Provisão contábil para passivos de ações judiciais
O artigo analisa a provisão contábil de passivos contingentes judiciais à luz do CPC 25, abordando riscos e métodos de mensuração, reforçando transparência e governança.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:24
A contabilidade, enquanto ferramenta essencial para a gestão das finanças das empresas, é responsável por registrar e controlar todas as transações financeiras que impactam as atividades das organizações. Um dos aspectos mais desafiadores da contabilidade é o tratamento das contingências, especialmente no que diz respeito à provisão contábil para o passivo contingente decorrente de ações judiciais.
Neste artigo, busco explorar aspectos relacionados com os passivos decorrentes de demandas judiciais, falando sobre o conceito de passivo contingente, a maneira como as empresas devem registrar a provisão contábil para tais passivos e a importância desse processo para a transparência financeira e a tomada de decisões.
Para as instituições financeiras, observa-se que a resolução CMN 3.823/09 determina que para toda ação judicial seja constituída, desde a sua propositura, provisão suficiente para o pagamento de condenação futura. Primeiro ponto relevante a ser destacado: a provisão dever ser realizada desde a propositura da ação e não apenas quando há condenação ou outro ato decisório, mas obviamente não é tão simples e direto assim, especialmente num cenário em que muito se fala de "lide predatória", "litigância abusiva1", "litigância predatória"2 ou "advocacia predatória". Deve-se avaliar, como veremos nas linhas seguintes, as probabilidades de êxito da demanda.
A mencionada resolução dispõe sobre procedimentos aplicáveis no reconhecimento, mensuração e divulgação de provisões, contingências passivas e contingências ativas, instrumento jurídico por meio do qual ficou estabelecido que as instituições financeiras devem observar o Pronunciamento Técnico CPC 25, emitido pelo CPC - Comitê de Pronunciamentos Contábeis, no reconhecimento, mensuração e divulgação de provisões, contingências passivas e contingências ativas3.
Caminho semelhante trilhou a CVM - Comissão de Valores Mobiliários com a aprovação da resolução CVM 72/22, ao aprovar a Consolidação do Pronunciamento Técnico CPC 25, do CPC - Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que trata de provisões, passivos contingentes e ativos contingentes, e tornar obrigatória sua observância para as companhias abertas, conforme consolidado no Anexo "A" da mencionada resolução.
O fundamento legal para esse pronunciamento é encontrado no art. 177, §3º da lei das S/A4, que dá respaldo jurídico para sua exigência pelas autoridades de supervisão/regulação, visando à padronização dos procedimentos.
Importa destacar, como consignado no próprio texto do pronunciamento, que seu objetivo é o de "estabelecer que sejam aplicados critérios de reconhecimento e bases de mensuração apropriados a provisões e a passivos e ativos contingentes e que seja divulgada informação suficiente nas notas explicativas para permitir que os usuários entendam a sua natureza, oportunidade e valor", definindo-se "provisão" como passivo de prazo ou valor incertos:
10. Os seguintes termos são usados neste Pronunciamento, com os significados especificados:
Provisão é um passivo de prazo ou de valor incertos.
Passivo é uma obrigação presente da entidade, derivada de eventos já ocorridos, cuja liquidação se espera que resulte em saída de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos.
Passivo contingente é:
(a) uma obrigação possível que resulta de eventos passados e cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência ou não de um ou mais eventos futuros incertos não totalmente sob controle da entidade; ou
(b) uma obrigação presente que resulta de eventos passados, mas que não é reconhecida porque:
(i) não é provável que uma saída de recursos que incorporam benefícios econômicos seja exigida para liquidar a obrigação; ou
(ii) o valor da obrigação não pode ser mensurado com suficiente confiabilidade.
Como se percebe da leitura dos conceitos acima transcritos, todas as provisões são contingentes dado que são, por definição, incertas quanto ao seu prazo ou valor.
O que é passivo contingente?
O passivo contingente é uma obrigação que depende de eventos futuros e incertos, que podem ou não ocorrer. Em termos contábeis, trata-se de uma obrigação potencial que ainda não se concretizou, mas que pode resultar em uma despesa para a empresa caso se concretize. Uma ação ajuizada contra a empresa, por exemplo, pode demandar um desembolso em caso de condenação.
A provisão contábil para passivo contingente
A provisão contábil é um valor registrado nas demonstrações financeiras para cobrir uma obrigação futura provável e mensurável. Quando uma empresa identifica que um passivo contingente é provável e que seu valor pode ser estimado, ela deve reconhecer uma provisão contábil. Este procedimento visa a garantir que a empresa se prepare para possíveis impactos financeiros de eventos imprevistos.
Requisitos para o reconhecimento da provisão
De acordo com as normas contábeis internacionais (IFRS) e as normas brasileiras (CPC 25), uma provisão deve ser registrada quando:
- Existir uma obrigação presente: A empresa deve ter uma obrigação jurídica ou de fato, resultante de eventos passados.
