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A nova DRE como infraestrutura tributária: IFRS 18 na era do IVA-Dual

Com IFRS 18 e IBS/CBS, a DRE evolui de demonstração contábil para elemento central do sistema tributário, reduzindo disputas conceituais e ampliando a transparência.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Atualizado às 14:15

1. IFRS 18 e a reforma do consumo: A contabilidade encontra o IVA

A entrada em vigor do IFRS 18 - International Financial Reporting Standard, justamente no momento em que o Brasil inicia a implementação do IVA-Dual (IBS e CBS), cria um cenário pouco usual: dois processos de transformação, um contábil e outro tributário, avançando na mesma direção e praticamente no mesmo ritmo. Trata-se de uma convergência prática de grande relevância, que merece ser destacada.

Tradicionalmente vista como um relatório anual voltado aos investidores, a DRE - Demonstração do Resultado do Exercício tende a ganhar novo protagonismo num ambiente em que o valor agregado se torna a base central da tributação do consumo. Nesse contexto, o tratamento do EBITDA Ajustado - historicamente marcado por diferentes interpretações - passa a ser influenciado por padrões mais objetivos e padronizados.

A coincidência temporal entre as reformas reforça esse movimento. O IFRS 18 (CPC 51), obrigatório a partir de 2027, entra em cena justamente quando o IVA-Dual começa sua implantação gradual até 2033. Esse alinhamento já vem sendo debatido em fóruns técnicos do CPC/CVM para avaliar os impactos da LC 214/25 nas demonstrações financeiras, reconhecendo que as empresas precisarão de informações mais consistentes e estruturadas para dialogar com o novo modelo de tributação.

Apesar de independentes, IFRS 18 e IBS/CBS se encontram em três pilares fundamentais:

  1. Maior detalhamento das informações (nível de desagregação/granularidade);
  2. Apresentação predominante por natureza das despesas;
  3. Separação mais rigorosa entre o resultado operacional e os efeitos de investimentos e financiamentos.

Essa convergência - natural, ainda que não planejada - tende a facilitar a leitura do valor agregado e a compatibilizar a lógica contábil com um sistema tributário baseado no evento financeiro.

O IFRS 18 também redefine medidas de desempenho e reforça o resultado operacional como subtotal padronizado, reduzindo a diversidade de versões alternativas historicamente usadas no mercado. Este artigo explora a nova "arquitetura" da DRE, o impacto sobre métricas como o EBITDA Ajustado e os pontos de contato com o funcionamento do IVA-Dual brasileiro.

2. O que muda com o IFRS 18

Emitido pelo IASB em abril de 2024, o IFRS 18 substitui o IAS 1 no que tange à demonstração do resultado e será obrigatório para exercícios iniciados a partir de 1/1/27 (CPC 51), admitindo-se adoção antecipada.

Trata-se da mais ampla reformulação da estrutura da DRE - Demonstração do Resultado do Exercício desde a convergência brasileira às normas internacionais em 2007/2008. As principais alterações são:

a. Predomínio da classificação por natureza

O IFRS 18 preserva a liberdade de apresentação por função ou por natureza, mas eleva a granularidade mínima obrigatória. Mesmo quando a DRE for apresentada por função, passam a ser exigidas divulgações por natureza para despesas-chave (como depreciação, amortização, benefícios a empregados, impairment e perdas de estoque), em nota única e auditável.

b. Estrutura com categorias obrigatórias e subtotais padronizados

O IFRS 18 reconstrói a DRE ao definir categorias obrigatórias e subtotais padronizados:

  • Operacional;
  • Investimentos (ex.: resultado de equity method e dividendos recebidos);
  • Financiamento;
  • Imposto de renda;
  • Operações descontinuadas.

São criados dois subtotais obrigatórios e normativamente definidos:

  • Resultado operacional;
  • Resultado antes do financiamento e imposto.

O lucro operacional torna-se subtotal normativamente definido, excluindo efeitos de investimentos e financiamentos, similares ao que já ocorria na demonstração do fluxo de caixa pelo método indireto.

c. Tendência forte de eliminação das medidas de desempenho "criativas"

Indicadores não-GAAP (EBITDA ajustado, EBIT ajustado, resultados "ex-itens não recorrentes" etc.) só podem aparecer em uma única nota explicativa, com:

  • Reconciliação linha a linha aos subtotais obrigatórios;
  • Justificativa explícita de cada ajuste;
  • Sujeição total à auditoria.

