A incorporação das "canetas emagrecedoras" no SUS
Urgência em incorporar as "canetas emagrecedoras" ao SUS como caminho de saúde, dignidade e justiça para quem vive com obesidade.
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Atualizado às 11:42
1 Introdução: Da "caneta emagrecedora" à política pública de saúde
A expressão "caneta emagrecedora" ganhou as redes sociais e os consultórios, mas, do ponto de vista técnico, trata-se de análogos do peptídeo semelhante ao glucagon-1 (GLP-1), medicamentos como liraglutida, semaglutida e tirzepatida, inicialmente desenvolvidos para o manejo do diabetes tipo 2 e que se revelaram altamente eficazes no tratamento da obesidade (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a).
A discussão sobre essas drogas não pode permanecer restrita ao marketing, ao consultório privado ou à saúde suplementar. Trata-se de decidir se o SUS continuará oferecendo apenas estratégias tradicionais a milhões de brasileiros com obesidade grave ou se passará a incorporar, de forma responsável, uma tecnologia reconhecida internacionalmente como ferramenta de manejo de uma doença crônica e recidivante (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2024; 2025a).
A publicação, em dezembro de 2025, das primeiras diretrizes globais da OMS sobre o uso de terapias GLP-1 para obesidade em adultos altera o patamar desse debate e torna cada vez mais difícil justificar a ausência completa dessas terapias na política pública brasileira (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a).
2 Obesidade como doença crônica global: Dados que o direito não pode ignorar
De acordo com a OMS, a obesidade hoje afeta mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, com aumento em praticamente todos os países, e esteve associada, em 2024, a cerca de 3,7 milhões de mortes por doenças não transmissíveis, principalmente doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e alguns tipos de câncer (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2024). Estimativas recentes apontam ainda que o custo econômico global da obesidade poderá atingir 3 trilhões de dólares por ano até 2030, podendo chegar a mais de 18 trilhões de dólares em 2060 se medidas robustas não forem implementadas (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2023).
Não se trata, portanto, de um tema meramente estético, mas de um eixo central da carga global de doenças, com enorme impacto na mortalidade, na incapacidade laboral e nos gastos em saúde. No Brasil, a realidade não é diferente: a prevalência de excesso de peso e obesidade cresce de forma acelerada, inclusive entre populações mais pobres, exatamente aquelas que dependem integralmente do SUS, o que amplia a dimensão de inequidade associada à ausência de terapias modernas no sistema público.
3 Diretrizes da OMS sobre GLP-1 e obesidade
Diante desse cenário, a OMS publicou, em dezembro de 2025, sua primeira diretriz global sobre o uso de agonistas do receptor GLP-1 no tratamento da obesidade em adultos, no contexto do Plano de Aceleração para Acabar com a Obesidade (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a; 2025c). A seguir, sintetizam-se alguns elementos centrais do documento.
3.1 Reconhecimento da obesidade como doença crônica e recidivante
A OMS reforça que a obesidade é uma doença crônica, complexa e frequentemente recidivante, que agrava doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e diversos tipos de câncer, piora o prognóstico de doenças infecciosas e exige cuidado contínuo ao longo da vida, e não intervenções pontuais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2024; 2025a).
3.2 Inclusão dos GLP-1 na lista de medicamentos essenciais
Em setembro de 2025, a OMS já havia sinalizado a relevância dessas terapias ao adicionar os agonistas do receptor GLP-1 à sua lista modelo de medicamentos essenciais para o tratamento do diabetes tipo 2 em grupos de alto risco, reconhecendo sua eficácia sustentada na redução da glicemia, o benefício em perda de peso e o potencial de redução de eventos cardiovasculares e renais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025b).
A nova diretriz de dezembro amplia esse raciocínio especificamente para a obesidade em adultos, conferindo recomendações condicionais para o uso das terapias GLP-1 nessa indicação, à luz das evidências disponíveis e das limitações atuais de custo e capacidade dos sistemas de saúde (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a).
3.3 Recomendações centrais: Uso em longo prazo e abordagem combinada
As diretrizes da OMS apresentam duas recomendações condicionais principais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a):
a) Uso de GLP-1 em longo prazo em adultos com obesidade
Os análogos de GLP-1 podem ser prescritos para adultos com obesidade, exceto gestantes, como tratamento de longo prazo, para apoiar o controle de peso e reduzir riscos metabólicos. A recomendação é condicional porque ainda há incertezas relevantes acerca da segurança e eficácia em muito longo prazo, do impacto da interrupção (incluindo o reganho de peso), do custo atual elevado, da capacidade dos sistemas de saúde e das possíveis implicações em termos de equidade de acesso.
b) Combinação com intervenções intensivas de mudança de estilo de vida
A OMS orienta que o tratamento medicamentoso com GLP-1 seja sempre integrado a programas estruturados que incluam alimentação saudável, atividade física regular e suporte multiprofissional. A recomendação se baseia em evidência ainda limitada, mas suficiente para apontar que a combinação tende a gerar melhores desfechos clínicos do que o uso isolado do medicamento (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a).