- Probabilidade de saída de recursos: Deve ser provável que a empresa precise usar recursos financeiros para liquidar a obrigação.
- Valor confiável: O valor da obrigação pode ser estimado de maneira confiável.
Caso esses critérios não sejam atendidos, a empresa deve apenas divulgar a contingência nas notas explicativas, exceto as de "risco remoto", como veremos mais à frente.
Cálculo e registro da provisão
O cálculo da provisão depende da natureza do passivo e da estimativa dos custos envolvidos. Em geral, as empresas fazem uma análise detalhada do cenário, levando em consideração os impactos financeiros de uma possível perda. Quando há incerteza sobre o valor, a empresa deve realizar uma estimativa razoável, com base nas informações disponíveis.
Por exemplo, se uma empresa enfrenta um processo judicial e acredita que a probabilidade de perder a causa é alta, ela pode provisionar o valor estimado que teria que pagar como resultado dessa perda.
Portanto, uma forma de classificar os riscos decorrentes de ações judiciais, para a definição de provisionamento ou não, é utilizar uma classificação quanto à sua probabilidade de ocorrência ou materialização, ou seja, quanto à probabilidade de perda da disputa judicial a que se refere. Aqui também não há uma definição impositiva, mas sabe-se que a prática mais comum é a classificação dos riscos em "provável", "possível" e "remoto":
Risco provável: A probabilidade de perder a disputa judicial é maior que a probabilidade de ganhar. Este tipo de risco deve ser provisionado.
Risco possível: A probabilidade de perder a disputa judicial é menor que a probabilidade de ganhar. Este tipo de risco não precisa ser provisionado, mas deve ser destacado em notas explicativas.
Risco remoto: A probabilidade de perder a disputa judicial muito pequena ou praticamente nula. Não há impactos contábeis nessa hipótese, sem necessidade de provisionamento ou de destaque em notas explicativas.
Metodologias para definição de valores de passivo contingente
Os passivos contingentes representam potenciais obrigações que podem resultar em saídas de recursos financeiros, dependendo do resultado de eventos futuros incertos. Para todas as empresas, especialmente instituições financeiras, a correta mensuração e divulgação desses passivos são essenciais para garantir a transparência e a confiança dos investidores e reguladores. A seguir, abordo algumas metodologias utilizadas para definir os valores a serem lançados como passivo contingente.
1. Abordagem percentual
Uma metodologia comum é a abordagem percentual, que envolve a aplicação de percentuais específicos sobre o valor total das contingências identificadas. Esses percentuais são determinados com base em análises históricas e na probabilidade de ocorrência dos eventos (derrota na disputa judicial). Pode-se, por exemplo, adotar uma média histórica de valores desembolsados por tipo de ação ou objeto em discussão, a partir do quanto observado na base histórica da empresa.
2. Metodologias derivadas ou adaptadas de modelos de credit scoring e behaviour scoring
É possível o estabelecimento de modelos estatísticos para aferição dos valores de provisão para o passivo judicial.
Essa metodologia envolve a adaptação ou adequação de modelos de gestão de risco de crédito, como o credit scoring e o behaviour scoring, para a área jurídica, aferindo-se séries históricas de perdas decorrentes de condenações judiciais e seus valores de desembolso. Sinteticamente, podemos dizer que o credit scoring utiliza análises estatísticas para estimar as perdas históricas associadas aos passivos contingentes, enquanto o behaviour scoring avalia o comportamento dos processos judiciais ao longo do tempo. Esses modelos ajudam a mitigar a subjetividade e a aumentar a precisão na mensuração dos passivos.
Para a utilização de ambos os modelos há a necessidade de uma base cadastral muito bem construída e alimentada, com classificações e categorizações dos tipos mais comuns ações (assuntos, temas, datas, subtemas, etc.) e registros de perdas e êxitos5 nas ações judiciais.
3. Métodos de avaliação jurídica
Os métodos de avaliação jurídica envolvem a análise detalhada dos processos judiciais em andamento, considerando fatores como a natureza do litígio, o histórico de decisões judiciais e a opinião de especialistas jurídicos. Essa abordagem é particularmente útil para passivos contingentes relacionados a processos fiscais, cíveis e trabalhistas.
Não é o mais recomendado em caso de grandes acervos de processos, pois seria quase impossível avaliar individualmente um universo de 200.000 ações. Para essa hipótese, métodos que se baseiam na adaptação de modelos de gestão de risco de crédito, como o credit scoring e o behaviour scoring, parecem mais adequados e respondem satisfatoriamente à necessidade regulatória, sendo amplamente utilizados em diversas instituições.