Na prática, isso tende a reduzir significativamente a proliferação de versões alternativas, e o mercado deve convergir gradualmente para um padrão mais simples, transparente e robusto: EBITDA Ajustado = Resultado Operacional + Depreciação e Amortização.

O resultado é uma DRE mais transparente, comparável entre empresas e setores e capaz de revelar com precisão o consumo econômico real da entidade - exatamente o que os IVAs modernos baseados em crédito financeiro exigem para operar com eficiência e baixo contencioso.

3. O modelo que o mundo já usa (e que o Brasil agora adota)

Nos países que operam sistemas de IVA/GST há várias décadas, como União Europeia, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Singapura e África do Sul, consolidou-se uma estrutura relativamente estável, baseado em dois fundamentos: (i) neutralidade contábil e (ii) crédito fiscal apoiado em documentação idônea e, em alguns regimes, no evento financeiro.

Pelo primeiro princípio, o IVA não integra a receita bruta nem se converte em custo ou despesa na demonstração do resultado, pois trata-se de um valor transitório, um direito ou obrigação a liquidar, já refletido no IFRS 15 ao excluir tributos cobrados em nome de terceiros do preço da transação. Por isso, essa lógica tende a se tornar ainda mais evidente com o modelo de apresentação mais estruturado introduzido pelo IFRS 18.

O segundo princípio, frequentemente simplificado no debate brasileiro, não se resume a exigir pagamento prévio. Nos sistemas europeus, por exemplo, o direito ao crédito surge quando o tributo se torna exigível e o adquirente detém fatura válida, embora alguns países adotem regimes específicos de cash accounting, mecanismos de split payment, contas segregadas ou procedimentos antifraude que vinculam o momento da dedução ao evento financeiro. Canadá e Austrália, outro exemplo, também admitem regras de competência ou de caixa, dependendo do regime de apuração, sempre com forte dependência de documentação fiscal robusta.

Essa sistemática pressupõe um maior nível de organização contábil, informações classificadas por natureza, separação clara entre atividades operacionais, de financiamento e de investimento, e demonstrações suficientemente desagregadas, exatamente a arquitetura base que o IFRS 18 busca uniformizar.

Neste sentido, nos países onde essa estrutura está consolidada, observam-se, ainda, efeitos práticos amplamente documentados, de conciliação quase automática entre demonstrações contábeis, extratos bancários e apuração fiscal; redução estrutural do VAT gap em diversas jurisdições europeias digitalizadas (ainda que com oscilações anuais); litígios residuais envolvendo direito a crédito; e obrigações acessórias mais simples para a maior parte das empresas.

E é nesse contexto que a combinação entre o IFRS 18 (a partir de 2027) e o regime de crédito financeiro estabelecido pela LC 214/25 aproxima o Brasil das boas práticas internacionais de IVA/GST. Embora persistam diferenças institucionais relevantes e desafios de implementação, o sistema passa a incorporar elementos característicos dos modelos mais eficientes, aqueles que combinam neutralidade, rastreabilidade e menor custo de conformidade.

4. DRE como mapa do valor agregado e o alinhamento funcional entre IFRS 18 e IBS/CBS

O IFRS 18 oferece uma estrutura que favorece, facilita, o IVA-Dual brasileiro. Enquanto o IBS/CBS redefine a tributação pela ótica do evento financeiro (crédito só nasce com o pagamento efetivo - art. 47 da LC 214/25), o IFRS 18 reorganiza a demonstração do resultado do exercício para revelar, de forma clara, padronizada e auditada, como o valor agregado é formado, consumido e transformado dentro da empresa.

A DRE deixa de ser apenas um demonstrativo histórico e passa a funcionar como um mapa contábil do valor agregado tributável.

A coincidência temporal - CPC 51 obrigatório a partir de 2027 e consolidação plena do regime de crédito financeiro do IBS/CBS até 2033 - cria condições únicas para que a DRE se torne a fonte primária e estruturada de informações para a apuração de tributos.

As principais interfaces práticas são três:

4.1 DRE por natureza e o desenho do valor agregado

O IFRS 18 não elimina a apresentação por função, mas aperta o teste de utilidade e, mesmo quando a DRE vier por função, impõe uma nota única de natureza para despesas-chave, elevando a granularidade e comparabilidade. Exemplos:

  • Matérias-primas e mercadorias consumidas;
  • Variação de estoques;
  • Despesas com pessoal;
  • Depreciação e amortização;
  • Pesquisa e desenvolvimento;
  • Serviços de terceiros;
  • Impairment e perdas em ativos;
  • Marketing e propaganda, entre outras.