3.4 Três pilares para enfrentar a obesidade
As diretrizes enfatizam que a luta contra a obesidade não se vence apenas com medicamentos. A OMS organiza sua abordagem em três pilares principais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025c):
- Ambientes mais saudáveis mediante a implementação de políticas populacionais robustas que promovam alimentação adequada, atividade física, regulação da publicidade de alimentos ultraprocessados, entre outras medidas estruturais;
- Proteção de grupos de alto risco com o rastreio direcionado e intervenções estruturadas para indivíduos com maior risco de desenvolver obesidade e suas complicações;
- Cuidado contínuo e centrado na pessoa, mediante a organização de linhas de cuidado, atuação de equipes multiprofissionais e seguimento em longo prazo, com inclusão de terapias farmacológicas baseadas em evidências quando indicado.
Em síntese, as terapias GLP-1 são reconhecidas como opção de tratamento de primeira linha em adultos com obesidade, mas sempre dentro de uma estratégia abrangente e integrada, que não se reduz à "injeção que emagrece".
4 Acesso e equidade: Menos de 10% dos que precisam terão acesso
Um dos pontos mais contundentes das diretrizes e das declarações públicas recentes da OMS é o alerta de que, mesmo com a rápida expansão da produção, estima-se que menos de 10% das pessoas que poderiam se beneficiar das terapias com agonistas de GLP-1 terão acesso a elas até 2030 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025d).
As principais barreiras identificadas são o preço elevado dos medicamentos, a capacidade limitada de produção e distribuição, sistemas de saúde ainda despreparados para organizar linhas de cuidado em obesidade, ausência de políticas específicas de acesso em muitos países de baixa e média renda (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025d).
A OMS adverte que, sem políticas deliberadas de equidade, o acesso a GLP-1 tende a concentrar-se em camadas com maior renda, ampliar desigualdades em saúde, excluir justamente as populações que concentram a maior carga de obesidade e de suas consequências clínicas (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025d).
5 O cenário brasileiro: Conitec e a negativa às "canetas emagrecedoras"
No Brasil, a Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS avaliou, em 2025, a incorporação de semaglutida para tratamento da obesidade grave em adultos (consulta pública 47/25), tendo como público-alvo pacientes com obesidade graus II e III, sem diabetes, a partir de 45 anos, com doença cardiovascular estabelecida (BRASIL, 2025).
Embora o relatório tenha reconhecido a eficácia expressiva na perda de peso, o impacto positivo na redução de eventos cardiovasculares e a custo-efetividade aceitável em determinados cenários, a Conitec recomendou, em agosto de 2025, não incorporar as canetas de semaglutida e liraglutida ao SUS, justificando a decisão principalmente pelo alto impacto orçamentário anual estimado e pelo temor de uso indiscriminado (BRASIL, 2025).
Sociedades médicas brasileiras manifestaram publicamente sua discordância, apontando que tal decisão reforça desigualdades no acesso à terapêutica, mantém pacientes usuários do SUS, frequentemente com obesidade mais grave, excluídos das melhores terapias disponíveis, corre o risco de consolidar as "canetas emagrecedoras" como "tratamento de elite" (BRASIL, 2025).
Em resumo, há um descompasso crescente entre o que a OMS recomenda como abordagem global para uma doença crônica de alto impacto e o que o SUS oferece, na prática, em termos de farmacoterapia moderna para obesidade.
6 Razões para a incorporação das terapias GLP-1 pelo SUS
À luz das diretrizes da OMS e dos princípios constitucionais que regem o SUS, é possível apontar, ao menos, cinco razões centrais para defender a incorporação responsável das terapias GLP-1 pelo sistema público.
6.1 Alinhamento com a melhor evidência científica e com a OMS
A OMS não apenas reconhece a obesidade como doença crônica e recidivante, como também, emite diretrizes específicas que respaldam o uso em longo prazo de GLP-1 em adultos com obesidade (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a), inclui os agonistas do receptor GLP-1 na lista modelo de medicamentos essenciais para o tratamento do diabetes tipo 2 em grupos de alto risco (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025b).
Ignorar integralmente essas orientações, sobretudo para grupos de risco extremo, significa afastar o SUS da melhor prática internacional em saúde pública.
6.2 Princípios de equidade e integralidade no SUS
O art. 196 da Constituição Federal estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). A lei 8.080/1990 reforça os princípios da integralidade e da equidade da atenção (BRASIL, 1990).
Manter as terapias GLP-1 acessíveis quase exclusivamente a usuários da saúde suplementar ou a quem pode pagar do próprio bolso, sistematicamente negadas a pacientes com obesidade grave que dependem do SUS, é incompatível com o princípio da equidade, pois aprofunda desigualdades em uma condição que, no país, atinge de forma desproporcional as camadas mais pobres.