Testes de consistência dos valores apurados
Importante que a empresa possua mecanismos de aferição periódica da consistência ou assertividade dos valores provisionados, o que pode ser realizado a partir da checagem da suficiência dos valores em provisão frente ao quanto efetivamente desembolsado quando realizada a extinção/pagamento da ação. Obviamente que margens razoáveis de diferença entre tais valores são aceitáveis, entretanto quando identificados descasamentos a empresa deve adotar providências no sentido de identificar as suas causas e implementar medidas corretivas.
Ajustes no passivo contingente
É importante notar que o passivo contingente deve ser monitorado ao longo do tempo. Caso haja mudanças nas estimativas ou no cenário futuro, a provisão contábil pode precisar ser ajustada. Por exemplo, se um processo judicial tiver andamento e as chances de perda aumentarem, a empresa deve atualizar sua provisão.
Da mesma forma, se a probabilidade de perda diminuir ou o valor da obrigação for reconsiderado, a provisão pode ser revertida ou ajustada.
A importância da provisão contábil para o passivo contingente
A provisão para passivos contingentes tem um papel fundamental na saúde financeira das empresas. Ela permite que a companhia se prepare para riscos financeiros, minimizando o impacto de eventos adversos inesperados. Além disso, a transparência no tratamento dessas provisões contribui para a credibilidade da empresa perante investidores, credores e outros stakeholders.
A falta de provisão ou a provisão inadequada pode resultar em surpresas financeiras negativas, prejudicando a confiança na empresa. Além disso, pode comprometer a precisão das demonstrações financeiras, afetando a tomada de decisões e a avaliação do desempenho da companhia.
Passivos contingentes e a governança corporativa
A boa prática de governança corporativa exige que as empresas mantenham controles internos robustos para identificar e mensurar passivos contingentes. A correta mensuração e o registro adequado desses passivos ajudam a mitigar riscos financeiros e a garantir a integridade das informações contábeis.
Além disso, a divulgação clara de passivos contingentes nas notas explicativas das demonstrações financeiras oferece uma visão transparente sobre as possíveis obrigações da empresa, auxiliando investidores e outros stakeholders a tomarem decisões mais informadas, melhor esclarecidas.
Conclusão
A provisão contábil para o passivo contingente é uma ferramenta essencial para garantir a transparência e a precisão nas demonstrações financeiras das empresas. Ao estimar e registrar adequadamente os passivos contingentes decorrentes de ações judiciais, as empresas podem se proteger de impactos financeiros inesperados e manter a confiança dos investidores e outros interessados. A responsabilidade na gestão de contingências é, portanto, um pilar fundamental para a boa governança e o sucesso financeiro a longo prazo.
A definição de valores para passivos contingentes é um processo complexo que requer a aplicação de metodologias robustas e precisas. Abordagens como a análise percentual, os modelos adaptados/derivados dos modelos de credit scoring e behaviour scoring, a análise de cenários e os métodos de avaliação jurídica são essenciais para garantir a transparência e a eficácia na gestão desses passivos. Ao adotar essas metodologias, as empresas podem melhorar sua gestão de riscos e aumentar a confiança dos stakeholders.
Em síntese, o valor de provisão pode ser compreendido como a melhor expectativa de desembolso, no momento de sua aferição, para liquidação da obrigação decorrente da condenação judicial sob análise. Quanto antes definido esse valor mais preparada para a materialização da contingência estará a companhia, não se mostrando salutar que essa definição ocorra muito próxima da data da liquidação do compromisso.
Em um ambiente de negócios cada vez mais complexo, o tratamento cuidadoso das contingências permite que as empresas se preparem melhor para o futuro, contribuindo para a estabilidade e a continuidade dos seus negócios.
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1 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou recomendação sobre a Litigância Abusiva, que tem por objetivo buscar medidas para a identificação, tratamento e prevenção desse fenômeno. Trata-se da Recomendação n. 159/2024, oriunda do processo n. 0006309-27.2024.2.00.0000.
2 Utilizemos o conceito seguinte: "A litigância predatória é uma prática de ajuizamento em massa de processos judiciais, contendo elementos abusivos ou fraudulentos", extraído de: https://www.projuris.com.br/blog/litigancia-predatoria/
3 O disposto nesta resolução não se aplica às administradoras de consórcio, às instituições de pagamento, às sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários, às sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários e às sociedades corretoras de câmbio, que seguirão as normas editadas pelo Banco Central do Brasil no exercício de suas atribuições legais, por força da redação dada, a partir de 1º/3/2024, pela Resolução CMN nº 5.116, de 25/1/2024.
4 Lei nº 6.404/76 - Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.
(...)
§ 3o As demonstrações financeiras das companhias abertas observarão, ainda, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários e serão obrigatoriamente submetidas a auditoria por auditores independentes nela registrados.
(...)
§ 5o As normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários a que se refere o § 3o deste artigo deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários.
5 Isso mesmo, é necessária a informação dos êxitos alcançados pela instituição nas ações em que atua.