Essa estrutura elimina quase toda a subjetividade da antiga classificação por função (despesas administrativas, comerciais etc.) e faz com que os consumos econômicos que geram direito a crédito no IBS/CBS tendam a aparecer de forma mais explícita.

Em uma indústria, por exemplo, a linha "matérias-primas consumidas" será, diretamente, o principal insumo elegível para crédito fiscal, desde que comprovado o pagamento ou split payment. Debates sobre o contencioso atual ("o que é insumo?") devem ser substancialmente reduzidos.

4.2 Do declaratório para o baseado em dados estruturados

A combinação de (i) DRE granular e padronizada, (ii) crédito condicionado ao pagamento efetivo e (iii) split payment gradual cria as condições técnicas para que o Fisco obtenha a maior parte das informações diretamente dos sistemas contábeis e bancários das empresas, sem depender de obrigações acessórias complexas.

Esse é exatamente o modelo que já funciona em países com VAT gap em trajetória de redução, como Estônia, Suécia, Holanda e Finlândia (VAT Gap Report 2024 da Comissão Europeia). Neles, a conciliação automática entre DRE, extrato bancário e crédito fiscal ganhou protagonismo em vários países.

Para o Brasil, alcançar patamar semelhante dependerá da qualidade da regulamentação infraconstitucional, da adesão efetiva ao split payment e da capacidade tecnológica do Comitê Gestor, desafios que ainda precisarão ser superados.

5. Fim da "era criativa" do EBITDA ajustado

O IFRS 18 reduz fortemente a prática de cada empresa apresentar seu próprio "EBITDA ajustado" com exclusões arbitrárias, reestruturações "proforma" e ajustes "não recorrentes" escolhidos a dedo.

Embora o EBITDA puro já seja relativamente padronizado (no Brasil, guiado pela resolução CVM 156/22 e pelo CPC 26), a versão "ajustada" sempre foi terreno de discricionariedade da administração. Isso acabou.

Com o IFRS 18, as MPMs - Medidas de Desempenho Definidas pela Administração só podem ser divulgadas em nota explicativa única, com reconciliação obrigatória aos subtotais normativos e sujeitas a auditoria. Itens não operacionais (investimentos, financiamentos, efeitos não recorrentes) já ficam automaticamente fora do resultado operacional.

A tendência dominante deve ser:

EBITDA Ajustado = Resultado Operacional (subtotal obrigatório do IFRS 18) + Depreciação e Amortização

Com ajustes cada vez mais excepcionais e difíceis de justificar. Sem "normalizações", sem exclusões criativas, sem versões paralelas do resultado.

A grande dúvida que resta - o EBITDA "tradicional" ainda terá espaço? - tende a ser respondida negativamente. Com um resultado operacional robusto, livre de contaminação financeira e já segregado de itens extraordinários, o EBITDA ajustado perde relevância. A tendência é de convergência para um indicador único, objetivo e coerente com a lógica de valor agregado exigida pelo IBS/CBS.

5.1 Exemplo prático

Na prática, o novo padrão funcionará assim:

Resultado operacional 200.000 + depreciação e amortização 20.000 = EBITDA ajustado 220.000. Sem nenhum ajuste adicional, sem "exclusão de não recorrentes", sem subjetividade. O indicador se torna mais alinhado conceitualmente ao modelo de valor agregado que servirá de base para o IBS/CBS. Essa é a nova regra do jogo - e ela vale a partir de 2027.

6. Desafios da implementação

O IFRS 18, combinado ao regime de crédito financeiro do IBS/CBS, representa um avanço na direção de maior transparência e rastreabilidade. Porém, como toda reforma de grande escala, seu êxito dependerá menos da edição normativa, já alinhada aos padrões internacionais, e mais da qualidade da implementação.

