a renegociação ou a confissão de dívida não impede a revisão dos contratos anteriores.
O presente artigo examina criticamente, sob o prisma do consumidor, a aplicação da súmula 286/STJ, demonstrando por que a simples inserção da expressão "novação" não afasta o direito de revisar contratos bancários pretéritos, sobretudo quando não houver animus novandi ou quando as alterações promovidas forem meramente superficiais.
Vulnerabilidade do consumidor e proteção do CDC
O CDC reconhece, no art. 4º, a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e, no art. 6º, V, assegura a possibilidade de revisão contratual sempre que houver desvantagem exagerada. Já o art. 51, IV e XV, declara nulas cláusulas que impossibilitem o acesso ao Judiciário ou restrinjam direitos básicos, como o controle judicial de abusividades.
O consumidor, conduzido pelas pressões econômicas, "renova" contratos que jamais foram quitados - muitas vezes pagando apenas juros, IOF ou comissões - de modo que não há nova concessão de crédito; não há alteração substancial do objeto da obrigação; não há extinção da obrigação original.
O CDC impõe uma compreensão sistemática dos contratos bancários, reconhecendo a hipossuficiência técnica do consumidor e a assimetria informacional entre as partes. A renegociação que insere artificialmente o termo "novação" cria a falsa percepção de que a revisão dos contratos anteriores estaria vedada - e é exatamente esse expediente ardiloso que o Judiciário deve coibir.
A finalidade da súmula 286/STJ e sua relação com contratos novados
De início, rememora-se que a novação é negócio jurídico consistente na extinção de uma relação obrigacional por meio da constituição de uma nova obrigação. Um dos seus requisitos essenciais é que a nova obrigação tenha um elemento novo em relação à anterior1.
O STJ, ao editar a súmula 286, disciplinou o instituto da novação. O enunciado estabelece que "a renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a discussão sobre eventuais ilegalidades dos ajustes antecedentes".
O precedente sumular foi fundamentado em casos que envolviam dívidas novadas, nos quais o STJ reconheceu que a novação alegada pelas instituições financeiras era meramente formal, desprovida de modificação substancial da obrigação2. Não obstante, tal orientação jurisprudencial tem sido alvo de interpretação divergente por alguns Tribunais.
No entanto, como visto, a revisão contratual é admissível sempre que houver continuidade negocial, inexistência de extinção da obrigação primitiva ou quando o exame da cadeia negocial for imprescindível para apurar as abusividades acumuladas.
Elementos superficiais e elementos substanciais: Distinção fundamental
No julgamento do REsp 921.046/SC, o STJ firmou o entendimento de que modificações como prorrogação do prazo, alteração de juros, supressão ou encurtamento do termo e mudança do local de pagamento são meramente acessórias, insuficientes para configurar o instituto da novação.
Para que a novação seja reconhecida e afaste a incidência da súmula 286/STJ, a renegociação da dívida deve ser substancial e efetiva. Essa alteração deve gerar impacto direto e significativo nos encargos aplicados, como a redução da multa contratual e dos juros incidentes sobre o débito. O ônus da prova dessa alteração substancial recai sobre a instituição financeira, a quem compete demonstrar que o negócio jurídico originário foi extinto, com a consequente superação das cláusulas contratuais abusivas3.
Ou seja, o STJ somente excepciona a aplicação da súmula quando comprovada novação substancial, com concessões recíprocas e ruptura do modelo contratual anterior.
A ausência do animus novandi e a novação ficta
O STJ é categórico ao dispor que a novação não se presume. O simples nomen iuris "contrato de confissão de dívida" não possui o condão de caracterizar a novação. Em regra, tal instrumento representa apenas a quantificação unilateral do saldo devedor, imputando ao consumidor encargos que podem ser ilegais. Ademais, a ausência de animus novandi obsta o reconhecimento do instituto.
Izner Hanna Garcia4 ensina que a novação ficta é prática recorrente: a instituição financeira simula que uma nova obrigação foi criada, mas nada mais faz do que repetir a mesma obrigação inicial, embutindo encargos sucessivos. Nessas hipóteses, não há extinção da obrigação anterior e, portanto, não existe novação válida.
Direitos do consumidor diante da falsa novação
Via de regra, os instrumentos de consolidação da dívida rotulados com a expressão "novação" tratam-se de contratos tipicamente de adesão, contendo cláusulas unilateralmente impostas pela instituição financeira. Em relações contratuais sucessivas, a jurisprudência do STJ e a doutrina convergem para afirmar que o exame de legalidade deve retroagir ao primeiro contrato, uma vez que os efeitos das abusividades pretéritas repercutem diretamente na consolidação final do débito.
Nesse contexto, é incorreto sustentar que a renegociação - mesmo quando rotulada como "novação" - tem o condão de purgar ilegalidades anteriores. Ao contrário, em matéria bancária a renegociação em regra não altera a essência da dívida, limitando-se a reorganizar a forma de pagamento, sem modificar os encargos que compuseram o saldo devedor.
Conclusão
A análise conjunta da jurisprudência e da doutrina evidencia que, no âmbito das operações bancárias, não é a rotulagem contratual que define a existência de novação, mas sim a presença de seus requisitos materiais: extinção efetiva da obrigação anterior, criação de nova obrigação e animus novandi inequívoco. Quando tais elementos não se verificam - como ocorre nas renegociações meramente formais, compostas por alterações acessórias de juros, prazos ou formas de pagamento - a novação resta descaracterizada, tornando-se plenamente aplicável a súmula 286/STJ.
Conclui-se, portanto, que a correta interpretação da súmula 286/STJ reforça o dever do Judiciário de investigar a realidade econômica subjacente às renegociações bancárias, afastar a novação ficta e assegurar que nenhum desequilíbrio contratual seja perpetuado sob o disfarce de uma "dívida nova". Trata-se de medida indispensável à efetividade da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da própria integridade do sistema jurídico de proteção ao consumidor.
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1 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do Direito Civil - Obrigações Vol. 2 - 6ª Edição 2025. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p.260. ISBN 9788530996598. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530996598/. Acesso em: 04 nov. 2025.
2 REsp n. 132.565/RS, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, DJ: 12/2/2001.
3 AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.173.222/GO, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, Dje: 19/6/2023.
4 GARCIA. Izner Hanna. Ilegalidades nos Contratos Bancários. 3ª edição revista e ampliada, Rio de Janeiro: Aide, 2013.