6.3 Racionalidade econômica de médio e longo prazo
A Conitec destaca o alto custo imediato das canetas, estimando impacto orçamentário de bilhões de reais por ano (BRASIL, 2025). Entretanto, ignorar o custo da obesidade não tratada, que se reflete em internações, procedimentos de alta complexidade e benefícios previdenciários e as projeções da OMS quanto ao custo global da obesidade, é adotar uma perspectiva orçamentária excessivamente míope.
Uma incorporação focalizada, por exemplo, em pacientes com obesidade grau III e doença cardiovascular estabelecida, pode gerar a redução de eventos clínicos de alto custo, economia indireta em internações e procedimentos, preservação da capacidade laboral e produtiva desses indivíduos.
6.4 Redução do mercado paralelo e de produtos falsificados
A OMS alerta que a demanda explosiva por agonistas de GLP-1 tem favorecido a circulação de medicamentos falsificados e de qualidade inferior, especialmente quando o acesso regulado é restrito (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025d). No Brasil, a ausência de uma política pública estruturada incentiva a busca por produtos no mercado paralelo, ampliando o risco de que pacientes - sobretudo os mais vulneráveis - consumam medicamentos inseguros.
Esse cenário também expõe médicos e clínicas a esquemas irregulares de prescrição e aquisição, com potenciais repercussões éticas, civis e penais. Uma política de incorporação responsável, com critérios claros de elegibilidade, linhas de cuidado bem definidas e monitoramento de segurança e eficácia, contribui para ordenar o uso e diminuir o espaço para o mercado negro.
6.5 Possibilidade de modelos graduais e sustentáveis de incorporação
As diretrizes da OMS reconhecem que os países precisarão de estratégias de priorização e de mecanismos para ampliar o acesso às terapias GLP-1, como compras conjuntas, preços escalonados, acordos voluntários de licenciamento e negociação com fabricantes (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025c; 2025d).
No contexto do SUS, isso pode significar iniciar a incorporação com subgrupos bem definidos, como obesidade grave associada a cardiopatia, estabelecer PCDT - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas específicos, com critérios de inclusão, manutenção e suspensão do tratamento, vincular parte do pagamento a resultados clínico, revisar periodicamente a política à luz da entrada de genéricos e biossimilares, com consequente redução de preços.
Não se trata, portanto, de uma escolha binária entre "incorporar tudo para todos" ou "não incorporar nada", mas de desenhar modelos inteligentes de incorporação progressiva, que conciliem evidência científica, sustentabilidade e justiça distributiva.
7 Conclusão: Incorporar GLP-1 ao SUS como medida de Justiça sanitária
À luz das novas diretrizes da OMS, da inclusão dos agonistas do receptor GLP-1 na lista modelo de medicamentos essenciais para o diabetes tipo 2 e da gravidade da epidemia de obesidade, a manutenção da negativa absoluta da Conitec deixa de ser apenas uma decisão técnico-administrativa e passa a assumir contornos de verdadeira injustiça sanitária (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025a; 2025b; BRASIL, 2025).
A incorporação das terapias GLP-1 ao SUS, ainda que de forma gradual, com público-alvo prioritariamente de alto risco e acompanhada de protocolos clínicos rigorosos, não é um luxo, tampouco uma capitulação a modismos farmacêuticos. Trata-se de um passo coerente com o reconhecimento da obesidade como doença crônica, a necessidade de reduzir mortalidade e morbidade associadas e os princípios constitucionais de universalidade, integralidade e equidade.
Como sintetizou o diretor-geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, a crise global da obesidade não será resolvida apenas com medicamentos, mas os análogos de GLP-1 podem ajudar milhões de pessoas a controlar a doença e reduzir os danos que ela causa (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2025d).
No contexto brasileiro, isso significa reconhecer que o SUS não pode continuar alheio a essa ferramenta terapêutica. Incorporar as canetas de GLP-1, com responsabilidade e critério, é alinhar o Brasil à melhor evidência científica disponível e aproximar o sistema público de seu compromisso constitucional de não deixar ninguém para trás na luta contra a obesidade.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990.
BRASIL. Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Relatório de recomendação: semaglutida para o tratamento da obesidade em adultos (Consulta Pública nº 47/2025). Brasília, DF: CONITEC, 2025.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Obesity and overweight: key facts. Genebra: OMS, 2024.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. The economic impact of obesity. Genebra: OMS, 2023.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Diretrizes globais sobre o uso de agonistas do receptor GLP-1 para o tratamento da obesidade em adultos. Genebra: OMS, 2025a.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO Model List of Essential Medicines: 2025 update. Genebra: OMS, 2025b.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO Acceleration Plan to Stop Obesity. Genebra: OMS, 2025c.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Expanding access to GLP-1 receptor agonists for obesity and diabetes