Alguns pontos merecem destaque:

  • Integração do split payment: Exigirá adaptações relevantes nas rotinas bancárias. Experiências internacionais, como a Itália, mostram que a adoção tende a ser gradual, com fases de teste, ajustes e expansão. No Brasil, em que a liquidação financeira afeta diretamente a formação das receitas, debates sobre cronograma e setores prioritários são esperados.
  • Adaptação das micro e pequenas empresas: A migração para documentos fiscais com campos de IBS/CBS, a atualização de sistemas e o treinamento podem ser desafiadores para empresas do Simples e MEI. Programas de apoio e escalonamentos realistas serão fundamentais para uma transição equilibrada.
  • Maturação tecnológica: Plataformas que conciliem automaticamente dados contábeis, fiscais e bancários passarão por ciclos naturais de estabilização, exigindo tempo para testes, interoperabilidade e amadurecimento.
  • Regulamentação pelo Comitê Gestor: Normas sobre regimes especiais, prazos escalonados e validação do evento financeiro impactarão diretamente a previsibilidade. Como ocorreu com eSocial, NF-e e SPED, ajustes graduais são esperados e não comprometem o núcleo da reforma.
  • Atualização do Judiciário e das comunidades técnicas: A análise tributária passará a depender da correta leitura da DRE-IFRS 18. Por isso, formação de magistrados, peritos e auxiliares será importante para reduzir assimetrias interpretativas nos primeiros anos.

Superados esses pontos, significativos, mas administráveis, o Brasil poderá consolidar um IVA-Dual mais neutro, rastreável e menos litigioso, em linha com o que o IFRS 18 busca ao reestruturar a DRE.

7. Impactos profissionais da convergência IFRS 18 + IBS/CBS

A entrada simultânea das duas reformas altera de maneira relevante a atuação de advogados, magistrados, contadores e da administração tributária.

Para os advogados tributaristas, o contencioso tende a migrar das discussões conceituais ("o que é receita?", "o que é insumo?") para a análise técnica da classificação contábil. Teses sobre base de cálculo ou créditos de IBS/CBS dependerão da demonstração de que a operação foi corretamente alocada nos subtotais do IFRS 18. Dominar critérios de reconhecimento e notas explicativas torna-se essencial.

Magistrados e peritos também enfrentarão uma mudança estrutural: conceitos tradicionais do contencioso de PIS/Cofins tornam-se insuficientes. A decisão sobre créditos e bases de cálculo exigirá leitura precisa da DRE-IFRS 18, reforçando o diálogo técnico entre juiz e perito.

Contadores e auditores deixam de ter um papel apenas operacional e passam a estruturar a base do compliance tributário. Classificações como despesa financeira versus desconto comercial afetarão diretamente o crédito de IBS/CBS, recolocando o profissional contábil no centro da governança tributária.

Para o Fisco, a combinação entre DRE padronizada, split payment e cruzamento automático de informações permitirá fiscalizações mais preditivas, identificação rápida de desvios e redução do contencioso declaratório. A atuação passa a focar não no erro formal, mas na coerência econômica das operações.

Em termos profissionais, a convergência IFRS 18 + IBS/CBS inaugura um novo sistema no qual advogados e magistrados precisarão ampliar sua leitura contábil, contadores tendem a ocupar um papel mais central na governança tributária, e o Fisco passa a ancorar sua atuação em evidências estruturadas.

8. Conclusão

A partir de 2027, o Brasil passa a viver uma convergência rara: IFRS 18 e IVA-Dual entram em vigor quase simultaneamente e avançam na mesma direção, ainda que tenham origens distintas. O novo padrão contábil reorganiza a DRE com maior granularidade, subtotais padronizados e classificação por natureza, enquanto o IBS/CBS adota o crédito financeiro condicionado ao pagamento, aproximando o país das práticas internacionais de IVA/GST.

Essa integração tem potencial para reduzir disputas históricas - como "o que é insumo" ou "o que compõe a base de cálculo" - e deslocar o debate para critérios objetivos de reconhecimento e apresentação. Modelos internacionais mostram que regimes baseados em evento financeiro, combinados com contabilidade estruturada e digitalização, favorecem compliance e diminuem o VAT gap, tendência que tende a se repetir aqui.

O sucesso, porém, dependerá da execução: adesão ao split payment, transição realista para pequenas empresas, maturidade das plataformas tecnológicas, regulamentação clara e capacitação contínua de profissionais e magistrados. Superados esses desafios, o país poderá consolidar um sistema de tributação do consumo mais neutro, rastreável e previsível.

A transparência contábil deixa de ser apenas um ideal regulatório e passa a ocupar o centro do compliance tributário. Empresas e profissionais que se prepararem desde já estarão melhor posicionados para atuar em um ambiente mais simples, seguro e alinhado às melhores práticas globais.

Marcelo Rangel dos Santos

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