Análise qualitativa: Decifrando a real lógica judicial
A análise qualitativa revela a lógica decisória, evidencia padrões hermenêuticos e permite antecipar inflexões jurisprudenciais que os modelos estatísticos, isoladamente, não captam.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:16
Enquanto a jurimetria ajuda a projetar as análises de casos para um horizonte de previsibilidade quase matemática - isto é, fundada na expectativa de precisão estatística e replicabilidade -, a própria noção de previsibilidade revela suas fissuras quando confrontada com a complexidade das dinâmicas humanas e com as mediações hermenêuticas inerentes à aplicação do Direito.
Nesse movimento, a busca por precisão acaba sendo deslocada e reabsorvida pela contingência das interações sociais, pelos desencontros semânticos, pela pragmática da linguagem que conforma o próprio ato de enunciação, pelos valores que se transformam em objetos jurídicos e entram em disputa, bem como pelas estruturas argumentativas que orientam a interpretação. É precisamente nesse ponto que se torna evidente o limite estrutural de qualquer tentativa de transformar o Direito em um sistema determinístico, assim como a necessidade de compreender seus resultados decisórios a partir das múltiplas camadas de sentido que atravessam e configuram a prática jurídica.
A preocupação central é evitar que a análise preditiva de resultados processuais seja utilizada de modo acrítico ou meramente automático, a ponto de perder utilidade prática. Para isso, é preciso lembrar que, mesmo com ferramentas quantitativas e modelos estatísticos, o trabalho jurídico continua exigindo domínio da teoria da argumentação, atenção às nuances do discurso e capacidade de formulação crítica.
Para evitar que a observação das decisões judiciais se torne excessivamente grosseira, a análise puramente quantitativa revela limites estruturais, sobretudo porque não consegue captar nuances decisórias relevantes. É nesse ponto que a análise qualitativa se torna uma ferramenta mais sensível, capaz de apreender como o Judiciário efetivamente enuncia o que considera ser o direito, reconstruindo sentidos, padrões argumentativos e orientações valorativas que escapam à mensuração numérica, mas que são decisivos para compreender aquilo que realmente pode ser preditivo, principalmente quando se pretende lidar com hard cases.
A jurimetria, por ser uma metodologia fundamentalmente quantitativa, apresenta limitações estruturais quando se trata de explicar o percurso argumentativo das decisões judiciais, embora seja útil para descrever seus resultados agregados. Ela permite identificar tendências gerais - por exemplo, a constatação de que determinado tipo de demanda tem 70% de probabilidade de procedência - mas não esclarece por que essa tendência existe, como ela se forma, nem por que determinados casos se afastam do padrão. Tampouco indica quais caminhos argumentativos aumentam ou reduzem as chances de êxito em um caso concreto.
Na verdade, a ratio decidendi permanece fora do escopo da análise quantitativa, de modo que não se conhece o encadeamento interpretativo que conduz a um determinado resultado. Então, isso gera distorções: dois julgados podem convergir para o mesmo desfecho, mas por razões completamente distintas; quando a jurimetria os trata como equivalentes, produz uma visão incoerente com o que realmente está acontecendo na prática jurídica. Assim, ainda que o resultado agregado sugira uma alta ou baixa probabilidade de êxito, tal índice não necessariamente se aplica ao caso concreto, justamente porque os fundamentos jurídicos decisivos não foram discriminados.
É perfeitamente possível que duas decisões que chegam ao mesmo resultado o façam por caminhos jurídicos distintos. Uma determinada ratio decidendi pode aparecer em apenas 20% das decisões favoráveis e em 80% das desfavoráveis, enquanto outra ratio, diversa, apresenta justamente a distribuição inversa. Quando ambas são agrupadas sob o rótulo genérico de "procedência", essas diferenças internas desaparecem, pois o dado estatístico passa a registrar apenas o desfecho final, e não os fundamentos que o sustentam. A consequência é que a análise quantitativa, limitada ao resultado agregado, não consegue revelar qual fundamento jurídico realmente influencia a probabilidade de êxito em um caso concreto, obscurecendo a lógica decisória que deveria orientar a estratégia argumentativa.
