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O custo invisível da má gestão contratual no Brasil

Entenda por que a maior parte das perdas jurídicas e financeiras no Brasil não nasce de cláusulas mal escritas, mas de contratos esquecidos após a assinatura.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Atualizado em 8 de dezembro de 2025 15:26

Em boa parte das empresas brasileiras, o contrato continua sendo tratado como um rito burocrático: redigir, negociar, assinar, arquivar. Quando muito, alguém salva uma versão em PDF em uma pasta compartilhada e considera o assunto encerrado.

Só que é justamente depois da assinatura que o contrato começa a produzir efeitos. É ali que nascem prazos, renovação, reajuste, metas, entregas, multas, obrigações de fazer e de não fazer. E é também ali que, na prática, quase ninguém olha para ele.

Os números ajudam a dimensionar o problema. Em médias e grandes empresas, apenas cerca de 20% dos contratos passam de fato por um advogado. O restante é produzido, adaptado ou renovado diretamente pelas áreas de negócio, compras ou comercial. Some-se a isso o fato de que estimativas de mercado e estudos da PwC indicam que cerca de 50% das disputas empresariais têm origem em falhas de gestão contratual - não em cláusulas mal escritas, mas em contratos mal acompanhados - e começa a ficar claro o tamanho do custo invisível.

Esse custo não aparece no DRE. Não está numa linha do orçamento. Mas atravessa o caixa, a governança e a relação com parceiros todos os dias.

O contrato que some após a assinatura

Na rotina que vejo se repetir em escritórios empresariais e departamentos jurídicos de clientes, o ciclo costuma ser mais ou menos assim: o advogado elabora o contrato, negocia, ajusta detalhes sensíveis, envia para assinatura. A área de negócios comemora o fechamento. Compras ou financeiro recebem uma cópia "para controle". E vida que segue.

A partir daí, tudo o que o contrato previa passa a depender de memória, boa vontade e alguma planilha paralela. A empresa cresce, o volume aumenta, pessoas saem, a pasta da rede muda de lugar. Até que alguém pergunta, meses depois:

"Esse contrato já venceu?"

"Quem autorizou essa renovação automática?"

"Por que não aplicamos o reajuste deste ano?"

E então se descobre que o documento existia, o direito existia, a obrigação existia, faltou apenas gestão.

Retrabalho e litígio: A conta que chega depois

Do ponto de vista econômico, a má gestão contratual aparece em dois lugares óbvios, embora pouco contabilizados: retrabalho e litígios evitáveis.

Retrabalho é o que acontece quando, diante de um problema, ninguém sabe onde está a última versão do contrato, qual aditivo prevalece, que prazo foi pactuado ou quais obrigações foram assumidas.

Advogados experientes passam horas reconstruindo o histórico de um documento que deveria estar organizado: lendo e-mails antigos, pedindo cópias à área de negócios, confrontando versões conflitantes, tentando entender se aquela condição comercial foi de fato formalizada.

Esse esforço raramente vira número. Mas, somado ao longo do ano, representa dezenas ou centenas de horas de trabalho qualificado que poderiam estar sendo usadas em atividades estratégicas e não em "arqueologia contratual".

Já no contencioso, a conta chega em forma de ações que nascem menos de divergências jurídicas e mais de descuido na gestão. Contratos que foram renovados automaticamente sem revisão, cláusulas de desempenho que nunca viraram indicador, prazos descumpridos porque ninguém acompanhou, garantias que expiraram sem acionamento.

Quando o problema aparece, o cliente tende a culpar o contrato e, por tabela, o advogado mesmo quando a origem foi a ausência de método depois da assinatura. Não é à toa que se fala em perdas globais trilionárias associadas à má gestão de contratos. O dinheiro não some de uma vez: evapora em reajustes não aplicados, multas não cobradas, oportunidades desperdiçadas.

Um mercado jurídico maduro tecnicamente, mas instável financeiramente

Há um pano de fundo importante: o próprio mercado jurídico vive uma pressão inédita. O Brasil forma centenas de milhares de novos advogados por ano. A competição aumenta, os honorários são tensionados, o cliente compara, negocia e exige previsibilidade.

Nesse cenário, muitos escritórios empresariais sofrem de uma dor estrutural: faturam, mas não sabem quanto vão faturar no mês seguinte. Vivem de demanda pontual, sem receita recorrente, sem base estável, sem modelo de serviço contínuo. Mesmo quem tem boa carteira sente na pele o efeito de um contrato que não renova, de um cliente que esfria, de uma empresa que leva parte das demandas para outro escritório.

Enquanto isso, permanece intacta uma oportunidade óbvia: a de ajudar esses mesmos clientes a organizar e gerir seus contratos, não apenas a redigi-los. Ou seja, transformar a lacuna de gestão contratual numa linha de serviço recorrente, ancorada em contratos de partido e modelos de acompanhamento contínuo.

O escritório como parte da solução ou como espectador

Quando o advogado empresarial se limita a "entregar o contrato", ele fica de fora da arena em que boa parte do valor é criada (ou destruída): o pós-assinatura.

Ao contrário, quando passa a integrar essa rotina, ajudando a estruturar prazos, controles, indicadores, revisões periódicas, ele:

  • Reduz a probabilidade de conflito;
  • Aumenta a percepção de valor do cliente;
  • Abre espaço para contratos recorrentes baseados em gestão, não apenas em horas;
  • E aproxima o jurídico do centro de decisão do negócio.

Não é um convite para transformar o advogado em gestor de planilhas, mas para reconhecer que gestão contratual é, sim, trabalho jurídico. E ignorar essa dimensão é deixar na mesa tanto receita quanto reputação.

Por onde começar

Não é preciso uma revolução para mudar esse quadro. Antes de plataformas, metodologias e buzzwords, há um movimento simples de diagnóstico.

Algumas perguntas bastam para expor o estado atual das coisas, tanto no cliente quanto no próprio escritório:

  • Quantos contratos relevantes essa empresa tem hoje em vigor?
  • Quantos passam, de fato, por análise jurídica antes da assinatura quantos nascem nas áreas?
  • Quem controla prazos de vencimento, renovações automáticas e reajustes?
  • Quantos litígios recentes poderiam ter sido evitados com um mínimo de acompanhamento?
  • Dentro da carteira atual, quantos clientes teriam disposição para pagar por um modelo de acompanhamento contínuo, e não só por demandas pontuais?

Quando essas perguntas não têm resposta clara, não estamos diante de uma questão meramente operacional. Estamos diante de um problema de modelo de negócio, tanto para a empresa quanto para o escritório.

De custo invisível a oportunidade concreta

A má gestão contratual continuará sendo um custo invisível enquanto for tratada como detalhe administrativo. Mas, justamente por ser invisível, ela também representa uma das maiores oportunidades de reposicionamento para a advocacia empresarial.

Para as empresas, significa transformar contratos em ativos realmente geridos, capazes de reduzir risco e preservar valor. Para os escritórios, significa sair da lógica de "esperar a demanda chegar" e passar a construir relações recorrentes, previsíveis e mais difíceis de serem substituídas.

Em um mercado saturado, com excesso de oferta técnica e escassez de diferenciação, talvez a mudança mais estratégica não esteja em falar de tendências grandiosas, e sim em encarar o óbvio: a forma como tratamos nossos contratos diz muito sobre a forma como gerimos nossos negócios.

Henrique Flôres

Henrique Flôres

Cofundador da Contraktor. Formado em Direito e Sistemas para Internet, especialista em Administração e com MBA em Gestão Estratégica, IA e Marketing.

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