Essas dimensões - a distinção entre diferentes caminhos argumentativos, suas relações com padrões decisórios e seus impactos sobre as chances efetivas de sucesso - não são capturáveis pela jurimetria, mas emergem com clareza por meio de análise qualitativa. É nessa combinação, e não na dependência exclusiva de métricas agregadas, que se encontram instrumentos capazes de orientar decisões estratégicas, interpretar adequadamente a jurisprudência e compreender o direito tal como é produzido pelo Judiciário.
Em resumo, pode-se dizer que a jurimetria não oferece uma explicação juridicamente inteligível sobre o percurso interpretativo que conduziu àquele desfecho. Ela pode apontar, por exemplo, uma alta probabilidade de improcedência, mas não consegue traduzir em termos hermenêuticos quais premissas normativas, quais padrões argumentativos ou quais enquadramentos fáticos pesaram para essa conclusão.
Para a prática jurídica, essa opacidade reduz drasticamente a utilidade do modelo, porque saber que a chance de derrota é elevada tem valor limitado. O que realmente importa, do ponto de vista estratégico, é compreender por que essa derrota ocorreria e como evitá-la. Sem acesso à estrutura argumentativa subjacente - isto é, à forma como os fundamentos jurídicos são lidos, combinados e priorizados - o advogado não tem instrumentos para reformular a tese, ajustar a narrativa fática, identificar pontos sensíveis ou antecipar o contradiscurso judicial.
Em outras palavras, o problema não é apenas a falta de transparência técnica, mas a ausência de inteligibilidade jurídica: o modelo prevê o "o quê", mas não revela o "por quê" nem o "como". É justamente nesse espaço que a pesquisa qualitativa, ao reconstruir a tessitura argumentativa das decisões.
Aprofundando um pouco a questão, pode-se afirmar que a jurimetria não consegue detectar, por si só, as viradas jurisprudenciais (overrulings). Isso não significa que a pesquisa qualitativa seja infalível nesses momentos de mudança. No entanto, é justamente a análise qualitativa que dispõe dos instrumentos para perceber os sinais de inflexão - como votos divergentes, alterações na composição dos tribunais, novos enquadramentos argumentativos, reexame de princípios e regras e debates doutrinários acessados pela decisão judicial - e, por isso, consegue permitir uma análise preditiva quanto à chegada dessas viradas com maior sensibilidade.
Quando um tribunal altera seu entendimento, todo o lastro estatístico acumulado continua apontando para uma direção que já não corresponde ao estado atual do direito, tal qual agora aplicado pelas cortes. O modelo quantitativo, para se adaptar, necessita de um novo ciclo de decisões, suficientemente volumoso, que o "reensine" o padrão. Até que isso ocorra, suas previsões permanecem formalmente calculadas, mas substancialmente equivocadas.
A análise qualitativa, por sua vez, capta elementos que não aparecem apenas em números, mas que indicam movimentos estruturais em formação. Esses sinais ainda incipientes, invisíveis para metodologias baseadas apenas em frequências de resultados, permitem antecipar mudanças antes que elas se tornem estatisticamente mensuráveis.
Assim, a leitura atenta de um único voto divergente pode fornecer informações estratégicas com um valor diferente daquele oferecido por quantificar o resultado de centenas de decisões reiteradas ao longo do passado. É nessa capacidade de captar a direção do movimento jurisprudencial, e não apenas suas repetições históricas, que a análise qualitativa encontra mais um ponto de superação do alcance da jurimetria.
Lincoln Simões Fontenele
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Sete de Setembro (Uni7). Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Mestre em Direito, Constituição e Ordens Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorando em Sociologia pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro e coordenador do grupo de pesquisa Direito, Sociedade Mundial e Constituição - DISCO (Universidade de Brasília). Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito - ABraSD (2022-2024). MBA em Direito Acidentário.


